segunda-feira, 16 de julho de 2018

O Contrabando em Bragança

O Rei D. Pedro V escreveu que “a forma do nosso comércio com a Espanha é o contrabando”. Esta fórmula lapidar ganha a sua máxima expressão no que diz respeito às relações comerciais de Trás-os-Montes com a Espanha no século XIX, e em particular de Bragança com a Galiza e Castela-Leão, onde as alfândegas dos dois países estavam bem longe de esgotar as relações económicas raianas. Com efeito, boa parte deste comércio, quiçá a maior parte, era ilegal.
Um dos muitos moinhos existentes em Bragança, onde se produzia a farinha a partir dos cereais
Numerosos fatores, entre os quais avultam a extensão da fronteira; os direitos excessivos cobrados nas alfândegas devido a políticas aduaneiras protecionistas desenvolvidas a partir de 1820 e que se vão manter por largas décadas; a cumplicidade de populações, agentes económicos, contrabandistas, autoridades fiscais, administrativas e até militares; a contiguidade geográfica, em relação a Trás-os-Montes, da Galiza, grande produtora de gado bovino, e da região de Castela-Leão, grande produtora de cereais, vendidos a baixos preços, graças ao aumento da produção agrícola que aí se fez sentir a partir do segundo terço do século XIX; e por fim, mas de não somenos importância, o Tratado da Livre Navegação do Douro, contribuíram para que o contrabando se desenvolvesse infrene no século XIX. O tráfico ilegal, como escreveu o Governador Civil de Bragança em 1858, fazia--se “em grande escala”, constituindo a principal atividade económica dos povos da raia. Não era possível evitá-lo com um número tão reduzido de guardas alfandegários, mal remunerados, fazendo com que as alfândegas instaladas fossem “um mito, um espantalho, à sombra do qual se faz livremente o mais escandaloso contrabando, com desdouro das autoridades fiscais, aliás inculpadas, mas impotentes para lhe obstar”.
Na opinião dos governadores civis de Bragança, só se podia reduzir o contrabando limitando os excessivos direitos pagos nas alfândegas, e permitindo a entrada livre de centeio espanhol e cevada, o que permitiria ao povo “pão barato”.
Não iremos desenvolver o tema do contrabando no Concelho de Bragança, uma vez que Maria da Graça Martins tratou largamente deste tema na sua tese de doutoramento, As relações do Nordeste Trasmontano com Castela-Leão no século XIX (1834-1880), remetendo assim o leitor para esta obra. Faremos, contudo, algumas observações sobre o mesmo, procurando incidir fundamentalmente sobre o Concelho de Bragança, embora saibamos que esta problemática só pode ser devidamente apreendida no contexto mais amplo da raia transmontana.
Tanto na Galiza como em Castela-Leão, chegavam a formar-se grupos ou “sociedades” dedicados unicamente a esta atividade. Conheciam todos os caminhos e desvios dos territórios fronteiriços. Envolviam as ferraduras das mulas com panos e varriam partes dos itinerários com mantas para despistarem os guardas. Nas aldeias, ao longo dos percursos que faziam, tinham cúmplices e dispersavam o contrabando por várias casas, de forma a, caso fossem descobertos, nunca perderem todas as cargas ou produtos.
Numerosas povoações do Concelho de Bragança viviam sobretudo do contrabando, nomeadamente as povoações de Cisterna, Guadramil, Moimenta, Montesinho, Petisqueira, Quintanilha, Rabal e Rio de Onor, ganhando relevo, do lado de Espanha, Alcanizes e Puebla de Sanabria. Lugares privilegiados de contrabando eram também as feiras e mercados, os quais, pela grande concentração de pessoas e produtos a transacionar, criavam as condições necessárias às compras e vendas ilegais.
Quer os cereais e gados, quer numerosos produtos fabris da indústria espanhola eram mais baratos que os portugueses. As populações e os próprios regedores das freguesias não compreendiam porque haviam de pagar caro o que podiam ter barato – “a miséria é muito tentadora” referirá, a propósito, o Governador Civil de Vila Real em 1854.
Enfim, não existiam meios para o impedir.
A maior parte dos tecidos ingleses e algodões entrados pela cidade do Porto e transportados para Bragança seguiam ilegalmente para Espanha. A correspondência oficial do Governo Civil de Bragança revela que o preço elevado que tais produtos atingiam contribuía significativamente para a sua introdução ilícita em Espanha, apesar das determinações legais que exigiam a marcação dos tecidos, a elaboração de mapas de registo contendo os tipos de tecidos, quantidades e valor dos mesmos, e ainda, no caso dos tecidos nacionais, a origem dos teares que os produziam. Não só de Portugal para Espanha, mas também de lá para cá, uma vez que o contrabando, de acordo com a procura e os preços, era de natureza biunívoca. Se, por exemplo, entre 1820-1825 e 1830 1835 o contrabando de tecidos é mais intenso de Bragança para Espanha, a portaria de 8 de janeiro de 1839, alerta que se têm “clandestinamente introduzido neste Reino grande porção de panos ordinários, espanhóis e de Saragoça, assim como lã fiada e tinta”.
O mesmo se passa quanto a vinhos e aguardentes, que mereceram também a atenção dos governos de ambos os países.
Por seu lado, de Espanha entravam cereais de toda a espécie, gado bovino, aguardente, tecidos de lã e seda, carneiras, etc.
Terminada a guerra civil em 1834, uma das principais preocupações de natureza económica do Estado português, expressa através da legislação, passou a ser a política de cereais e o contrabando dos mesmos, que se praticava em larga escala, sem esquecermos, porém, que o tráfico ilícito abrangia muitos outros produtos.
Moinho de Água para moagem de cereais
O contrabando de cereais proveniente de Espanha, quanto a Trás-os-Montes, cresceu extraordinariamente com o Tratado da Livre Navegação do Douro em 1835, o que originou uma baixa significativa do comércio e contrabando de cereais pela raia seca no Município de Bragança. Contudo, a sua entrada ilegal manteve-se, uma vez que garantia a subsistência das populações do Alto Trás-os-Montes, região onde o centeio nacional não era suficiente para a alimentação da população. Em agosto de 1835, o Periódico dos Pobres no Porto referia que a fome que se fazia sentir de pão centeio em Bragança era “extraordinária”, uma vez que o produzido nos fornos locais era “apreendido para a tropa, a quem igualmente se tem dado pão de trigo”. Por tal facto, os contrabandistas não paravam “dia e noite de conduzir tal género da Espanha, bem como centeio em grão”.
Ainda em 1861, num ofício enviado à Associação Central da Agricultura Portuguesa, o Governador Civil considerava o contrabando de centeio “um mal necessário para este Distrito e por isso, para nós, é sempre de vantagem que se permita a entrada deste cereal, porque então em lugar de irem a Espanha buscá-lo com os contrabandistas que são os moradores dos povos portugueses da raia, vão depois, quando for livre, os mesmos consumidores; e os espanhóis que vêm buscar outros géneros, em lugar de trazerem as cavalgaduras descarregadas, trazem centeio; o que tudo concorre para baratear o seu preço em proveito dos consumidores, que são todas as classes porque todos carecem de o comprar”.
Ainda em 1874, o Governador Civil de Bragança informava o Governo de que nesta Cidade e na maior parte das povoações do Distrito “já escasseiam completamente as farinhas, porque os moinhos estão parados” por falta de água, o que o levava a solicitar autorização para a entrada de cereais espanhóis.
O gado constituía igualmente um dos principais produtos de contrabando do Município de Bragança. O gado vacum, em 1835, pagava de direito de entrada na alfândega de Bragança, de acordo com a idade dos novilhos, entre 1 200 e 3 000 réis, direitos estes muito excessivos, que incentivavam o contrabando. A fim de o evitar, entendia-se o recenseamento dos gados fundamental, operação esta, contudo, praticamente impossível de ser efetuada, já que as populações se recusavam a tal, convencidas de que o recenseamento tinha por finalidade o aumento da carga fiscal.
A circulação do gado era objeto da mais intensa fiscalização. Os produtores tinham de proceder ao seu manifesto e marcar o gado, enquanto os negociantes eram obrigados a requerer a emissão de guias de circulação e transporte dos animais, nomeadamente para as feiras e mercados perto da raia. As autoridades espanholas e portuguesas intervinham e cooperavam de forma intensa na repressão do contrabando do gado, podendo mesmo atravessar a fronteira para confiscarem os animais. As populações, contudo, insurgiam-se com as apreensões que então ocorriam, surgindo mesmo conflitos entre os povos e as autoridades fiscais, nomeadamente com a intervenção da guarda espanhola no espaço português, conflitos estes que, por vezes, se saldavam por disparos de guardas alfandegários e mesmo por civis, como aconteceu, por exemplo, na fronteira do Concelho de Bragança em dezembro de 1845.
Quanto a vinhos e aguardentes, eram várias as exigências, legais e técnicas, a cumprir no processo ligado ao manifesto das colheitas, transporte e venda. Era obrigatório fazer o manifesto dos vinhos, os chamados arrolamentos, a fim de se conhecer as quantidades produzidas e controlar a circulação, o transporte e a comercialização, especialmente nos concelhos limítrofes com a Espanha, como era o de Bragança.
As guias, contendo informação sobre os líquidos que circulavam, obrigatórias, eram comparadas e conferidas com o número de pipas pelos postos fiscais. Através delas podiam-se recolher informações para reprimir o contrabando: “que em cada uma das guias conferidas para transporte de aguardentes não seja incluída mais do que uma pipa, marcando-lhe o itinerário e tempo na razão de três léguas diárias para o caso e de cinco léguas para cavalgadura, e destas guias se deve dar nota para esta Repartição, declarando, a respeito de cada pipa de aguardente, quanto vinho a produziu e o nome do colheiteiro ou colheiteiros”.

Neste circuito, as formalidades exigidas às laborações das fábricas de destilação constituíam um elemento estrutural, já que se sabia que uma das formas de rentabilizar os vinhos era destilá-los e também porque o consumo de aguardentes era preferido pelas populações da Terra Fria Transmontana. No entanto, o encerramento de tais fábricas nunca poderia ocorrer em absoluto, sob pena de graves prejuízos para a economia local, nem como forma de, só por si, evitar o contrabando. Daí que a verificação dos requisitos e das razões da sua criação e, posteriormente, a operacionalização da fiscalização da atividade das mesmas, constituíssem instrumentos de vigilância da quantidade de vinhos para destilação e transformação em aguardente, que poderia introduzir-se no circuito comercial, cumprindo aparentemente as formalidades legais.
O contrabando destes géneros, proibido pela lei, era considerado prejudicial aos interesses da produção nacional, redutor da qualidade e incentivador da especulação. O circuito, desde a produção até à venda, estava vigiado e era fiscalizado, conhecendo e pondo-se em prática medidas corretivas e punitivas, de repressão, mas também desenvolvendo ações preventivas. Desde o produtor ao comerciante, aos donos das máquinas e fábricas de destilação, à população em geral, sem esquecer as autoridades administrativas, fiscais e alfandegárias, todos tinham procedimentos, responsabilidades e deveres específicos a cumprir, mas muitas vezes sem resultados visíveis. As chamadas oficinas de destilação eram considerados espaços de potencial permissividade ao contrabando, adulterando quantidades de vinho a destilar e de aguardentes a produzir. A criação das mesmas obedecia a exigências próprias, para além da obtenção de licença de funcionamento.
Era suposto saber tudo sobre “as oficinas”: proprietários, locais de funcionamento, tipos e quantidades de vinhos para destilar, pipas de aguardente produzidas, sob pena de pesadas multas ou encerramento. Os abusos eram tais que o Governo Civil de Bragança, de acordo com as instruções do Governo, em 1855, determinou que “deviam fechar as fábricas de destilação que nos concelhos se achassem colocadas “a menos de cinco léguas da raia”, anulando qualquer licença que possuíssem.
O conhecimento da capacidade vinícola dos espanhóis da raia e o seu interesse e participação neste circuito constituía também informação relevante. Às autoridades era exigida atitude observadora, no sentido da responsabilidade e zelo. A cooperação entre as várias autoridades deveria ser vista no exercício e aplicação da lei. Era preciso sensibilizar a população para os efeitos negativos do contrabando, solicitando a sua colaboração nas apreensões e nas informações sobre potenciais infratores. A correspondência oficial de meados do século XIX, relativa a Bragança, confirma os locais prediletos para a introdução de aguardentes do vizinho reino espanhol, solicitando-se a colaboração entre várias entidades para, “com desvelados cuidados, cercear o tráfico ilícito, as fraudes e os abusos que os fabricantes ou comerciantes de vinhos e aguardentes possam empregar e estejam prontas para adotar qualquer outra medida legal de que haja mister, para pela autoridade administrativa e fiscal ser estancada da maneira mais profícua e eficaz esta corrente ilegal”.
Outros produtos eram objeto deste tráfico ilícito, nomeadamente, sabão, pólvora, tabaco, sal, ferro, moeda, prata, cartas de jogar, etc. Desde logo, circulava na fronteira de Bragança sabão de Castela-Leão, que dava origem a um “grande e escandaloso contrabando”, apesar de o contrato das saboarias do Reino garantir, em exclusivo, a venda de sabão nacional nos depósitos e estancos oficiais, o qual era sempre acompanhado das respetivas guias de autenticação.
A pólvora era objeto de especial controlo por parte de ambos os governos, que procuravam evitar o acesso à mesma pelos revoltosos de ambas as nações peninsulares. Em Portugal, a pólvora para venda constituía exclusivo da Fábrica Nacional, em Lisboa. O Governo português considerava mesmo que “a pólvora manufaturada em qualquer parte de Portugal” que não tivesse aquela proveniência era “contrabando, como se fosse importada de qualquer país estrangeiro”.

O tabaco era também contrabandeado na região de Bragança. O Contrato do Tabaco estipulava procedimentos específicos, como a relação do número de estancos oficiais em cada concelho, a necessidade de elaborar arrolamentos e manifestos das quantidades do tabaco junto dos estanqueiros, conhecimento das variedades e vistorias à qualidade do mesmo, de forma a não comprometer a sua venda e evitar a entrada ou saída ilegal deste produto.
O cultivo clandestino de erva-santa nas povoações da raia trasmontana era alvo de vigilância, levando a que numerosas culturas fossem destruídas para evitar a sua mistura no rapé. As autoridades procuravam exercer uma vigilância contínua, no sentido de detetar este comércio ilegal. Procuravam ainda apurar a capacidade e provimento dos estancos, pesos e carimbos, bem como eventuais queixas da população acerca dos vexames a que por vezes era sujeita a propósito do tabaco.
É notório que a falta de tabaco armazenado para consumo, a fraca qualidade do que era vendido, a demora na reposição do género por tardia comunicação dos funcionários ou pela demora do transporte desde o Porto, a insatisfação da população, a intervenção de especuladores, contrabandistas e dos próprios produtores clandestinos locais de erva santa e a proximidade com os negociantes espanhóis, obrigavam a tomar medidas preventivas e punitivas, procurando respeitar as condições do Contrato do Tabaco.



O intenso contrabando que se fazia sentir na região de Bragança no século XIX constituiu a prova evidente de que o mesmo era fundamental para a vida das populações. Os governadores civis de Bragança numerosas vezes chamaram a atenção do Governo para a urgente revisão do sistema proibitivo de importação de produtos espanhóis e a abolição dos pesados direitos alfandegários em vigor, quanto à transação de mercadorias entre Portugal e Espanha. Pelos fatores que já expusemos, a vigilância alfandegária estava longe de ser minimamente eficaz.
Seja como for, o contrabando, com particular relevo para os cereais, gado, vinhos e aguardentes, ou seja, o contrabando basicamente ligado à subsistência das populações que nunca o entenderam como sendo um crime, constituiu, como se pode ver através da correspondência oficial do Governo Civil de Bragança entre 1830-1880, a sua maior preocupação (Quadros n.º 48 e 49).

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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