domingo, 22 de julho de 2018

Pasteur, o sulfuroso e os vinhos com gosto a pesticidas

É seguro beber vinho com origem em vinhas onde se aplicaram herbicidas. Os efeitos dos herbicidas não chegam até às uvas, logo não chegam ao vinho. Mas, embora não o contaminem, podem influir na sua qualidade, por via indirecta.
Foto: José Maria Ferreira

Pasteur continua a ter razão: o vinho ainda é a mais sã e higiénica das bebidas. O seu único elemento verdadeiramente tóxico é o álcool — daí devermos beber com moderação. Se forem respeitadas as quantidades recomendadas, até mesmo o tão falado sulfuroso (dióxido de enxofre), usado como conservante e fixador de cor, é inócuo.

Em boa verdade, a dose de sulfuroso aplicada na maioria dos vinhos é muito inferior à quantidade usada na conservação de muitos outros alimentos. Nem sabemos, mas, por exemplo, muita da carne, vegetais e fruta embalados, frutos secos e camarões que comemos possuem mais sulfitos (os sais do dióxido de enxofre) do que a maioria dos vinhos. Os vinhos que ficam pior na fotografia são aqueles que possuem uma grande quantidade de açúcar e que não foram aguardentados. Os brancos de colheita tardia, por exemplo. Para interromper a fermentação (transformação do açúcar em álcool), de modo a deixar o vinho com algum açúcar, e evitar também o desenvolvimento de microorganismos, os quais podem provocar a refermentação do vinho já em garrafa, é necessário adicionar uma dose elevada de sulfuroso (mas dentro dos limites autorizados).

Em todo o caso, bebido de vez em quando, um copo bem fresco de um colheita tardia não faz mal a ninguém, pelo contrário. Comer frutos secos embalados também não. O perigo só surge se exagerarmos no consumo, se comermos e bebermos ao longo do mesmo dia vários produtos com sulfitos, porque a partir de uma certa quantidade os sulfitos podem tornar-se tóxicos.

A conservação dos alimentos foi uma das grandes conquistas da humanidade (é bom não esquecer também que o vinho não é uma criação da natureza, foi o homem que domou as videiras selvagens e inventou o vinho). Colocar isto em causa, em defesa do chamado vinho natural, livre de sulfitos e de tudo e mais alguma coisa, não faz qualquer sentido. Até porque uma das dimensões mais fascinantes do vinho é a sua durabilidade, e um vinho sem sulfitos tende a ter uma vida curta. O que faz sentido é ser exigente e cuidadoso na produção das uvas e no fabrico do vinho, porque dessa forma podemos fazer vinhos igualmente duráveis sem usar tanto sulfuroso.

Acontece mais ou menos o mesmo com os herbicidas. Também é seguro beber vinho com origem em vinhas onde se aplicaram herbicidas, seja à base do badalado glifosato, seja com outro princípio activo qualquer. Os efeitos dos herbicidas não chegam até às uvas, logo não chegam ao vinho. Mas, embora não o contaminem, podem influir na sua qualidade, por via indirecta.

Um solo tratado com herbicidas acaba por se tornar, com o tempo, num solo pobre e doente, num solo com pouca biodiversidade. Por desgraça, para muitos produtores, uma vinha só devia ter videiras. Há dias, um produtor do Douro publicou no Facebook uma foto da sua quinta em patamares, oferecendo uma garrafa de vinho a quem vislumbrasse uma erva. Noutra publicação, já tinha dito que trata as vinhas como um jardim”. Este é ainda o pensamento dominante na viticultura nacional.

Como podemos chamar jardim a um pedaço de terra só com videiras? Uma vinha limpa de ervas pode parecer bonita ao primeiro olhar, mas basta esperar pela queda das folhas ou pela poda para se perceber o que ela esconde, na verdade: esconde aridez e ausência de vida. Um jardim tem árvores, flores, arbustos. Diversidade, em suma. Diversidade que é essencial para o bom funcionamento dos ecossistemas e também para o sucesso das próprias culturas. Uma vinha sem ervas está mais exposta a doenças, por exemplo. E uma vinha com diversidade vegetal pode, por outro lado, originar vinhos mais ricos e originais, com sabores distintos, associados ao lugar e à sua flora e não apenas às castas. Os “odores” das plantas e das árvores também passam para as uvas. Há tintos com notas mentoladas que têm origem nos eucaliptos existentes em volta da vinha. Alguns tintos do Douro, por exemplo, cheiram muito a esteva, uma planta mediterrânica muito abundante na região. E não é por acaso que os vinhos com origem em vinhas situadas junto ao mar podem ter notas salgadas.

O facto de a pele das uvas ser tão receptiva a estes “sabores” exteriores devia também servir-nos de alerta em relação aos produtos que usamos para combater os fungos e os insectos que atacam as videiras. Se as uvas captam o cheiro da esteva ou do eucalipto, também devem captar os químicos dos fungicidas e insecticidas. Mesmo que se respeite o intervalo de segurança prescrito para todos estes produtos (entre o último tratamento e a vindima tem que passar um determinado tempo), há sempre resíduos que acabam por ir para o vinho (embora em doses negligenciáveis para a saúde humana) e que podem repercutir-se no seu aroma e sabor. Ora, quanto mais tratamentos fizermos, mais resíduos incorporamos nas uvas e no vinho.

Não é uma hipótese. Há até um livrinho — Le goût des pesticides dans le vin, dos franceses Jérôme Douzelet e Gilles-Éric Séralini —, que o demonstra com detalhe. Haveremos de voltar a ele proximamente.


Pedro Garcias
FUGAS - Jornal Público

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