quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Bragança anos 50/60 do século XX – 2ª Parte

Por: António Orlando dos Santos 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")
Terminava a Páscoa e como que se respirava já um ar diferente. O mês de Abril tinha leveza, os dias começavam a ser maiores e como quase se entrava num tempo de mudança.

Uma canção repetida vezes sem conta na Rádio tinha um título elucidativo: Avril au Portugal (exactamente, em francês). Adaptaram-lhe uma letra que falava de Coimbra e de Inês e seus amores. Passou a ser conhecida pela versão segunda mas de facto nasceu com o batismo primeiro. Era também ela um anúncio de dias alegres.
Fazia-se a Pascoela e voltava-se ao jogo do cântaro e o Compasso regressava porque a cidade crescera e um dia de domingo não chegava para visitar todos os lares cristãos do burgo.
O folar estava quase no fim e a garotada começava a pedir pão normal já que o fartote de folar começava a tornar-se pesado. Nalgumas casas guardavam um de tamanho médio para o S.Jorge. Era uma festa a que os brigantinos votavam um certo carinho. Meia cidade pegava no farnel, juntava a criançada e partia, acampando à chegada junto à Ribeira de S.Jorge e depois da missa e da visita ao Santo, regressava-se ao repasto, desta vez mais variado, pois havia quem levasse trutas de escabeche e salada de bacalhau com cebola e pimento espanhol.
Era agradável a frescura da ribeira e sentia-se o prenúncio do Verão!
Há muitos anos que não tenho notícia desta festa que era tão popular! A vida mudou e as coisas lindas desapareceram sem nos darmos conta. Que pena, foi, como deixámos de ser o que fomos durante séculos, assim num abrir e fechar de olhos.
Passado o S.Jorge havia um curto espaço de tempo até à feira das Cantarinhas. 
O dia 3 de Maio era para Bragança um dia especial. Sentia-se a magia no ar! Não sei quão longe no tempo aquilo começou. Sei que era tradição antiga e que todos velhos, novos e de meia-idade, ricos, pobres e remediados participavam com alegria e desenfado! Duas coisas faziam o encanto desse dia, as cerejas ainda novidade e as cantarinhas. Eu acho que estas duas coisas eram apenas para justificarem e encobrirem o apetite dos rapazes pelas raparigas e o das raparigas pelos rapazes. Mesmo assim era lindo o quadro imaginado com aquela multidão concentrada nas ruas centrais da cidade flanqueada pelos cestos carregados de hortaliças, mesas grandes com milhares de cantarinhas que as moças mais apetecidas coleccionavam como coleccionavam namorados e que também eram bálsamos para as menos desejadas pois com pouco se faz muito e o tempo era de ilusão e felicidade.
O dia do Senhor de Cabeça Boa era a cereja no topo do bolo que vinha sendo preparado desde os dias de Endoenças, quando afivelando no rosto um rito de pena e fé em Cristo se preparava a festa que no Sábado de Aleluia se começava a anunciar e que cumpria o seu desígnio na alvorada de boa nova na Páscoa da Ressurreição.
O mês de Maio era luz e porque Deus dá sempre com conta e medida também era o mês das trovoadas que chamávamos de Carocedo! Normalmente começavam a formar-se castelos de nuvens negras por cima do espaço geográfico dessa aldeia. Para nós os da Caleja era fácil a sua previsão pois da linha do combóio por cima da rua viam-se em linha reta as nuvens acastelarem-se e o ar que se tornava rarefeito e húmido era o prenúncio das famosas trovoadas que derrubavam o prestígio do Senhor Vasconcelos da Central, pois era certo que se apagava a luz.
As searas que já estavam crescidas tombavam com o peso da chuva e o furor de procela que as ocorridas entre as 05:00 e as 07:00 pm eram perigosas e faziam as mulheres irem detrás da porta pegar o Ramo bento, que diligentemente em tempo próprio havíamos preparado e agora ali estava para cumprir a missão de juntamente com uma prece a Santa Bárbara ter o poder divino de afastar a tormenta! -Santa bárbara bendita/Que no céu está inscrita / Com papel e água benta/Jesus livrai-nos desta tormenta/. Era este o remédio para as trovoadas, nem se necessitava outro pois desde que Benjamim Franklin inventara o pára-raios nos aglomerados populacionais as autoridades haviam colocado um no cimo da torre mais alta que era quase sempre a Igreja com os seus sinos que tantas histórias inspiraram. (Ó sino da minha aldeia/dolente na tarde calma/Cada tua badalada sôa dentro da mihn'alma/ (F.Pessoa).
Passava-se Maio no anseio de Junho. Os dias estavam cada vez maiores e o calor de Maio havia sarado as feridas das frieiras que eram um rosário de dor e comichão. Bota-lhes o pó de Maio. Em pequeno não entendia porque o de Maio seria diferente do de Abril ou Junho. Preciosismos para iniciados que os raparigos, (linda expressão da minha mãe que jamais encontrei em texto escrito), não captavam, pois aquele tempo era real com ar fácil de respirar e luz a jorros que nos enchia a Alma.
Recordo com saudade os ditos de minha mãe. Quando se queria mostrar arreliada dizia: -Rais parta os raparigos, não morrerem todos. Ia ao Cura pedir uma chocolateira grande e fazia-a cheia de café que me havia de consolar. Vejam que metáfora, porque as frases assim obscuras nos diziam que o Cura era o do Restaurante e aí era suposto haver loiça de tamanho avultado e a chocolateira era afinal onde ela faria o café, não chocolate, para já, liberta dos raparigos poder comemorar. Com bem pouco se consola o pobre! Fim de Maio, subtilmente entrava Junho e a vida era já outra. As idas ao Sabor eram já frequentes e os bailes do dia de S.João já se anunciavam. Primeiro viria o Santo António que quando eu era miúdo tinha o seu lugar na parte anterior do arco segundo da porta da muralha ali pertinho da tia Joana. Tinha uma caixa com um vidro que hoje já não tem e dizia-se que recebia pré como os soldados do BC3. Era como se fosse um militar pois tinha direito a promoções por tempo de serviço e consequente aumento de salário.
A festa na vila ao Santo António tinha a particularidade de ser algo muito querido às gentes da minha criação. Lembro com saudade o Terrão da Vila que com a maior paciência do mundo aturava o Venerando que contente pela Victória do Sporting, queria comemorar e só o fazia com tinto.
Chegava finalmente o São João. São João cravos aos molhos /Manjericos pela rua/E no sonho dos teus olhos /Balões grandes como a lua/. Havia festa em toda a cidade.
De pequenito o meu pensamento vai totalmente para a festa do Loreto. Fazia- se o baile em frente à casa das Manhuças. Eram três irmãs filhas desta terra que eu ainda hoje recordo com admiração, três belezas que deviam servir para serem o orgulho da cidade pois se apresentavam como fidalgas no meio do povoléu e que passe o exagero faziam parar o trânsito. Abençoada mãe que trouxe no seu ventre tal obra-prima que Deus se dignou legar-nos.
O tempo encarrega-se de erodir o que é belo, mas ainda resta a Teresinha que perdoem-me a insolência e o elogio, é ainda hoje uma mulher que ombreia com as Movi Star's pela elegância de corpo, beleza de rosto finura de cabelo uma classe na escolha do vestuário que faz inveja a muita senhora convencida! Eram pérolas do nosso povo, geradas por gente humilde mas honrada.

O Barril colocava os altifalantes na varanda da taberna do Senhor Batista e Senhora Constância e começava com a canção que na altura era novidade e também quadrava com a efeméride: -Pus um trevo num balão /E o balão mandei-o ao ar /S.João meu S.João /Galhofeiro, brincalhão que me quis contrariar. Música no ar e a rua ficava pejada de gente e o tráfego não fluía. Encalhava! Safavam-se pelo Senhor dos Aflitos onde morava o Senhor Nicolau Tolentino Saldanha, mas que nome mais bonito, ainda hoje além de uma recordação de admiração e respeito por este verdadeiro Cavalheiro quando passo ao Loreto soletro as palavras que formam este nome fino e de uma dignidade de português de lei! Ni-co-lau To-len-tino Sal-da-nha. Que beleza!
Havia mais bailes na cidade, chegamos a fazê-los na Caleja e dos bons, mas os do Loreto eram a coroa de Glória dos Bailes do S.João.

Vou parar aqui, pois são 08:00 e é tempo de barba e duche.
Voltarei de tarde se tudo correr bem.




A. O. dos Santos 
(Bombadas)

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