domingo, 12 de agosto de 2018

O Rei da Caleja

Por: António Orlando dos Santos 
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Tenho abordado algumas vezes o tema da vivência e interacção social na minha rua, ao tempo da minha meninice. Nunca porém chamei à colação o elemento individualmente mais dinâmico de todos os que lá viviam nas décadas de 50/60 do século passado. 
Para mim o centro de tudo o que possuía interesse era o chamado Pontão e no próprio Pontão a Oficina de Reparações Mecânicas do Sr. Manuel dos Santos Reis para nós o Manuel Reis ou tão só o Rei.
Era um dos homens mais trabalhadores que conheci!

Longe neste meu conceito de qualquer outro que me lembre ter conhecido. Controverso, de feitio arisco e às vezes exagerado, não deixava de ser um amigo de quem ele decidia que aquele outro era merecedor da sua amizade.Teve sempre a sua indústria e comércio solidamente solventes e prontos para atenderem às solicitações dos clientes que eram todas as pessoas que precisavam de comprar ou reparar veículos de duas rodas, motorizados ou não.
Motores de rega e aparelhagens de música para festas e bailes tanto na cidade como em todas as aldeias do Concelho ou Distrito.
Começava a trabalhar de manhã bem cedo e só terminava depois de anoitecer .A esposa Sra. Virgínia era uma senhora pacata e sempre ocupada na sua lida. Não tinha tempo ou feitio para nas noites de calor estival se sentar à porta falando de coisas banais como as outras mulheres normalmente faziam.Tinham dois filhos e duas filhas. Esses sim, tinham o seu espaço como toda a garotada para as brincadeiras em que participavam com os outros miúdos da rua. Eram ambos exímios no uso de bicicletas tanto de pedal como motorizadas. As meninas depois da Escola Primária e até aos seus vinte, vinte e poucos aprenderam costura na Dona Natália Romão que vivia e tinha atelier à Avenida do Sabor. 
Não havia lugar a ociosidades! Os rapazes Abílio e António, meninos ainda, eram já capazes de desmontar e refazer qualquer motor de qualquer marca sem se enganarem num parafuso ou anilha. 
Ora a verdade é que a garotada que ainda andava na Escola sempre que o tio Manuel Reis não estava por perto se chegava à porta da oficina para assistir de perto e com a máxima curiosidade ao labor dos dois irmãos que era naquele tempo algo diferente da regra. Dizia o tio Rei que (serviço de menino é pouco, mas quem o despreza é louco! Velho rifão que funcionava às mil-maravilhas.
Havia apenas o óbice de com aquela garotada à porta os jovens trabalhadores se distraíam e o serviço tinha menor aproveitamento. Ora chegando o tio Rei erra certo e sabido que corria o garotio com maus modos e gesticulando gritava: -Ala, Ala, figos ao Cabeço e grilos à Santa Cruz. Palavras ditas, o rapazio limpava para longe da porta e só regressava quando o ti Manuel ía de novo à vida.
Este homem sempre teve o condão de me intrigar quando me propus fazer uma análise ao seu carácter. Era demasiado complexo e de comportamentos diametralmente opostos em alguns assuntos e de uma consistência inabalável noutros .Como havia uma amizade grande entre mim e o seu filho António sempre me dispensou um tratamento mais condizente com o padrão dos outros adultos para com as crianças. Mas unicamente e só no que não tivesse com o facto de lhe distraírem a mão de obra. Aí não havia diferença, ia tudo aos figos e aos grilos onde é que eles estivessem. Eu evitava este estar e fugir para garantir o privilégio tacitamente acordado. Mas continuei sempre a considerá-lo um enigma! O seu comportamento era um pouco liberal para a época. Quando estava contente trauteava uma modinha que dizia: -Entra o farfalhão na roda/e vai à merda. Repetia esta ladainha infinitas vezes e esta atitude indignava e causava mau estar a certas pessoas mais ciosas do respeito devido, no uso da linguagem. Dava ele isso de barato pois os seus pruridos na matéria eram escassos. No resto era homem de negócios como poucos e tendo começado como serralheiro evoluiu para mecânico de bicicletas sendo muito competente na calibragem e enraizamento dos aros das rodas e assim adoptou uma profissão àquele tempo nova e que com a adição dos motores se tornou num bom negócio a exigir mais especialização.Teve também a lucidez de mandar o filho Abílio para Braga especializar-se em motores a dois tempos na Fábrica de Motores Pachancho.
Naquele tempo era grande a azáfama na Caleja do Forte. Havia a oficina do Reis que se sobrepunha a todo o resto chamado negócio. Era superior à soma do todo formado pelas tavernas, barbearia, alfaiataria e oficinas de sapateiro. Era constante o ruído dos motores que estavam em fase de teste ou que chegavam para serem reparados.
A partir da Páscoa sucediam-se as Festas em todo o Concelho e havia sempre alguém a ajustar preços para as Comissões poderem organizar a Festa da Aldeia que era levada muito a sério pelos mordomos. A toda a família Reis dava despacho. Constantemente se faziam testes à instalação sonora, Alô, alô , um, dois experiência de microfone, era interminável esta frase e outras de recorte técnico que preenchiam as manhãs e tardes da Primavera e Estio.
Sábados e domingos logo pela madrugada saíam os carros com as aparelhagens para as Festas regressando segunda feira quase sempre pela manhã, não havendo tempo para separar o fim da festa do início de um novo dia de trabalho. Aquela gente parecia ter saúde de ferro! Nunca soube que um deles estivesse doente. Os ajudantes apareciam e desapareciam sem se notar a mudança. Eram alguns Párias a quem o tio Rei dava comida e pagava um maço de Kentucky ou Provisórios e que carregam os auto falantes e os dependuravam nos postes ou beirais depois de aprontarem os fios que os ligavam ao sistema central, amplificador e gira discos. Nos amplificadores, gira discos, microfones e no material mais sofisticado apenas tocavam o pai ou os filhos. Era uma ciência que não se passava a estranhos com receio da concorrência à posteriori.
As reparações de material eléctrico mais sofisticado era entregue ao Sr. Sabino Ribeiro homem competente e honestíssimo ou no Porto onde em caso de maior o Rei não hesitava em deslocar-se no seu Ford modelo T, matrícula UU-03-86. Tudo estava preparado para dar o maior lucro possível, baseado na premissa de que ninguém estaria doente e pudesse atrasar o desempenho da tarefa em mãos e partir de seguida para a próxima.
O adjectivo que eu escolheria hoje para qualificar esta autêntica epopeia seria "Espantoso". Isto porque quem fosse estranho a estas andanças não arranjaria outro mais qualificativo. Era uma máquina bem oleada e assistida.
No verão havia ainda a venda e assistência dos motores de rega. Vendiam os da marca francesa Bernard com algum prestígio mas muita lenga -lenga. O discurso para papalvos era recorrente e servia para arranjar tempo e ciência para tirar a água do rio ou do poço de mergulho quase secos. Dava lucro mas era o calcanhar de Aquiles do negócio no Estio.
Foram assim crescendo sem alardes nem demonstrações de novo riquismo. Modéstia com limpeza. As Filanças, no vernáculo, Públicas eram consideradas inimigo número um sendo por tal razão imperativo mantê-las à distância. A actividade financeira do Crédito para compra de veículos de duas rodas que eram em número substancial já que houve tempo em que era raro o operário que não possuísse uma para se deslocar "até à obra" fazia-se muito sem intervenção da Banca. Os juros calculados conforme o tempo que levaria a pagar todas as prestações acertavam-se entre as partes e recorria-se a letras de câmbio apenas em caso que o comprador fosse totalmente desconhecido.
O pessoal operário foi sempre bom pagador e honrava a sua palavra. Fala-se muito da capacidade dos judeus amealharem fortuna. O tio Rei devia ter costela mas daquelas que não quebravam a não ser com trato de polé. Discreto, eficiente, organizado, persistente e acima de tudo, muito trabalhador.
É fácil imaginar o colorido, a alacridade, o ruído que esta actividade frenética emprestava à rua. Rapazes e raparigas vindos de todo o lado iam à Caleja para cumprimentar a família Reis. Eram antigos mordomos que haviam feito amizade porque além das notas de banco que lhes tinham passado para as mãos também lhes haviam dado alojamento e comida pois eles eram os mestres da música que alegrava o arraial com modinhas de música moderna fazendo vibrar os corações com, Ó José aperta o laço, ou o Arrebita do Conjunto António Mafra. Estava em moda o Tango dos Barbudos e de Nino de Murcia o sucesso discográfico Esperanza. Tudo estava dentro de caixas de madeira feitas para acondicionar a felicidade de Verão e manter feliz a efemeridade da Juventude.
O Rei sabia escolher e abria a carteira pagando os sucessos musicais comprados na Valentim de Carvalho ou na Vadeca. Etiqueta Philips ou RCA. Com as informações de antigos mordomos que sabiam quem os tinha sucedido na organização da Festa era fácil a abordagem antecipada que garantisse o contrato para o ano seguinte. A malha parava o grosso e deixava o pequeno crescer até que não pudesse escapar. Uma parte era facilmente identificável, o entendimento com os padres ou outros membros do Clero era esparso e quase desprezível. O tio Rei não era muito de diplomacias de capela ou sacristia . Dava-lhe campo e não incomodava. A parte mais deficiente do contrato era a qualidade do som na transmissão do Sermão...,mas tinha amizades com alguns, lembro o Senhor Padre Domingos de Rabal e alguns outros que gostavam da boa mesa e nas festas precisavam de tempo para almoçarem e o da música era quem sustinha os "cavais" para recomeçar o baile mais tarde, até à chegada da sobremesa e dos licores.
Acabado o tempo do Senhor Manuel Reis sucedeu-lhe o seu filho Abílio. Foram alguns anos bons mas já sem a a comunidade beneficiar do desempenho da firma rainha pois que foi suprimida para dar lugar ao elefante branco que dá pelo nome de Torralta. 
O Abílio ainda hoje lá está no seu posto. O trabalho já não é o que foi. Continua no entanto a dar assistência em mecânica e outras variantes modernas da locomoção em duas rodas. Com instalações mais adequadas e esteticamente bem concebidas está rodeado pelo deserto de um parque de estacionamento feio, junto ao Largo de S.João de Deus. (Óh minha querida rua).
O tempo dos figos ao Cabeço e dos grilos à Santa Cruz acabou! O entrar do farfalhão na roda também já não é possível e nós, os que fomos testemunhas do mau feitio do tio Rei mas também da sua grandeza como trabalhador e homem de negócios devemos dar fé de tal. Ociosidade nunca a conheceu nem a deixou chegar perto. Modéstia no viver desafogado foi o lema que norteou este homem sempre capaz de ganhar muito dinheiro dentro de uma conduta sóbria e moderada sem ostentação e sempre de cabeça erguida. Ele era de facto o Rei da Caleja.
Pelo ano de 1968, se não me engano. Faleceu o seu filho António (Toninho) que me atrevo a dizer era o seu filho dilecto. No seu posto de trabalho, na festa de Outeiro, um acidente com um cabo eléctrico que deficientemente isolado deixou passar corrente forte bastante para o fazer cair. Ele sofria de qualquer doença cardíaca e esse facto potenciou a probabilidade de morte de esse promissor rapaz. E aqui como em quase todas as circunstâncias similares começou o fim do reinado do Senhor Manuel Reis.
Há situações que por mais que se queira mudar o curso das coisas está escrito nas estrelas que elas serão assim e não de outra maneira. O fim de um elemento faz ruir o arco que a força de gravidade não destruiria, era a pedra angular duma construção físico sentimental que durou enquanto Deus quis. Com a perda do filho veio a tristeza morar em casa do Rei. (vide D.João II). 
Era já o segundo descendente, carne da sua carne que ele levava à sepultura. Tinha perecido antes uma menina, linda como o sol, nas suas palavras raras, de nome Maria que o tempo tinha quase ofuscado da memória superficial e que de repente se juntou ao destino dramático e recente. Surgia também o deixar da casa que ele tinha construído com o seu braço e que continha todo o poder e querer que a sua vontade de chefe de família lhe emprestou! Era para ele que tinha outras a Casa-Mãe, o seu braço, e seu querer tinham feito o abrigo para o descanso do guerreiro.
Deixou para o fim da vida a demonstração de algum alinhamento pelos cânones maioritariamente aceites. Ninguém alguma vez pensou que ele pudesse sequer pensar em algo transcendente que não tivesse relação alguma com os interesses mesquinhos da humanidade. Mas de facto creio que num tempo já final ele se voltou para o que os outros já temiam desde os verdes anos. A vida para além da vida! Estou convicto que Deus lhe concedeu a possibilidade de arrependimento por alguns excessos, ódios e cretinizes da sua vida militante. Recebeu, creio, o salário, pelo trabalho feito na vinha do Senhor que foi algum e de aproveitamento. Soube educar os filhos e soube amá-los à sua maneira, Severa, mas com honra! Há uma canção mexicana que reza assim: Como no naci en palácio /yo no soy hijo de un Rey /como no fur a lá escuela yo no sei o que és la ley . Mas a simples constatação disto deixa espaço ao menos a ir à escola .
Foi ele uma das figuras da minha meninice que maior proeminência atinge. E eu sei porquê. Por mais abordagens que faça ao seu carácter esbarro sempre numa complexidade inultrapassável. Homem de várias facetas manteve sempre uma que ele assumia por fora e por dentro a da verticalidade e independência.
Um dia vinha eu de férias da tropa, 70/73, e passando na 5 de Outubro ele viu-me e fez-me sinal para falar comigo. Lamentou a discórdia no seio da família, queixou-se de algumas afrontas e como quem confidencia a alguém em quem se confia disse-me: -querem-me lixar mas eu não me vendo nem por trinta mil contos. Era dinheiro que a mim não impressionou sabendo que quem mo dizia era o Rei da Caleja, ele mesmo e com lucidez.
Que Deus o guarde e o deixe descansar das canseiras de homem inteiro.

O seu amigo 





A. O. dos santos 
(Bombadas)

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