quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Os Governadores Civis de Bragança e a Comissão Municipal nos primórdios da república

O primeiro Governador Civil de Bragança do período republicano justifica alguma atenção – como se pode ver, aliás, por algumas notas que já fomos deixando –, pela ação que desenvolveu e, em especial, pelo papel que desempenhou, na qualidade de autoridade e de cidadão, nos primeiros tempos da República. Dados os méritos, o currículo e as ligações de João José de Freitas, parece óbvia a sua escolha para Governador Civil. O caráter decidido de militante republicano ter-lhe-ia conferido uma inquestionável disponibilidade para, com espírito de missão, exercer um cargo como este ao serviço da República, e entre as suas gentes. O apelo para desempenhar estas funções resultaria, ainda, da necessidade que, provavelmente, teria sentido de “enquadrar”, o mais rapidamente possível, estas populações e de contribuir, com a sua influência e a sua ação, para a aceitação do novo regime.


A Pátria Nova, logo a 12 de outubro, veicula, como seria natural, várias informações sobre o novo Governador Civil. Enfatiza-se-lhe o percurso de vida e as qualidades de caráter, e traça-se-lhe o perfil. Predominam as notas sobre o itinerário político republicano. “Não é um desconhecido. Não é um aderente da última hora. É um revolucionário desde os bancos da escola. Pertence a uma geração académica que deixa um nome inapagável no movimento republicano português. Mais tarde, na vida prática, foi ainda e sempre uma vítima das suas ideias políticas: preteriram-no escandalosamente num concurso para lente da Academia Politécnica do Porto, demoraram extraordinariamente o seu despacho para o liceu. Foi o último nomeado, tendo sido dos primeiros classificados. É muito querido no Distrito, onde goza de muito prestígio… A escolha do primeiro magistrado do Distrito não podia ser mais acertada, porque o sr. dr. João de Freitas conhece bem as necessidades do Distrito, visto que é filho desta região, e pela sua vasta capacidade intelectual, pelo seu acendrado patriotismo e pelas íntimas relações que o ligam ao Ministério, ninguém mais competente que ele para as resolver”. Alude-se às relações de amizade que mantinha e vai manter com o titular do Ministério de que dependia, António José de Almeida. São enaltecidos, ainda, outros atributos: “alma diamantina, ardente propagandista dos princípios democráticos, reorganizador nos últimos tempos no Distrito do Partido Republicano.”
No Jornal de Bragança, Raul Teixeira dispensa-lhe sentidas e elogiosas palavras: “tem o Distrito de Bragança à frente do seu governo – um homem. Um homem de talento e de caráter que nós, sem lisonja nem adulação…, consideramos como digno do cargo que exerce e que brilhantemente se destaca da vara de governadores que – exceção feita do dr. Álvaro de Mendonça – têm grunhido pelo Governo Civil, no nosso tempo”. “Por isso, e não tendo nós quaisquer relações com o novo Governador Civil da República, a transcrição que fazemos representa exclusivamente uma homenagem justa e merecida”.
E Raul Teixeira passa a transcrever – neste n.º de 23 de outubro – alguns excertos da obra de Joaquim Madureira (o “iconoclasta” Braz Burity): “O dr. João de Freitas é pouco menos de um desconhecido e não sendo, por isso, como toda a gente, um homem célebre, é, como raros o são hoje, nesta pavorosa crise de carateres, nesta pulhocracia de subalternos, uma cabeça que pensa, uma vontade que age, uma alma que sente, uma consciência que se revolta e uma individualidade que se impõe – um homem de caráter e um homem de bem… “Abalou, por esses mares fora, à cata de um pouco de liberdade em terra de negros e de opressões, em busca de um naco de pão que, duas vezes, no Diário do Governo, lhe haviam arrancado da boca… O que ele em África foi, como homem de convicções e de princípios, atesta-o essa história do Pro-Pátria que António José de Almeida contou minuciosamente aos leitores do Mundo, no dia da chegada a Lisboa do dr. João de Freitas, tentando assim, a par da consagração do camarada, apagar com a sua modéstia um dos seus mais legítimos títulos de glória e de orgulho – porque se o dr. João de Freitas foi em São Tomé o organizador cauto, metódico e perseverante do Pro-Patria, António José de Almeida foi a alma e nervo, o apóstolo e o criador dessa obra de humanitarismo. Foi-o em África o camarada, o coordenador, o amigo e o irmão de António José de Almeida. Foi-o em África, sê-lo-á, agora, no Continente... Um grande caráter que se não verga, uma grande consciência que se não aplasta, uma grande vontade que se não quebra e uma grande alma que se não polui”.
Com estas palavras e outras profundamente elogiosas de Joaquim Madureira, João de Freitas surge ao lado de grandes vultos da cultura e da política. São, em boa medida, palavras premonitórias: depois do regresso de S. Tomé, continuou a ser um entusiasta republicano e um “indefetível” companheiro de António José de Almeida.
Foi provavelmente por ele – por fidelidade a essa amizade e ao que pensava serem as ideias do amigo – que cometeu a loucura que o levou à morte.
O seu “reinado” à frente do Distrito durou pouco, uma vez que é eleito deputado para a Assembleia Constituinte, e terminados os trabalhos desta, é feito senador. A 20 de junho de 1911, toma posse do cargo de Governador Civil o seu irmão, António Luís de Freitas. Esta nomeação explicar-se-ia, em princípio, pela necessidade de continuar a apostar em alguém que fosse da inteira confiança do Governador cessante e do ministro do Interior. Luís de Freitas vai ter uma passagem meteórica pelo cargo, o que acontece por força do que se vai passar no contexto do agravamento da situação política e militar na zona de Bragança. As razões que teriam contribuído para a sua demissão estão relacionadas com as incursões couceiristas – Paiva Couceiro tinha entrado em terras do Distrito nos inícios de outubro de 1911. Luís de Freitas vai ser acusado de negligência e de incompetência por parte do Governo, uma vez que não teria avaliado devidamente a gravidade da situação, nem teria tomado as decisões mais apropriadas.
O Governador que o vai substituir, com caráter de urgência, é o capitão de Infantaria José Maria Quirino Pacheco de Sousa, empossado a 16 de outubro. Conclui-se assim que, quando Luís de Freitas responde à nota de culpa, já tinha sido indigitado o seu substituto. A resposta a essa nota e às acusações que lhe são feitas é um documento esclarecedor, por um lado, acerca do caráter de mais este Freitas e, por outro, das intrigas e lutas que já dividiam os republicanos.
Assiste-se por conseguinte, nestes tempos “primordiais”, a um “corrupio” de governadores civis em Bragança, o que pode ter que ver com as vicissitudes políticas e militares por que a região passou, resultantes das invasões monárquicas. A assunção do cargo por um oficial do Exército, que se poderá justificar face à situação vivida, teria sido o corolário lógico da demissão de Luís de Freitas, vítima de pugnas políticas que já se faziam sentir no Partido Republicano e alvo de acusações, muito provavelmente infundadas, que lhe atribuíam procedimentos negligentes. Teria sido, sobretudo, vítima e “bode expiatório” das limitações e das indecisões do próprio Governo, das dificuldades que este experimentava e das cisões que já agitavam a vida política.
Quanto à Câmara Municipal, recorde-se que a sessão de instalação e posse da Comissão Municipal Eletiva Republicana do Concelho de Bragança foi celebrada a 15 de outubro. O cidadão Augusto Xavier da Veiga Valente, “na qualidade de administrador interino do Concelho, disse que vinha dar posse à Comissão Municipal… que tem de gerir os negócios deste Município nos termos do decreto de 8 de outubro corrente”.
“Ato contínuo sob a presidência do mais velho dos membros presentes, João de Deus Afonso Dias, procedeu-se à eleição do Presidente e vice-Presidente”, respetivamente, Augusto Xavier da Veiga e Júlio Soares da Rocha Pereira.
Os pelouros ficaram assim distribuídos: serviços de fiscalização municipal, iluminação e viação municipal – cidadão Olímpio Dias; instrução e beneficência – cidadão Júlio da Rocha Pereira; açougues – Delfim da Conceição Conde; impostos e limpeza – cidadão João de Deus Afonso Dias; edifícios e propriedades a cargo do Município – cidadão João José Alves. Augusto César Moreno também integrava a Comissão. Logo nesta sessão, resolveu-se fazer um “balanço ao cofre municipal” e há uma deliberação para substituir os elementos da direção e administração do Asilo do Duque de Bragança.
A descrição de uma das primeiras reuniões da Comissão Municipal, de 20 de outubro, dá nos uma ideia da “agenda camarária” logo nos alvores da República. São (re)considerados alguns dos “magnos problemas”, que já vinham de outros tempos, herdados da Monarquia, que era preciso equacionar e tentar resolver. São tratados, por um lado, assuntos do quotidiano da coletividade, a merecerem despachos rotineiros, e ponderadas e tomadas medidas, por outro lado, que têm que ver com os novos tempos e que trazem as marcas do novo regime.
Foi presente um ofício, do “facultativo municipal deste Concelho, com sede em Izeda”, a comunicar que “incondicionalmente dava a sua adesão pessoal, bem como a cooperação leal ao novo regímen”.
São recebidas propostas, em carta fechada, para o “fornecimento de energia elétrica destinada à iluminação pública desta Cidade”, concurso que havia sido anunciado no Diário do Governo de 16 de agosto. As “folhas” locais noticiam frequentemente as tentativas adiadas de “iluminação… pública e particular e casas industriais”.
Tomam-se decisões relacionadas com a comercialização de carnes. Vários talhantes pedem licença para vender em “barracas” da praça (do mercado) e nas suas imediações. A maior parte é da mesma família e parece ter-se “cartelizado” para concertar os preços da carne: porco, 360 réis o quilo de lombo; e 280 a restante. Para a carne de vitela, mais em conta do que outras, as propostas iam de 280 réis o quilo de primeira qualidade, a 260 réis o de segunda.


Sendo urgente acautelar a administração económica e financeira, é nomeada uma lista de seis indivíduos proprietários, para serem escolhidos, “pelo delegado do tesouro, três vogais com que funciona a junta de lançamento da contribuições gerais deste Concelho, com relação às contribuições judicial, renda de casas e sumptuária”; é organizada, ainda, uma lista de seis “industriais”, para daí saírem os vogais da “junta de contribuição industrial”.
Por proposta da Presidência, foi deliberado que se representasse ao Governo provisório a prorrogação, por mais 15 dias, do prazo para o pagamento voluntário das contribuições gerais do Estado, o que se justificava pelo “estado precário do contribuinte”.
Por sugestão de Augusto Moreno, foi lançado em ata “um voto de sentimento pelas vítimas da recente revolução política”.

Título: Bragança na Época Contemporânea (1820-2012)
Edição: Câmara Municipal de Bragança
Investigação: CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade
Coordenação: Fernando de Sousa

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