sábado, 27 de outubro de 2018

A tia Preta, tia Aniceta e o Victor Salazar

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Vi hoje no facebook uma referência ao edifício dos CTT em Bragança e alguém referir uma tremoceira que estava frequentemente ali e pousava o alguidar dos tremoços no parapeito do muro que ladeia a entrada para o edifício, sempre do lado direito de quem entra.
Era a tia Preta, mulher que eu conheci em miúdo e de quem fui amigo incondicional desde os meus tempos de criança, quando ajudando a minha irmã Milú, a carregar o saco da roupa, que no Verão ia lavar ao Sabor, percorríamos a distância entre o começo da Avenida do Sabor e a (re)presa da Ponte Nova em grupo em que a amizade e entreajuda eram o paradigma. 



Era certo e sabido que para além do grupo da tia Lúcia, avó do Luís Carcaça, estava também o grupo da Vila que tinha como líder a tia Aniceta e que como elemento identificador à boa maneira náutica portuguesa se exibia sempre à proa em posição de timoneira a tia Preta que morava na Vila e era lavadeira e no seu tempo fazia de pregoeira de tremoços e também de alcaparras e outros mimos.
Aconteceu no Verão do ano de Graça de MCMLXI (1961), sendo provavelmente meados de Junho. 
Estava um Sol resplandecente e um azul claríssimo como só em Bragança é possível apreciar-se dada a ausência de poluição que é a causa primeira, responsável pelo escurecimento do brilho do astro-rei e a subsequente escuridão que ensombra a abóbada celeste retirando às almas o prazer de viver usufruindo da luz que nos torna alegres e bem dispostos. A introdução é apenas um preâmbulo que me parece indispensável para fazer sobressair a acção que posteriormente se desenrola nas imediações dos CTT's e tem como protagonistas, um padre alguma raparigas, dois garotos da cidade e a tia Preta, tremoceira e o Victor Salazar que era contínuo da Inspeção de Trabalho e que sendo de estatura meã e de porte pesado surge inesperadamente no enquadramento da porta de acesso voltando para a rua no momento em que o padre nos agride com violência.
Recuemos um pouco. Eu havia sido incumbido pelo meu patrão de ir à Estação do Caminho de Ferro levantar uma encomenda e o mesmo acontecera ao Valdemar Lopes meu condiscípulo e que naquele tempo era empregado no Cazão da Sapataria junto ao Café Flórida e que como era meu amigo, fez questão de me acompanhar à ida para cima e à vinda para baixo. 
Após o Tio Correia, O Ralha nos ter dado para a mão duas formosas encomendas que deveríamos entregar direitinho e em excelente condição no nosso local de trabalho, descemos a Avenida João da Cruz e como estava bastante calor resolvemos descansar um pouco sentados num banco de pedra que ainda existe no Edifício onde hoje se encontra a delegação da Companhia de Seguros Fidelidade e que era ao tempo o Escritório de Advogados do Dr. Gonçalves &. Dr. Ponte. Sentados com as caixas pousadas no chão à nossa frente, vemos passar um carro preto Modelo dos anos 50's que com todas as janelas abertas deixava ver uma cena insólita em que um homem ainda novo mas vestido de preto e cabeção ao pescoço ria e com as mãos fazia gestos de querer agarrar as moças que faziam mais ou menos o mesmo, dando gritos estridentes de contentamento. Soubemos depois que eram estudantes que vinham fazer exames de 5" ano liceal e traziam como responsável pela sua custódia o dito padre que aproveitava a ocasião para se divertir e aproveitar o momento e a ocasião de estar longe do lugar onde seriam reconhecidos fazer o que lhe estava vedado por quesitos de pudor e códigos de conduta em que a Igreja naquele tempo era pródiga.
Vendo a cena eu e o Valdemar gritámos em uníssono: -Eia pá deixa as moças que ainda são de menor. Confesso que após o sucedido me arrependi mais por reconhecer que não era assunto da nossa competência e que foi temerário fazê-lo com aquela fera que nos calhou em sorte. Após o nosso comentário o padre mete freio ao carro e pára-o em frente à casa da D. Albininha Guerra, sai fora e dirigindo-se a mim e ao Valdemar e sem mais delongas, prega-nos duas lambadas a cada um que mais pareciam dois tiros de arma de guerra. Fiquei, melhor dizendo ficámos sem fala, surpreendidos e bastante magoados com a violência com que o cavalheiro reagiu contra duas crianças que excedendo-se no comportamento usualmente dispensado aos clérigos resolveram espontaneamente verberar o acto deste, que aos olhos das ditas crianças era também um excesso, pois a relação com as jovens que o acompanhavam não eram de molde a cumprirem com o decoro e contenção esperada de um ministro da Igreja que era também educador.
Adiante, a tia Preta deixa o alguidar e enfurecida com o que havia presenciado vai direta ao padre e diz-lhe em bom vernáculo brigantino: -Seu bardino, não se envergonha de bater assim em duas crianças desta idade? Canalha pior que a canalha! 
O padre talvez por achar que dominaria facilmente a fúria de uma mulher do povo e já acima da meia idade, disse qualquer coisa em tom agressivo. Surge imediatamente o Victor Salazar que atira: -tire o cabeção que você é indigno de usar, um representante da Igreja de Cristo mais cretino que um fariseu e fero como um criminoso das legiões ao serviço do Império Romano! O padre retrocedeu admirado com o discurso do Victor Salazar, pensando talvez , que seria alguém de posição, capaz de o incriminar por assalto violento a duas crianças.
Retorna a tia Preta invectivando-o com linguagem de quem era fluente em disputas em que o vernáculo agressivo era arma a ter em conta. Levou apenas uns segundos a que o padre reconsiderasse e lesto virasse costas e correndo para o carro rapidamente desaparecesse deixando-nos aos dois garotos benzidos do aberto e bem convidados, pagando-se da ousadia de lhe termos dirigido a palavra e aos adultos que saíram em nossa defesa indignados e lançando -lhe impropérios que não seria bonito eu aqui reproduzir.
Mas tanto eu como o Valdemar éramos tudo menos piegas e quando serenaram os ânimos, levantámos ferro e fomos para o nosso destino, que urgia andar rápido que o atraso já era notório.
Chegado com a encomenda intacta foi-me perguntado o que ocasionara tal atraso. Contei o sucedido e a reacção do maioral foi a que a hipocrisia dos beatos falsos invariavelmente usa: -Para ele vos bater foi porque vós fostes mal educados, pois um padre não se excederia sem razão maior.
Assunto arrumado, uma coisa eram a tia Preta e o Victor Salazar outra era a ideia absurda de quem pensava que os bons instintos eram feudo dos fidalgos e clérigos. Disse quando contei a história da minha ida à Central Eléctrica com o do circo, que além das dez reguadas que o Professor nos deu sem razão que o justificasse, outras violências sofri de pseudo educadores incapazes de refrearem instintos recalcados e cobardes que incapazes de enfrentarem os seus pares, se vingavam nas crianças, a coberto de darem educação aos filhos dos outros que os criavam sem suspeitarem dos maus instintos de quem tinha obrigação de ser carinhoso e tolerante.
À tia Preta e ao Victor Salazar dediquei uma amizade e reconhecimento que foi todo o tempo que viveram, o mais sincero de que fui capaz e mantenho ainda hoje saudosamente. Ao meu amigo Valdemar mantive com ele duradoira amizade que muito prezo. Ao padre perdoei-lhe, pois nunca guardei rancores e aos que não souberam esconder a parcialidade ignorei-os, porque mais não mereceram. A verdade é que foram os mais humildes dos que assistiram à patética cena, quem foi capaz de sair em defesa da parte fraca e fazer fugir a quem pensava fazer justiça de Inquisidor.
Foi a referência ao Edifício dos Correios e a lembrança de alguém que lhe juntou a lembrança de uma mulher que vendia tremoços e foi muito minha amiga no tempo em que a amizade era coisa guardada com sinceridade e que nem a morte destruiu que me fez recordar desta passagem menos agradável da minha infância –juventude





Bragança 16/10/2018
A. O. dos Santos
( Bombadas)

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