sábado, 17 de abril de 2021

Café Almeida, no Jardim chamado de Dr. António José de Almeida

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Nasceu em Lamego, na freguesia da Sé aos vinte e um dias do mês de Junho de 1911. Seu pai republicano militante, baptizou-o com o nome do demagogo, republicano, que em 1919 chega à Presidência da República, onde se mantém até 1923. O rapaz é criado num ambiente republicano, o que o marcará ideologicamente, num tempo e num espaço geográfico onde os acontecimentos e vicissitudes da Primeira República, convidavam mais ao reaccionarismo monárquico e trauliteiro.
Era mais ou menos assim que quando eu era jovem com os meus treze ou catorze anos, o Senhor Almeida me explicava porque era do contra e me alertava para a contenção nas palavras sempre que se falasse de política. A vida tinha-o ensinado, que o heroísmo de boca se pagava caro quando os esbirros resolviam cobrar a conta das ingenuidades. Era mais frutífero ser firme nas convicções do que fala-barato sem prudência.
Quando chegou a idade de ingressar nas fileiras,  escolheu a Armada onde serviu sob as ordens de um Oficial também ele destinado a ser Presidente da República,  mas agora num contexto quase fascizante.
Já na situação de disponibilidade, aventura-se numa vinda para Bragança onde trabalhou no Café Chave d' Ouro e depois de algum tempo, analisando a vida da cidade, que naquele tempo estava em desenvolvimento, resolve estabelecer-se por conta própria, tendo iniciado a actividade como patrão no Café que denominou, Café Almeida, logo ali à entrada do Jardim bem no centro da cidade.
Nos anos de juventude teve alguns momentos mais atribulados, mas que não sendo nada de dramático e por falta de pormenores, não abordaremos dado que a omissão em nada condiciona a narrativa, bem pelo contrário, pois nos liberta para descrevermos a saga e a persistência que foram necessários para edificar um estabelecimento de Cafetaria e entretenimento que marcou a geração anterior à minha, a minha e a seguinte e continua ali firme para logo que os fregueses queiram, voltar a ser o Almeida do nosso tempo.
Quando abriu morava no primeiro andar um Meretíssimo Juiz que posteriormente foi transferido ou reformado e regressou à sua procedência. Abriu-se assim a possibilidade de o Senhor Almeida ocupar a residência "above the shop" e poder trazer a mulher e uma filha que tinha nessa altura dez anos.Todos os outros nasceram em Bragança.
Iniciada a actividade, com a ajuda de um cunhado, de nome Moisés e de um brigantino, o mais castiço dos que nasceram nesta terra, o Renato, irmão do Duarte Conés e do João Laurindo, Alfaiate. Este homem era um tratado de boa disposição e disponibilidade para tudo o que fosse uma brincadeira que não prejudicasse ninguém. Um dia falaremos dele.
Dizia eu que iniciada a actividade o Café depressa se afreguesou pois passou a ser um espaço essencialmente para operários mas que pelas características do "Staff" e a existência de bilhares (2) e de mesas de "matraquilhos” (4), estes na cave, aqueles no Café, convidava a classe mais elevada amante dos jogos de salão e da boa comida e bebida e esta respondeu em forma pois recordo-me de serem frequentadores assíduos, o Dr. Gonçalves, Dr. Zé Faria, Dr. Ponte e Dr. Aristides. Alguns professores do Liceu e Escola Técnica e muitíssimos viajantes que naquele tempo demandavam Bragança, vindos do Porto e outras terras de indústria, que davam à cidade um ar cosmopolita que hoje não tem, infelizmente direi eu. Não me parece que deva fazer aqui apreciação comparativa, mas parece-me pertinente dizer que o Almeida tinha um ambiente onde as classes se diluíam e davam lugar a um convívio bairrista e muito republicano.
Os comerciantes da Praça eram quase todos clientes assíduos. O senhor Teixeira da Casa das Malhas e os irmãos e para nivelar simplificando, retiro a todos os que mencionarei o Senhor pois sei que não me levarão a mal. O Queiroz, (grafia do topo da porta da loja), os irmãos Cazão, o Sousa e o Victor Fotógrafo. Funcionários Públicos eram O Amílcar Gorgueira, o, Zilhão o Toninho Cordeiro, O senhor Salgado e tantos outros que levaria horas a mencionar. Falta a base que era constituída por centenas de "artistas" que cobriam todo o espectro das artes e ofícios. Sapateiros, Alfaiates, Trolhas, Ourives e Relojoeiros, Lenhadores e Ferroviários Pintores, Picheleiros e Electricistas, enfim, a fábrica da cidade que ia ao Almeida para conviver, comer, beber e jogar sem ser de azar.
Recordo que a esposa e as filhas trabalhavam no duro também! Não havia dia que às 07:00 da manhã não fosse esfregado com escova , água e sabão aquele soalho de madeira que ocupava as duas salas do piso à face da rua. Criou ali quatro filhos, duas raparigas e dois rapazes, com a educação e o respeito de quem é exigente consigo e com os seus.Todos ajudavam no que podiam e sabiam sendo que a Maria e o Eurico, poderiam servir como casos de estudo. Sem diminuir o Avelino e a Mila que considero muito, direi que a Mila era protegida da imã e o Avelino do irmão.
Bela família, sóbria, respeitadora e honesta.
Poderia contar milhentas histórias do Petra, do Marques, do Guicho, do Dr. Gonçalves e do Victor Fotógrafo, para não nomear mais gentes que durante anos e anos preencheu o espaço físico do Café Almeida e ocasionaram as situações mais cómicas ou pícaras que não caberiam nesta crónica.
Não resisto a contar uma a que eu assisti, teria eu os meus dezasseis anos e havia já uns anos que uma mulher se enforcara na Taberna do Reino à Rua Guerra Junqueiro. Estava presente o Dr. Gonçalves e o Victor Fotógrafo. Estavam também o Fininho e o Leonel Petra, para além de uma catrefa de gente de todas as condições e idades.
A discussão acendeu-se e o assunto era a data do infeliz acontecimento. Morreu em tal e não em tal e as razões começaram a extremar-se. Alguém alvitrou que se entrasse ao Cemitério e se verificasse a data do falecimento na pedra funerária do jazigo ou sepultura. Ofereceram -se o Petra e o Fininho na condição de a malta que não entrasse ao Cemitério aguardasse no portão para proteger a retirada se necessário ou até caso a Polícia interviesse.
O Dr. Gonçalves conferenciou com o Victor Fotógrafo e o Victor sumiu.
Avançou-se para o Cemitério por volta das 03:00 da matina. Encostou-se alguém na parte baixa do muro perto do Galinho e com as mãos entrançadas fez de escada e subiu o Petra e outro pois o Fininho se negou à última hora! Ouviu-se o baque dos pés a baterem no solo fofo junto ao muro, primeiro de um depois outro. Juntos encetaram cautelosamente o percurso entre a Campa do Jorge e algures no terreno, a sepultura da senhora.
No caminho que leva à Capela do Repouso ouviram ruído que os sobressaltou e subitamente surge-lhe uma figura saltando e esbracejando coberta por um manto branco que emitia um som lúgubre. O Petra parou expectante como quem não acredita mas está pronto a dar corda aos sapatos. O outro é que não quis certificações e começa a gritar, ó alminha não nos leves que eu tenho filhos p'ra criar. Acudam que há almas do outro mundo. A situação estava para atingir o paroxismo quando o lençol salta para o ar e segundos intermináveis depois cai no chão. Era o Victor Fotógrafo que fora a casa e trouxera um lençol para fazer de fantasma, como combinaram previamente ele e o Dr. Gonçalves .
O sócio do Petra fedia que tresandava, o Petra estava assim assim, pois no momento da visão não sabia muito bem se devia entrar em pânico ou manter o sangue frio. A tensão acumulada foi mais ocasionava pelo pânico do sócio do que verdadeiramente o acreditar no que estava vendo.
O Grazil já era muito e ajudava ao cepticismo. O problema foi para os tirar de dentro do Cemitério. Foi preciso ir ao muro do fundo, voltado para o Seminário que era mais baixo e penso que confinava com um terreno lavrado do Porfírio. Só mais tarde foi aumentado o terreno do Cemitério.
No dia seguinte não se falava de outra coisa na cidade e a freguesia do Café Almeida ia aumentando pois era ali que aconteciam as coisas mais insólitas e inimagináveis.
De outra vez o Verbo e o Zé Verdegaio apareceram às quinhentas, os viajantes e não só, tanto chatearam o Verbo que foi buscar o Stradivarius. Por precaução trouxe com ele o Homer. Realejo-harmónica de beiços. Esteve duas horas a afinar o violino, mas como sempre não tocou uma nota, porque, dizia ele, não estava inspirado.
Resolveu-se então tocar um tango na harmónica de beiços! Aí era ele mestre. Saiu El Choclo, e o baile começou com o Zé Verdegaio em grande forma: A música fluía e alguém cantou: Con esto tango/Que és burlon e compadrito/Ya todos sabem lá ilusion de mi subúrbio/Con esto tango nacio un tango/Y con un grito/subio del sórdido barrial buscando el cielo/... Era o Almeida da minha juventude, tempo e gente que foi e não volta.



Bragança 27/10/2018
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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