terça-feira, 30 de outubro de 2018

INQUISIÇÃO – LUTAS POLÍTICAS – PUREZA DE SANGUE (4) - VILA FLOR: ÂNGELA LEMOS

Depois de ouvir muitas dezenas de testemunhas em Vila Flor, Torre de Moncorvo, Lisboa, Aveiro e Setúbal, os inquisidores não conseguiram saber se Ângela Lemos era cristã-velha inteira, como ela dizia ou se tinha alguma percentagem de sangue judeu, como afirmavam os denunciantes.

Foi presa em fevereiro de 1667, com base em uma dezena de denúncias feitas por cristãos-novos de Vila Flor dizendo que com ela tinham feito cerimónias ou declarações de judaísmo, 4 delas em sua própria casa, e uma no seu quintal. Outra testemunha contou mesmo, com todos os pormenores, a celebração de uma “missa judaica” presidida por um oficiante de T. Moncorvo, na qual participou Ângela de Lemos.

Seis anos depois, em março de 1673, foi solta como “levemente suspeita” e presumindo que ela foi vítima de uma “conjuração” urdida por Diogo Henriques Julião e outros cristãos-novos de Vila Flor, em vingança contra as famílias nobres e da governança da terra.

Sem dúvida que a sua prisão se inscreveu no domínio da luta política que, com mais ou menos intensidade, se desenrolou em Vila Flor, como, aliás, na generalidade das terras Transmontanas, mais ou menos em paralelo e como pretexto na questão religiosa.

Razões para os cristãos-novos se vingarem de Ângela é que não faltavam, derivadas da profissão e atividade do seu marido, Luís Cabral de Sousa – tabelião do público judicial e notas, conforme ela explicou aos inquisidores, em muitas audiências.

Na verdade, Luís Cabral(1) era um dos homens nobres de Vila Flor que a inquisição costumava encarregar para executar prisões, como foi o caso de Inês Álvares e Maria Lopes Vinagre, presas na grande leva de novembro de 1664 e que ele fez “com toda a satisfação, dando inteiro cumprimento ao que lhe mandavam”.

Sendo notário do público judicial, competia-lhe também assistir e “tomar nota” nos inventários dos bens sequestrados aos que iam presos, trabalho que ele fazia “com todo o zelo e cuidado da Fazenda Real”.

Parte dos bens sequestrados eram logo vendidos em hasta pública para se fazer dinheiro e pagar as despesas da prisão e condução dos prisioneiros para Coimbra. Obviamente que, algumas vezes, tais bens eram arrematados por umas “cascas de alhos” pelos nobres da terra, seus familiares ou apaniguados. A propósito, veja-se a seguinte declaração de Ângela perante os inquisidores:

— A viúva que ficou do Alferes de Vila Flor e suas filhas (…) todas são suas inimigas e de seu marido por lhe comprar alguns móveis ao tempo de suas prisões, e por o marido da ré ser o que as prendeu (…) e lhes comprar os seus móveis.

Para conduzir os presos a Coimbra, com seu “ fato, cama e cozinha” tomavam-se cavalgaduras, de forma algo suspeita, dependendo dos “humores” do responsável pela prisão ou condução, nisso havendo pessoas que teriam queixas contra o marido de Ângela de Lemos.

A este respeito temos uma história incrível, com o cristão-novo João Lopes a tentar “entalar” Luís Cabral, na sua qualidade de “homem da inquisição”. Com efeito, dirigiu-se a ele dizendo que desejava ir a Coimbra apresentar-se na inquisição. Para isso, necessitava de transporte que não tinha, e pedia a ele, Luís Cabral, que lhe emprestasse um macho… Obviamente que este não lhe emprestou o macho, mas nem por isso João Lopes deixou de ir a Coimbra e… Ironia: este João Lopes foi a Coimbra dizer que Luís Cabral e Ângela Lemos, em sua própria casa, se declararam judeus, com ele e com sua prima Inês Álvares Vinagre!(2)

João Lopes, Inês Vinagre, Isabel Coutinho, Constança Rodrigues seriam alguns dos que foram apresentar-se em Coimbra, pagos por Diogo Henriques Julião e por ele instruídos para denunciarem como judeus os nobres que “se mostravam solícitos em dar ajuda e favor nas prisões dele confitente e das pessoas de Vila Flor que foram presas”.

Esta foi a defesa apresentada por Ângela Lemos (e outros nobres acusados falsamente). Vejamos um pouco das suas próprias palavras:

— A ré foi culpada por conjuração que contra ela e outras pessoas ordenou Diogo Henriques e outros seus parentes e apaniguados de Vila Flor, dando meio tostão por dia aos que vieram testemunhar (…) e João Carvalho, de Vila Flor dizem também ser da conjuração e é inimigo do marido dela ré e a razão da inimizade foi por que, tendo tomado ambos os foros do senhorio de Vila Flor, depois disso, ao fazer as contas, tiveram grandes dúvidas e diferenças, de que ficaram inimigos e por tais conhecidos.

Na verdade, este João Carvalho,(3) foi um dos 30 e tantos cristãos-novos presos em Novembro de 1664 pela inquisição em Vila Flor e, em Coimbra, perante os inquisidores confessaria o seguinte:

— Haverá 3 meses e meio, na cadeia de Torre de Moncorvo, se achou com Pedro da Costa, procurador de causas em Vila Flor e com António Álvares, natural de Chacim e morador em Vila Flor, mercador, e com um filho natural do mesmo, chamado Francisco Álvares, solteiro, também mercador, e com Gonçalo Lopes Vinagre, sapateiro, e com os sobreditos Diogo Mendes Papoina e com um sobrinho deste chamado Gaspar Mendes, moradores em Vila Flor; e disse Pedro da Costa que agora que vinham presos para esta inquisição era tempo de se vingarem de alguns escudeiros de Vila Flor, que tinham parte de cristãos-novos (…) E ele confitente e outros da sua companhia disseram que não denunciavam. E Pedro da Costa tornou a dizer que se ele tivera 3 ou 4 homens do seu humor, haviam de fazer nesta matéria de denunciar nesta inquisição contra os ditos cordeiros mestiços de Vila Flor uma coisa que fosse soada.(4)

Era o levantar do véu sobre a “conjuração” dos “falsários” de Vila Flor. Mais explícitas foram as confissões de Genebra Alvim, cunhada de Diogo Henriques Julião e de Branca Rodrigues, sobrinha do mesmo, que confessaram ter jurado falso contra Ângela e contra as outras pessoas da nobreza de Vila Flor, em plano arquitetado com outros e para se vingarem deles.

Outra prova da “conjuração” e da “falsidade” das denúncias dos que se foram apresentar em Coimbra, foi reconhecida pelos inquisidores quando chegou a notícia de “terem fugido para Castela logo que chegaram a Vila Flor, idos desta cidade onde se vieram apresentar”. Obviamente que tinham medo de ser presos por “falsários”, crime bem mais grave.

Quanto a Ângela Lemos, regressaria a Vila Flor, bem mais velha e alquebrada, possivelmente mais compreensiva com as mulheres cristãs-novas e sem vontade de repetir os insultos de outrora chamando-lhe “judias, perras, putas, cadelas”.

Resta falar desta mulher que nasceu em Lisboa, cerca de 1633. O seu pai, Manuel Borges de Lemos, natural de Torre de Moncorvo, encontrava-se ali ao serviço da casa dos Senhores de Sampaio.(5) A mãe, Juliana Pereira, natural de Setúbal, viera para Lisboa, ao serviço da senhora condessa de Vila Franca. A propósito do casamento de Manuel e Juliana, a patriarca da família Lemos, vª, natural de Santarém, moradora em Lisboa, em casa de seu filho Rafael de Lemos, advogado da Casa da Suplicação, familiar do santo ofício “que sentiu o casamento de Manuel Borges, por lhe dizerem que casava pobre, em tanto que ela o remediou com algumas coisas”.

Andava Ângela pelos 8 ou 9 anos quando os pais a trouxeram para Torre de Moncorvo e a casa de morada era no castelo, pois que o seu pai foi empossado pelo Senhor de Sampaio, como seu representante, no cargo de alcaide.

O casamento de Ângela Lemos com o tabelião de Vila Flor Luís Cabral de Sousa, ter-se-á realizado ao início da década de 1640, no castelo de Moncorvo, certamente com a presença dos senhores condes de Sampaio.

Com o casamento, Ângela abandonou a morada do castelo de Moncorvo mudando-se para Vila Flor, para o paço dos senhores de Sampaio. Era também um ambiente fidalgo, espécie de “Corte na Aldeia”. Sim, que o Paço era frequentado pela família dos Senhores, pelo ouvidor, o capelão, o notário, o procurador, o alcaide… Até o espaço urbano da vila ganhou designação específica e esta é uma nota bem interessante para o estudo do desenvolvimento urbano da vila. A propósito, veja-se o testemunho de Maria Lopes Ramalha:

— Disse que conhece muito bem Ângela Lemos, haverá 16 anos, por serem vizinhas e morarem no Terreiro do Paço do senhor desta vila adentro.

Notas:

1 - inq. Coimbra, pº 5956, de Ângela Lemos.

2 - Inq. Coimbra, pº 2880, de João Lopes; pº 10441, de Inês Álvares.

3 - João Carvalho pertencia a uma família de cristãos-novos do Felgar e Mogadouro que fugiram para Madrid e ali se tornaram grandes mercadores. João teve menos sucesso que os irmãos pois faleceu nos cárceres da inquisição. Inq. Coimbra, pº 8994.

4 - Pº 5956.

5 - De acordo com o testemunho de Paulo Couraça Teixeira, homem nobre de Torre de Moncorvo, Manuel Borges de Lemos entrou ao serviço dos senhores de Vila Flor em 1631. Este Manuel Borges de Lemos era filho de António Borges de Castro, escrivão do público judicial de Torre de Moncorvo e sua mulher Ângela Lemos, natural de Aveiro, moradora em Lisboa, também na casa dos Senhores de Vila Flor, que os seus pais serviam.

António Júlio Andrade / Maria Fernanda Guimarães
in:jornalnordeste.com

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