sexta-feira, 9 de novembro de 2018

O meu avô Artur

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")

Hoje vou contar-vos algo de alguém que não conheci! Dá para compreender como escutando os mais velhos, se sensatos, podemos, quando crianças, construir imagens que se conservam para sempre como reais e, assim, sentirmos as pessoas que são representadas nessas imagens como nossas, verdadeiramente!


Nascido e criado em família numerosa, não é estranho que me recorde de cenas menos usuais e, ainda hoje, me divirta a contá-las ou simplesmente relembrando e deixando que o colorido das cenas me façam sorrir de tão inusitadas.
Não conheci o meu avô, pai da minha mãe. Quando nasci, já ele tinha falecido. Tenho, no entanto, uma ideia dele quase tão nítida como se ele tivesse acompanhado, como aconteceu com os meus irmãos mais velhos. Baseando-me em algumas fotos que havia lá em casa, construí uma imagem física que inclui até a forma como ele se sentava no escano da cozinha, sempre acompanhado da cabaça que era sua companhia sempre que, ao fim do dia, se sentava para jantar e descansar. 
O meu irmão mais velho encarregou-se do resto, contando-me as histórias mais insólitas, e de realçar o seu modo de ser e até de pôr em evidência o seu ceticismo quando as ideias e crenças que ele não partilhava. Crítico feroz da Igreja e do Clero, não deixando de ser crente. Era-o à sua maneira, tendo uma ideia de divindade que de forma alguma se enquadrava na ortodoxia. A sua arte de alvenéu, pedreiro de alvenaria e, desde as fundações ao telhado, sabia fazer obra limpa. Daí a história que o meu irmão contava e que, ainda hoje, me encanta pelo inusitado da situação e a forma de equacionar um problema, que o era, de forma tão imaginativa. Para um simples operário, quase sem instrução académica, era, no mínimo, invulgar que ele fosse tão persistente nas suas convicções e método de as expor.
Vamos à história para contarmos uma estória. Estava-se no verão e tinha o meu pai decidido fazer limpeza no telhado de uma casa que, por ajuste, ele andava a reparar. Acrescento que o meu pai era empreiteiro da construção civil e o meu avô trabalhava com ele. Coube ao meu avô ser o oficial designado para tal missão. Aconteceu que, à hora do almoço, o meu avô e o Naté tiveram uma discussão cujo objeto era exatamente sobre a existência ou não de um Ser que tudo houvesse realizado e em tudo pudesse intervir, mesmo mantendo-se oculto. Em suma, estavam em confronto duas ideias opostas, a do Naté que cria piamente n´Ele e a do tio Artur que, contrariamente, O não aceitava sem que lhe fossem mostradas provas concretas da Sua existência. 
A discussão foi renhida e sobrou para a segunda metade do dia. Subiu o meu avô ao telhado e, levando consigo uma pequena vassoura de piaçaba para a limpeza das telhas, recomeçou o trabalho. Como estivesse ainda excitado da discussão com o Naté, descuidou-se e deixou cair a vassourinha para a rua. Prontificou-se o meu irmão para a recuperar. Ordem imperativa do meu avô ao neto: “ Não vais, não. Deixa que eu espero e, se é verdade que existe Deus, a vassoura há de vir cá para cima! Assim tiraremos dúvidas e ver-se-á quem tem razão.” Escusado será dizer que, às cinco da tarde, o meu avô continuava sentado no mesmo sítio e a vassoura, imóvel na rua, esperava que alguém a recuperasse. Bateram a prancha, sinal de dia completo, e o tio Artur levantando-se declarou urbi et orbi: “ A razão pertence-me! Ficou hoje provado à sociedade que Deus não existe! Pedi que a vassoura subisse e ela manteve-se imóvel. Ninguém creia no que é só imaginação. Esta, sim, é a prova irrefutável das minhas afirmações.”
O meu pai sorriu e mandou recolher a ferramenta. Em casa, durante uns dias, a conversa foi recorrente. O meu pai ordenou que não houvesse mais conversa sobre o assunto. Ele era um verdadeiro crente e achava um sacrilégio toda aquela idiotice. Para ele, Deus era e ponto final. O meu avô, pelos vistos, continuou na dele e assim morreu, com um pé cá e outro lá e a cabeça ao lado.





Paris, 06/05/2018
A. O. dos Santos
(Bombadas)

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