sábado, 19 de janeiro de 2019

António Magalhães e a Tinto Cão como a melhor casta portuguesa para as alterações climáticas

A resposta às alterações climáticas não pode ser igual para todo o território. Terá que ser feita região a região e até vinha a vinha, porque, dependendo da localização e da exposição, as temperaturas podem ter variações assinaláveis.

Nuno Oliveira

Que ninguém se ofenda, mas é difícil encontrar no Douro um viticólogo tão competente e didáctico como António Magalhães, o chefe de viticultura da Taylor's. Estudioso e profundo conhecedor da história vitivinícola da região, tem estado na dianteira da requalificação da paisagem vinhateira duriense.

Esta segunda-feira regressou à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), onde se licenciou, para assumir o papel de professor e ministrar a aula inaugural do primeiro curso de Managing Wine Businesses, promovido pela Porto Business School e pela UTAD. O tema era a produção de uvas e, em pouco mais de uma hora, deu uma lição exemplar sobre a relação do clima, do solo e das castas (o chamado terroir) com o perfil de cada vinho e a importância cada vez mais determinante da localização do terreno e da escolha de variedades de uvas mais resistentes para enfrentar os desafios criados pelas alterações climáticas.

Sabia que, num ano típico, chove ainda menos no Pinhão, no centro do Douro, do que em Reims, na região de Champanhe? Neste caso, o que difere de forma decisiva é a temperatura média: no Pinhão é de 15,7 graus e em Reims é de 10,9. São estes quase cinco graus Celsius que explicam que a região de Champanhe se tenha adaptado ao clima produzindo champanhe, aproveitando a elevada acidez das uvas por falta da maturação, e o Douro tenha seguido pelo vinho do Porto, dado as uvas serem deficitárias em acidez e ricas em açúcar. Parece óbvio, não parece?

Hoje, o Douro não produz só vinho do Porto. Produz também DOC Douro e em poucos anos este segmento deverá ser dominante. Com este novo vinho, a região teve que se adaptar de novo e começou a subir do rio para a montanha, regressando à mesma linha de partida: como lembrou António Magalhães, a região duriense teve início em Lamego, precisamente a uma cota entre os 500 e os 600 metros. Quem diria!

De Lamego, o Douro foi descendo até ao rio. Passou depois para a margem direita, mais quente. E foi subindo na encosta e alongando-se ao longo do vale, descontinuando a vinha a partir da altura em que a aridez torna a viticultura mais difícil. No início do século passado, e com mais força no início deste, voltou a cruzar-se essa fronteira, com grandes investimentos no Douro Superior mesmo junto ao rio. Até agora, o recurso à rega tem bastado para ultrapassar a aridez.

Mas, dentro de 50 anos, se se confirmarem os piores cenários, muitas destas novas vinhas podem tornar-se inviáveis, uma vez que a água, além de escassa e cara, não será suficiente para enfrentar o aumento da temperatura, como enfatizou o climatologista da UTAD João Santos, que fechou o primeiro dia do curso Managing Wine Businesses com uma exposição, diria, cruciante sobre os novos desafios das alterações climáticas para a viticultura (tão assustadoramente realista só mesmo a intervenção de Carlos Peixoto, director de viticultura da Ramos Pinto, que, a propósito dos custos de produção de uvas no Douro, confirmou o que já se sabia: para um produtor não ter prejuízo, devia receber por cada quilo de uvas entre 90 cêntimos a 1,20 euros, quase o dobro do preço a que são pagas actualmente as uvas para DOC Douro). A partir de uma certa temperatura (cerca de 36 graus), mesmo que tenha água disponível, a videira deixa de trabalhar; e, no futuro, haverá cada vez mais dias com temperaturas acima dos 36 graus. As previsões apontam para um aumento mais acentuado da aridez na envolvente do Mediterrâneo (mais calor e menos chuva), afectando dramaticamente as zonas mais quentes de Portugal, como o Douro Superior e o Alentejo interior. Na faixa Évora-Beja até à fronteira com Espanha, o cenário é mesmo de extinção da cultura da vinha.

Embora Portugal tenda a converter-se, em termos gerais, num país de clima subtropical seco, a resposta às alterações climáticas não pode ser igual para todo o território. Terá que ser feita região a região e até vinha a vinha, porque, dependendo da localização e da exposição, as temperaturas podem ter variações assinaláveis. Cada 100 metros de altitude corresponde a 0,65 graus de temperatura e a temperatura numa vinha exposta a sul é de cerca de dois graus mais elevada do que numa vinha exposta a norte. Ou seja, num mesmo lugar do Douro, por exemplo, é possível ter uma vinha situada a 100 metros de altitude e exposta a sul e outra situada a 400 metros de altitude e exposta a norte com uma diferença de temperatura entre ambas da ordem dos quatro graus.

Não há, por isso, nada de mais errado do que dizer que o Alentejo é todo igual e que o Douro, ou até mesmo o Douro Superior, é todo igual. Nuno Magalhães, professor emérito de Viticultura e que também leccionou no primeiro dia do curso, lembrou que o padrão climático de Vila Real é semelhante ao de Monção e do Dão, que a Régua é o espelho de Óbidos e de Portalegre e que igual a Barca de Alva só mesmo Tavira. Como as diferenças são mais significativas em regiões de montanha, António Magalhães considera o Douro como um “laboratório vivo para as alterações climáticas”. Além de ser uma região muito heterogénea em termos orográficos, tem também inúmeras castas com comportamentos diferentes ao calor.

Uma das mais resistentes e extraordinárias é a Tinto Cão, tradicional no vinho do Porto. António Magalhães recordou que, já em 1771, Rebelo da Fonseca se referia à Tinto Cão como uma casta que “amadura bem, e não seca, nem apodrece, e não produz excessivamente". "Porém, a sua produção toda se conserva e dela se faz o vinho mais coberto, forte e generoso”. Talvez por ter estes e outros atributos, como ser bastante resistente ao escaldão e amadurecer tarde, a Tinto Cão tem sido uma das castas mais fiéis ao Douro, sendo uma das poucas que resistiu à filoxera.

António Magalhães não tem dúvidas: se tivesse que escolher uma casta portuguesa para responder às alterações climáticas, elegeria a Tinto Cão. Faz todo o sentido. Além de ser uma variedade muito resistente na vinha, podendo ser plantada a cotas mais baixas, dá ainda vinhos extraordinários, tanto generosos como tranquilos. Nos tranquilos, os vinhos começam tímidos e fechados, mas, a partir de certa altura, aceleram e ultrapassam todos os outros.

Pedro Garcias
Fugas
Jornal Público

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