segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

OS ALMOÇOS NA CASA DOS POEMA(*)

Por: Antônio Carlos Affonso dos Santos
(colaborador do "Memórias...e outras coisas..")
São Paulo - Brasil

Até que a menina Panda quis portar-se como adulta durante aquele almoço. Em primeiro lugar porque todas as vezes que tinham visitas para o almoço, Panda podia exibir toda sua versatilidade:     - do alto dos seus oito anos de idade, ela vivia rascunhando figuras: bichos da Fazenda Santo Antônio, monstros imaginários ou do espaço, a natureza; além de inventar estórias! 
A menina tinha um ar frágil, talvez devido à bronquite asmática que a torturava desde os seus dois anos de idade. Geralmente vestia-se de vestidos longos, os seus favoritos; levava à cabeça uma boina azul, última e única peça que sobrara de uma maravilhosa roupa marinheira que o Carlinhos da Fazenda São José, vizinha à Santo Antônio, ganhara há dois anos, por ocasião de sua primeira comunhão, e que lhe dera de presente no final do ano letivo da Escola Rural, no ano anterior. Em segundo lugar porque, embora sem dar-se conta, a menina Panda nutria pelo Carlinhos um amor pueril, e por isso mesmo levava sempre à cabeça aquela boina, já um tanto desbotada, mas linda aos olhos da Panda, como se fosse para marcar a presença daquele garotinho. 
Naquele ano o Coronel Poema resolveu que daria um grande almoço para todas as crianças da escola, junto com as duas professoras que moravam na Santo Antônio durante a semana, mas que e nos finais de semana voltavam para suas casas, na Cidade da Serra.

Começaram os preparativos com uma semana de antecedência. O último dia de aula foi num seis de Dezembro, época de fim de primavera e início de verão nos trópicos, e por isso mesmo bastante quente. Nesse dia, as professoras resolveram inovar e optaram por presentear os seus melhores alunos com livros de histórias. Eram clássicos, como: - O Patinho Feio, A Cigarra e a Formiga, A Raposa e as Uvas, A Bela Adormecida, Noventa e Três, O Tronco do Ipê, Robinson Crusoé, El Cid, Ali Babá e os Quarenta Ladrões, A Moreninha, Memórias de um Sargento de Milícias, O Triste Fim de Policarpo Quaresma, Capitães de Areia, A Bagaceira, Capitu e etc. Como já era esperado, a Panda Poema era uma das agraciadas; o Carlinhos também! O grande almoço foi marcado para o dia oito de Dezembro, aniversário da mimada Panda Poema, a pedido desta. Como sói acontecer, um dos motes das conversas naquele dia eram os livros distribuídos pelas professoras.

O Azolino Ferrari ganhou o Noventa e Três, e agora pôs na cabeça que queria ser soldado: disse que iria para a França e se alistaria no regimento Noventa e Três, se ele ainda existisse, é claro. Ele imagina que a idade (dele) também é um empecilho, afinal ele tem só oito anos de idade; mas isso é o que ele queria. O Juan Gimenez, o Juanito, que nasceu na Espanha, ganhou o Robinson Crusoé, e deseja ardentemente ir viver numa ilha deserta. A única diferença do herói, é que o Juanito quer que sua mãe, Dona Pilar, vá com ele. 
O Chiquinho Bérgamo, que ganhou o El Cid, disse que queria uma espada bem grande e pesada, além de um cavalo ensinado, mas que ele não quer lutar contra os mouros não, ele quer é apostar corrida com o cavalo preto do Dito do Retiro, e mostrar a espada para ele toda vez que o Dito mostrar aquele canivete de dez folhas que ele tem! Já o Dito do Retiro, só quer encontrar nesta vida um amor como o de Capitu, nada mais. Ele disse que só vai ter um amor na vida, mas que este amor vai ser o mais lindo do mundo. 
O Manoel Pereira, que nasceu em Portugal, ganhou o livro Capitães de Areia, disse que na região em que morava em Portugal fazia muito frio em Dezembro e o mar ficava longe, mas que se o mar fosse p0erto, ele iria todos os dias na praia, para tentar encontrar os Capitães de Areia. 
O Giuseppe Sassoli, que todos chamam de Zézão (devido ao seu enorme tamanho), disse que nunca viu uma raposa em toda a sua vida de dez anos, mas se ele tivesse uma plantação de uvas e aparecesse por lá uma raposa, ele daria de bom grado alguns cachos de uva para ela, pois sua ”nona” sempre diz que é muito triste não ter o que comer, e que sua “nona” passou fome no navio, quando veio para a América. Neste ponto a Panda Poema disse ao Zézão que América era um outro país; o Carlinhos disse que não, que era um continente; iniciando então uma discussão que só terminou, graças à comida que começou a ser servida, e à Dona Lalá, uma das professoras, que disse que os dois tinham razão, mas que ela só explicaria depois que almoçassem e que distribuíssem os demais livros para os outros alunos. Durante o restante do almoço, tanto a Dona Lalá, como a Dona Olga, incentivadas pelo Coronel Poema, queriam que as crianças falassem sobre os livros que ganharam e o que acharam deles. 
O Ivan, mais conhecido como Pila, espanhol, dizia que tinha vontade de morar numa usina de açúcar, para poder brincar no pátio, na bagaceira, igual aos seus novos heróis. Ele disse que perguntou à Dona Carmem, sua mãe, como era uma usina de açúcar e sua mãe teria dito que lá na Espanha não havia usinas de açúcar; o que a Panda achou um absurdo! A Vita, disse que gostaria de conhecer o mar, e que quando fosse à uma praia pela primeira vez, ela iria provar se realmente a água era salgada, e que depois iria arranjar alguns amigos e amigas e que sairiam todas as manhãs percorrendo a praia para presenciar o comportamento das pessoas na presença de crianças desconhecidas, e ver se encontravam a Dora e o Sem Pé, “Capitães de Areia”. Disse ainda que iria tomar sorvetes todos os dias, e beber água de coco. O Noacir, disse que não gostou do livro que ganhou porquê quando leu, ele chorou, e quando ele chora fica muito triste. A Panda Poema ficou tão chocada com o depoimento do Noacir, que também fez beicinho! O José disse que gostou da história da cigarra e a formiga, mas achou que a cigarra era muito malandra, porque só ficava cantando enquanto a formiga trabalhava, e se ele fosse a formiga não daria guarida para a cigarra. 
A Dirce disse que deve ser emocionante estar dormindo por muitos anos e acordar com o beijo de um príncipe. Neste instante os olhos da Panda brilharam, ela imaginando-se vestida de princesa e dormindo, sendo acordado pelo Carlinhos vestido de príncipe. O Laudelino, o Lau, que era negro, disse estar horrorizado com o relato dos castigos que os senhores infringiam aos escravos. O Paulo Nakamura disse ter adorado a estória do Ali Babá e os quarenta ladrões, e que seus tios e avós disseram que não existia tapetes voadores nem na Arábia, nem no Japão, nem em nenhum lugar do mundo, mas mesmo assim ele gostou. A Dona Olga, perguntou então ao Carlinhos se ele gostou do livro que ganhou. O Carlinhos disse que ele adorou a estória do patinho que era o mais feio da sua família e que por isso mesmo era detestado, tanto pelos irmãos quanto pela mãe que o ameaçava o tempo todo, dando-lhe bicadas doloridas, e o Carlinhos achava que, se fosse ele, iria embora, tal e qual fez o patinho, mas na história, o patinho transformou-se num belo cisne, sendo então invejado inclusive por sua mãe pata e seus irmãos, patos comuns.
Por último, a Dona Lalá pediu que a garota Panda falasse a respeito do seu livro. Ela disse que a garotinha que vivia na Ilha de Paquetá, amava um garoto da ilha, e que este lhe deu um broche de presente no dia em que mudou para uma cidade grande. Depois de muitos anos, chegaram alguns rapazes para visitar a ilha, e um deles estava procurando um amor da infância. Quando a garotinha, agora uma mocinha, estava andando na praia, usando o broche, um rapaz lindo a encontrou, se olharam e se reconheceram. E viveram felizes para sempre, sentenciou a Panda Poema. Ao terminar o relato a Panda não deixou de olhar para o Carlinhos, desejando ardentemente que um dia ele lhe desse um broche, para assim viverem um  romance tão bonito como o da “Moreninha”. 
O Carlinhos, à esta altura, já estava tratando com o Dito e o José para irem pescar no Córrego do Pântano, pois acabara de saber pelo Pila, que o Zé Delfino pegou uma traíra de dois quilos, ali, bem ao lado de sua casa. Os três meninos falavam em voz baixa, para que os outros meninos não soubessem das suas intenções e que o córrego estava lotado de traíras de dois quilos cada uma; e ademais já haviam comido, estavam de férias e precisavam se distrair. 
As meninas, também cochichavam, agora marcando o dia do batizado da nova boneca da Panda. Logicamente, elas iriam convidar todos aqueles garotos. Sem notar que a observavam, a Panda esqueceu-se de seu belo vestido e aos bons modos, foi até a roda dos meninos, deu um beijo no Carlinhos e saiu correndo, em direção à casa. Perguntado pela dona Lalá, sobre o que teria ocorrido com a Panda, o coronel Poema disse apenas: -“ela está demonstrando toda sua felicidade”. Preciso convidar estes garotos mais vezes. Dito isso, o Coronel Poema sorriu um sorriso doce, fazendo lembrar seu tempo de criança. As professoras ali presentes, também cúmplices, sorriram. Houve muitos outros almoços na casa dos Poema.

(*)Nota do Autor:

Este conto foi publicado à página 103 do meu livro “Fragmentos”, em São Paulo, Brasil, pela extinta Editora Nativa, em 2004. Foi criado em abril, do distante ano de 1999 (portanto no século passado).

Antônio Carlos Affonso dos Santos
– ACAS. Nascido em julho de 1946, é natural da zona rural de Cravinhos-SP (Brasil). Nascido e criado numa fazenda de café; vive na cidade de São Paulo (Brasil), desde os 13. Formou-se em Física, trabalhou até recentemente no ramo de engenharia, especialista em equipamentos petroquímicos.  É escritor amador diletante, cronista, poeta, contista e pesquisador do dialeto “Caipirês”. Tem textos publicados em 8 livros, sendo 4 “solos” e quatro em antologias, junto com outros escritores amadores brasileiros. São seus livros: “Pequeno Dicionário de Caipirês (recém reciclado e aguardando interesse de editoras), o livro infantil “A Sementinha”, um livro de contos, poesias e crônicas “Fragmentos” e o romance infanto-juvenil “Y2K: samba lelê”. 

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