terça-feira, 27 de agosto de 2019

A doceira americana que mudou as mulheres de uma aldeia do Douro

Quando chegou a Trás-os-Montes, em 1987, o feminino não se conjugava em Portugal da mesma forma a que Puri Fernandes se tinha habituado nos EUA. Isso mudou e com a sua ajuda.
Foto Leonel de Castro/Global Imagens

Não há como Puri", garantem os amigos. E Parambos, freguesia do concelho de Carrazeda de Ansiães, onde mora, sentiu a turbulência da chegada desta americana, em 1987. Purificacion Fernandes, de 70 anos, conta como um suspiro dos EUA mudou para sempre uma pequena aldeia do Douro. Depois de anos a viajar pelo mundo, entre a língua portuguesa, a espanhola e a inglesa, e de uma carreira de nome nos EUA, goza agora a sua reforma (de forma ativa) nesta localidade que ajudou a mudar, entre a adrenalina de um negócio de compotas e o alojamento rural numa casinha de campo.


Trocou Washington pelo Douro a proposta do marido, o "senhor doutor" Mário Vasco Fernandes, reconhecido médico, cientista e pintor, de raízes portuguesas - mas sem nunca ter morado em Portugal. A casa era da família e resolveram comprá-la quando o pai de Mário morreu. Ele apreciava mais Lisboa, mas Puri queria mesmo era a sua casa no campo. Mantiveram-na propositadamente como uma habitação parada no tempo, de traça antiga e característica de Trás-os-Montes. Quase se podia adivinhar a que zona do país pertence mesmo que só a víssemos pintada num dos quadros do seu já falecido marido.

Só se diferencia da maioria das casas de Parambos por não ter um grande cartaz verde e branco à porta, com uma qualquer frase em declaração de amor ao Sporting Clube de Portugal. Não fosse esta considerada a aldeia mais sportinguista do país. Há anos que 100% dos seus habitantes partilham o mesmo clube. E nem Puri escapou. Não há rasto de Sporting cá fora, mas lá dentro guarda cachecóis e camisolas verdes e brancas. Uma delas onde tem inscrito o logótipo do negócio que fez florescer quando chegou a Parambos e pelo qual é mais popularmente conhecida. Desta casa, saem os famosos Doces da Puri, compotas artesanais de todos os tipos de fruta que planta na sua quinta.

Foto Leonel de Castro/Global Imagens

Estamos na cozinha, onde Puri mexe com firmeza um creme de marmelada, com uma colher de pau, enquanto recorda o ano de 1995. O mesmo em que decidiu lançar este pequeno-médio negócio, que de local já corre mundo. No terreno que a família do marido lhes deixou em Parambos, nasciam várias árvores de fruto, com fruta a mais para duas pessoas. Rodopia a colher com mais força e continua a contar. Foi numa ótica de reutilização que Puri decidiu, então, fazer delas creme, ao qual chamaria compota. Começou por fazê-la sozinha, até as encomendas não chegarem para duas mãos, tendo agora três outras mulheres ao seu serviço. Entretanto, o creme já fervilha na panela e toda a atenção tem de estar naquela mestria. Em segundos, a marmelada está pronta a ir para as taças de porcelana. Ou para as embalagens de plásticos e vidro, se já tem dono à espera.
Foto Leonel de Castro/Global Imagens

Já lá vão vários prémios para os doces que saem desta cozinha diariamente. Uns nacionais, outros internacionais. Mas "não há segredos", garante Puri. Só uma filosofia, que vai aplicando à vida: "No que toca a doces, nunca se pode mudar a receita original." Por isso é que, aos 70 anos, também já não tenciona abandonar Parambos, a sua primeira receita portuguesa.

Mudar a aldeia, mulher a mulher
No início de 1987, o país preparava-se para umas eleições legislativas que viriam a manter Aníbal Cavaco Silva no lugar de primeiro-ministro português. Portugal andava devagar, não muito longe da ressaca dos tempos de repressão. Ainda mais nas pequenas localidades, e Parambos não era exceção. A pequena localidade de menos de 300 habitantes não estava preparada para, de repente, receber um pedaço do norte da América, tão livre e desperta. Nem para Puri Fernandes. Mas a norte-americana lembra como a sua chegada "veio provocar várias mudanças na aldeia, principalmente para as mulheres".


Teve "uns problemas" no início. Era a esposa de Mário Vasco Fernandes e não a Puri. "Não me reconheciam o direito de responder a nada sequer." Mas respondia, garante.
Foto Leonel de Castro/Global Imagens

"O meu marido fazia aqui produção do vinho e, na altura das vindimas, os ajudantes tinham por tradição limpar o sapato do dono da terra quando ele chegava. Mas não era o dele que limpavam. Era o meu."

Lembra-se da estranheza que causou e daquela que sentiu quando chegou. "Estávamos a construir esta cozinha e chamámos uma pessoa referenciada aqui da aldeia para a pintura. Quando estava a pôr andaimes para pintar, eu pensei: 'Vou aproveitar para ajudar, até porque sou boa com pinturas.' Eu subi e, imediatamente, mostrou-se chateado por uma mulher se estar a meter no trabalho dele. Disse-lhe 'vai ser mais fácil dar um pontapé no seu rabo e atirá-lo lá para baixo do que você tirar-me daqui de cima'. E ele percebeu que com esta não se brinca", recorda, sem conter uma gargalhada.

O que "era aceitável nos EUA, cá nem pensar". Nem mesmo uma mulher lavar um carro. "Quando cheguei, sempre que convidava as mulheres para algo, diziam-me que não podiam porque os maridos não deixavam ou que iam perguntar-lhes se podiam ir. Mas fui mostrando que nós temos um papel maior do que este enquanto mulheres. Que ser eu a lavar o carro, por exemplo, não me tira nenhum pedaço."

Aos poucos, a norte-americana viu a aldeia transformar-se. Deixou de ser a esposa de alguém para ser a "dona Puri". Rapidamente, provocou um reconhecimento que nenhuma outra mulher parecia ter naquela aldeia. "O meu marido fazia aqui produção do vinho e, na altura das vindimas, os ajudantes tinham por tradição limpar o sapato do dono da terra quando ele chegava. Mas não era o dele que limpavam. Era o meu."

Nos cargos que ocupou, era a única mulher entre homens. "E quando se trabalha só com homens, aprendes a sobreviver como mulher e a afirmar-te no meio deles."

Nunca pensou acerrimamente se a determinação com que define o papel de uma mulher na sociedade é fruto da vida ambulante que leva desde que tem meses de idade, de contacto com diferentes culturas ou do caminho profissional que escolheu. Adivinha que seja um pouco dos dois, mas que talvez se deva mais às profissões que exerceu. Primeiro, trabalhou como como membro do quadro internacional de programas de desenvolvimento regional e social na Organização dos Estados Americanos (OEA). Depois, nos programas sociais da Fundação Pan-Americana para o Desenvolvimento.

No caso de ambos os cargos que exerceu nos EUA, lembra que "era a única mulher entre homens". Ou "one of the guys", como costuma dizer. "E quando se trabalha só com homens, aprendes a sobreviver como mulher e a afirmar-te no meio deles", conta. "Se faziam uma piada, eu chutava uma pior e acabava ali a conversa."


Pouco a pouco, Puri foi provocando uma revolução silenciosa entre as mulheres. Mas não foi apenas o papel feminino que mudou em Parambos. Conta que a chegada do casal teve também influência na forma como os locais olhavam para as suas habitações. Onde viam uma casa longe de acompanhar os tempos modernos, Puri via a beleza da tradição. "Houve uma altura em que as pessoas queriam desmanchar as casas e construir novas, de tijolos. Eu dizia-lhes para não o fazerem, que tinham casas tão bonitas de pedra, para as preservarem", conta. Assim foi, na maioria dos casos.
Foto Leonel de Castro/Global Imagens

Um amor em Washington que se prolongou até ao Douro
Puri nasceu na Galiza, onde não ficou mais do que meses, até os pais se decidirem mudar para a Argentina por motivos profissionais. O pai tinha uma carreira de sucesso na indústria de fornos elétricos. Por isso, quando a filha tinha apenas 5 anos, voltam a voar, desta vez sem trocar de continente: para o Brasil. Primeiro, em Brasília, depois no Rio de Janeiro.

Só mais tarde, era ela uma estudante de Direito, conhece o pai de um dos seus três filhos, com quem queria experimentar a vida nos EUA. Mas apenas quando já estava separada e com um filho com meses de vida, em 1970, é que Puri assentou neste país. E mesmo com tanta outra vida passada até lá chegar, que lhe deu até um sotaque brasileiro quando fala português, considera-se "100% norte-americana".

Corria o ano de 1978 quando abriu espaço a um amor que a acompanharia para o resto da vida. Neste ano, Puri e Mário Vasco Fernandes cruzaram pela primeira vez caminhos, numa conferência em Washington. "Tinha ele acabado de ficar viúvo", lembra.

Puri confidencia mesmo que Mário "foi uma vez indicado para o Prémio Nobel da Medicina".

Puri conta a vida de Mário em tom de admiração. O médico veterinário foi também o cientista que ajudou a criar a vacina da raiva, que substituiu a descoberta de Pasteur. Durante cerca de 30 anos, ocupou os quadros superiores da Organização Mundial da Saúde, entre 1965 e 1989.

Viajou o mundo, ancorado na profissão, mas mais em pormenor a América do Sul, onde criou um instituto que alcançou a erradicação da febre aftosa. Geriu ainda uma instituição que coordenava a saúde de toda a América Latina e assinou centenas de trabalhos em revistas científicas conceituadas. Puri confidencia mesmo que Mário "foi uma vez indicado para o Prémio Nobel da Medicina".


Depois de reformado, aos 73 anos, dedicou-se a uma paixão antiga: a pintura. Mostrou a sua obra a Carrazeda de Ansiães, que de tão encantada decidiu, em 2015, dar o seu nome a uma das suas ruas - agora Rua Dr. Mário Vasco Fernandes. Mário pintava sobretudo cartas de amor às tradições transmontanas, as suas casas e becos. A técnica tinha aprendido há mais de três décadas, quando frequentou escolas da Academia de Arte Livre de Paris, nos anos 1950.
"Já sou transmontana", não teme em dizer. "Aqui ou nos EUA, estou em casa."© Leonel de Castro/Global Imagens

A sua vida começou 20 anos adiantada à de Puri Fernandes. "Estávamos em fases muito diferentes da vida, mas resultávamos porque ele sabia que eu estava bem com ele, mas estava muito bem sozinha também. É a segurança de que um relacionamento precisa, seja ele qual for", explica.


Portugal só foi um plano por consequência da sua história de amor e é o país onde Puri pretende gozar o resto da vida. "Já sou transmontana", não teme em dizer. "Aqui ou nos EUA, estou em casa."

Catarina Reis
Diário de Notícias

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