terça-feira, 27 de agosto de 2019

MINORIAS MAIORITÁRIAS

Entre as centenas que chegavam e partiam apareceu uma garota brasileira, preta, numa turma de décimo ano. Para mim à partida era apenas mais um, tanto se me dava. E a ela pelos vistos também, pois exibia um ar de quem estava de férias ná európá (e de facto estava, como se veio a constatar), o que para um brasileiro parece ser o suprassumo. De forma que se limitava a curtir, a gozar o panorama, a tentar transformar aquilo tudo numa espécie de rave party. Não que isso a distinguisse muito da maioria dos autóctones, mas um dia, a páginas tantas, já depois de ter abundantemente esticado a corda, endereçou um daqueles comentários soezes a uma parceira das filas de trás e não tive outro remédio se não expulsá-la. Levantou-se a custo, a clamar injustiça e a trovejar abominações que ao sair descarregou na porta, não sem antes ter desferido uma farpa peçonhenta: êzti prôfêssô não góztá di pêssoáz difêrêntiz!
Descontando o lado burlesco, o incidente parece-me ilustrativo de algo que à falta de melhor eu classificaria como racismo-ao-contrário. Embora as atitudes que o caraterizam transcendam a questão da raça e se estendam a outras minorias, em traços gerais elas resumem-se a fazer render o rótulo de desfavorecidas que lhes é colado. De que modo? Agravando alguma discriminação que possa existir, e sempre existirá, gritando aqui d’el rei perante o que se suspeite serem ameaças, ainda que leves, ainda que imaginárias, reivindicando um estatuto à parte que as compensaria do suposto desfavorecimento, proclamando mesmo o direito a condutas infratoras, tais como apedrejar polícias e outras que tais. E era assim protegida, assim estribada nessa condição de membro de duas minorias exploradas, jogando a cartada da vitimização, que a brasuquinha pretendia reinar. É certo que para tanto contava com algum sentimento de culpa, e portanto de complacência, por parte de um elemento da maioria exploradora, o professor. Mas como este não estava pelos ajustes, logo “não gostava de pessoas diferentes”.
Quase nem valeria a pena falar da dificuldade em definir o conceito de desfavorecido, dado nunca ser evidente demarcar fronteiras nítidas entre aquilo que é e o que não é. Inserir alguém nessa categoria ou noutra qualquer é muitas vezes um ponto de vista que depende da época, do lugar e do observador que o faz. Além disso é sempre necessário contar com a relatividade das coisas. Uma minoria que se tenha por marginalizada aqui no espaço da união europeia, por exemplo, goza de apreciáveis garantias se comparada com imensas maiorias espalhadas por esse mundo de cristo. O que mostra também que é possível a uma pessoa pertencer ao mesmo tempo a uma minoria desfavorecida e a uma ou várias maiorias privilegiadas, considerando-se elemento da primeira e omitindo a(s) segunda(s) se em determinadas circunstâncias lhe der jeito.
Mais constrangedora é a noção de que não é por integrarem grupos de alguma forma considerados desfavorecidos que as pessoas deixam de ser pessoas. É perceber que os “diferentes” não são assim tão diferentes daqueles que acusam de segregação. Se não, vejamos. Há minorias que costumam ser marginalizadas, estigmatizadas? Pois há. Mas maiorias também. Tenhamos em conta que a história universal tem sido um longo percurso em que todo o tipo de minorias tem segregado, subjugado, explorado maiorias, independentemente de umas e outras serem constituídas por negros, imigrantes, ciganos, homossexuais, canalizadores, limpa-chaminés. Qualquer grupo minoritário que ganhe alguma ascendência e se guinde ao poder esquece rapidamente a antiga condição e passa a subjugar, discriminar, explorar os outros, isto é, as maiorias.
À parte todos os progressos, é assim que somos. Primeiro os meus interesses e os do meu grupo e muito lá para o fim (e se calhar), o bem comum, a solidariedade, a ética, os valores. Uma fatalidade. Daí a minha desconfiança de que, no caso de eventualmente o poder sorrir um dia às suas minorias ditas desfavorecidas, apanhadas à brida solta, não tardaria a que os homossexuais me declarassem degenerado, os ciganos colocassem sapos à entrada das lojas onde quisesse entrar, os negros instituíssem um apartheid que me isolaria deles e respetivos privilégios, os imigrantes me barrassem a entrada no “seu” novo país. Pessimismo? Não creio…


Eduardo Pires
in:jornalnordeste.com

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