quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Um tempo passado, um tempo presente e um tempo que virá. 1ª PARTE

Por: António Orlando dos Santos (Bombadas)
(colaborador do "Memórias...e outras coisas...")


Casa Velasco. Sr. Cândido e D. Ofélia
Sempre que dou por mim a recordar a minha meninice, surpreendo-me por notar que as imagens registadas, que se alinham, quase em sequência, são mais nítidas do que aquelas mais recentes que se apresentam como uma neblina que impede a recordação que vezes sem conta me impedem de visualizar detalhes que não consigo lembrar claramente.
Assim, ultimamente com a proximidade da quadra natalícia essas imagens mais antigas surgem em catadupa e eu tenho só que as alinhar cronologicamente e registá-las por escrito ou difundi-las verbalmente.
O princípio é sempre o mesmo, Caleja e ruas adjacentes, com a Alexandre Herculano liderando a fileira de acontecimentos que decoraram a minha infância. O Pousa, assim conhecido o estabelecimento comercial da firma Lopes & Pousa & Cia Limitada, ali de frente para a Rua do Norte, onde o Grifo tinha a taverna e alugava bicicletas. Durante os primeiros 11 meses do ano, apresentava este estabelecimento de secos e molhados um aspeto sóbrio e arrumado.Tinha do lado direito para quem entrasse, a secção de mercearia. Casa limpa, arrumação cuidada e disposição dos artigos lógica e em secções facilmente apreendidas, o que dava prazer ao cliente recém entrado. Do lado esquerdo uma secção de fazendas, malhas e atoalhados. Sobrepondo-se a esta ordem, aparecia na fileira superior das prateleiras das fazendas com uma boa variedade de lotes de cortes para fatos e respetivos forros e botões, um friso a todo o comprimento do "comércio" de caixas com chapéus da marca “Palmares". Alguns a cobrirem a cabeça de manequins com rosto e outros, os ditos cabides mostravam os bonés que também tinham elegância e qualidade. Encimando esta vista agradável um "Logo" bem concebido com um rosto masculino agradável e a palavra com corpo de letra de caixa alta "Palmares". Mas quase tudo isto mudava com a chegada de Dezembro e o desejado Natal, pois o Senhor Pousa, sócio e gerente da firma e da loja, sabia do seu ofício.
A montra do lado esquerdo deixava de ter fazendas e passava a repositório do mais fino que havia, respeitante a mercearias e confeitaria, seguindo o exemplo da do lado direito que já estava vocacionada para as coisa agradáveis ao palato, apenas mudando de aspeto pois era já doçaria de encantar adultos e criançada.
Já anteriormente mencionei os vários artigos expostos naquilo que era a nossa ilusão maior, a fartura de coisas que não eram pertença do nosso dia a dia e que nós "comíamos com os olhos", porque o comer aquelas coisas era prazer de outros que não nosso.
E aqui é exatamente onde reside o triunfo dos rapazes e raparigas da minha e das gerações anteriores à minha. Não temos complexo algum, bastou-nos ver as coisas boas da mesa de Natal de algumas pessoas para sermos felizes e podermos falar delas chamando-lhe pelo nome e quando o tempo chegou fomos capazes de tê-las sem que isso fosse novidade ou motivo de gáudio pateta. 
O que acabei de escrever não passa da recordação de um tempo bom de aprendizagem em que o paradigma era algo simples, tão simples que nos preencheu e nos ensinou a sermos gente: "O seu a seu dono”.
A este tempo sucedeu outro que se iniciou com o começo das ações de rebelião dos Movimentos de Libertação nas antigas Províncias ultramarinas e se manteve até ao 25 de Abril de 1974. Coincidiu este com o tempo da minha adolescência e foi sua componente imperativa mesmo que nesses treze ou catorze anos tivesse havido um progresso assinalável no respeitante à cultura (aparecimento das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian) e também a economia que chegou no fim da década com um crescimento de 5% ao ano onde se deve enquadrar o aparecimento da SEDES, onde a classe média se meteu a reboque dos tecnocratas do Governo de Marcelo Caetano e juntou a participação da Cultura e das Novas Tecnologias no jogo das Sociedades Anónimas e o das ações em banca. A filosofia do Estado Novo estava a perder terreno a alta velocidade e por isso menciono nesta crónica algo que o meu amigo Senhor Norberto da Casa das Malhas, tio do Telmo, me dizia para justificar a mudança que se pressentia estar para acontecer, pensava-se, nas cúpulas do Estado, mas que quando se concretizou atingiu todos os extratos da sociedade e mudou o país radicalmente, abrindo caminho à ascensão política de gente menos capaz e menos honesta, mas proporcionando a inquestionável melhoria no que respeita à rede viária e ao erodir das diferenças de classe, que o Estado Novo sancionava tacitamente. 
Dizia então o Senhor Norberto: -O regime salazarista assinou a sua extinção ao dar um passo certo do ponto de vista do progresso. Criando a Emissora Nacional, veículo de propaganda do regime, foi permeável ao bom gosto e ao profissionalismo dos seus quadros que nos seus programas veicularam a crítica de arte e a sua difusão, permitindo ao público que acreditou sempre no que ouvia, a comparação de ideias, de obras e intenções e também com uma certa democratização do ensino, onde as Escolas Industriais e Comerciais elevaram os filhos dos lavradores e operários à condição de técnicos dos mais variados ofícios que foram o lastro do progresso lento mas seguro do país.
A própria guerra do Ultramar foi um elemento importante na tomada de posição dos oficiais subalternos e alguns superiores mais uns poucos generais que eram o sustentáculo do regime e ao qual ajudaram a decapitar alguns por convicção, outros por oportunismo. Mas, isto foram atos maiores e para o povinho onde eu me incluía que teve a oportunidade de desfrutar não só da Rádio e da Televisão mas também da corrente cultural à qual a Gulbenkian deu acesso e que foi a maior Revolução Cultural havida em Portugal em todo o tempo histórico. As bibliotecas deram-nos a possibilidade de ler Marx e Engels mas também todos os autores que ideologicamente estavam nos antípodas destes dois que se perfilaram num certo tempo como os criadores teóricos do Homem Novo. Estas que aqui enumero e explico, com a ressalva de algumas imprecisões são as imagens que frequentemente me vêm à memória logo a seguir às da infância do tempo mágico do Pousa, do Sousa, do Miranda Braga, Chico Machado e Alberto Rodrigues, o Cinzento do Café Central e da Sapataria da Moda.

Prometo voltar amanhã com a 2ª parte destas Minhas Memórias. 




Londres, 04/12/2019
A. O. dos Santos
(Bombadas)

2 comentários:

  1. O Cruzeiro, o Progresso, ambos na área central da cidade, que muito contribuiram para a vida social e cultural de Bragança, a Casa Coelho, o Sr. Raul (azeiteiro como lhe chamávamos) na Rua da República,o Queirós na rua Alexandre Herculano, que era uma verdadeira instituição, O João barbeiro, os tempos do FAOJ, etc...Boas memórias de um tempo urbano, mais lento, descomplexado e vivo!...São estas experiências, que vincam o espírito de uma comunidade e que ficam na retina dos seus habitantes!...Hoje constroem-se naturalmente outras memórias futuras! Bons tempos.

    Helder Caseiro

    ResponderEliminar
  2. Lembro-me bem da casa Velasco e da simpatia do casal proprietário! Até porque morava perto, e aí me deslocava muitas vezes para comprar artefactos vários para a minha mãe!
    Bons tempos
    HMC

    ResponderEliminar