domingo, 19 de janeiro de 2020

A morte de Giovani e os nossos sentimentos

De vez em quando, sucede algo que funciona como psicanálise de um país - de um determinado aspeto da relação desse país consigo mesmo. Caso da morte do estudante cabo-verdiano agredido em Bragança.

Como país colonizador de várias regiões do globo, mas sobretudo de África, como país que manteve uma prática institucionalizada e organizada pelo Estado de trabalho forçado de negros, exclusivamente por serem negros, nas suas colónias africanas até aos anos 1960 (sim, é mesmo 1960) enquanto nas escolas se ensinava ter sido Portugal o farol do fim da escravatura ainda no século XVIII, como país que não se cansa de cantar as suas proezas "ultramarinas" enquanto nega tudo o que nelas há de terrível e vergonhoso, habituámo-nos a acreditar nas nossas próprias mentiras.

Não é pois com consciência de mentir que a maioria repete, a cada vez que alguém quer denunciar, em Portugal, a existência de racismo em relação aos negros, que "não somos um país racista."

Esta afirmação convive sem problemas com o facto de termos tido pela primeira vez em 2015 uma ministra negra, de termos tido na Assembleia da República, em 44 anos de democracia (desde que há eleições livres), nem dez deputados negros, de praticamente não haver nas redações dos media jornalistas negros, de podermos passar dias e dias a ver TV sem vislumbrar uma pessoa negra no ecrã - a não ser em imagens de noticiário, filmes ou séries de outros países - e de, já agora, não encontrarmos uma única pessoa negra na hierarquia das polícias portuguesas. Ou seja, de acharmos normal essa ausência de representação negra, de nem repararmos nela - porque, lá está, porque repararíamos, se está tudo bem?

Não é pois com consciência de mentir que a maioria repete, a cada vez que alguém quer denunciar, em Portugal, a existência de racismo em relação aos negros, que "não somos um país racista."

Pouco importa, para essa ideia que insistimos em ter de nós mesmos e para essa cegueira na qual existimos, que um inquérito europeu como o European Social Survey, inquirindo 40 mil europeus maiores de 15, nos devolva uma imagem muito diferente dessa, indicando que à pergunta "acredita que há raças ou grupos étnicos que nasceram menos inteligentes que os outros" 52,9% dos inquiridos portugueses respondem afirmativamente, ou seja, mais de metade acreditam na mais básica, brutal e ignara forma de racismo - o biológico, o que defende existirem "raças" superiores e inferiores (a média europeia de resposta afirmativa a esta pergunta é de 29,2%, ainda assim altíssima).

Pouco importa a realidade: a conversa do excecionalismo lusitano no que respeita à relação com minorias étnicas de origem africana (em relação à minoria cigana somos menos sonsos) está sempre ao virar da esquina, à espera de edulcorar discursos no recurso à imagem da "irmandade" lusófona. E o caso de Luís Giovani, o estudante cabo-verdiano que a PJ crê ter sido assassinado por um grupo de cinco homens entre os 22 e os 35 anos, por "motivos fúteis", não foi exceção.

O primeiro a invocar a "irmandade", quando ainda quase nada se sabia sobre o crime e quem o perpetrara, foi o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, em reação à morte do jovem e em palavras dirigidas a Cabo Verde.

Agora, quando os cinco suspeitos foram detidos, foi a vez de o diretor nacional da PJ, Luís Neves, não só certificar que não houve motivação de ódio racial no crime como, saindo da esfera da investigação criminal, lançar-se na análise sociológica e mesmo nas afirmações políticas.

"Bragança e o nosso país são terras de grande acolhimento e de grande abertura do ponto de vista humano", disse Neves na conferência de imprensa que deu nesta sexta-feira em Vila Real. "Este caso extravasou aquilo que é só a investigação criminal. Há questões sociais, há questões de inserção, e há esta palavra para dar. Bragança, e o nosso país, é um território de grande acolhimento, de grande irmandade, neste caso com o povo de Cabo Verde, um povo fraterno, um povo ligado a nós pela lusofonia, com grande atividade cultural e sobretudo, um povo, que é um povo irmão, a quem nós queremos dar esta palavra de conforto a um povo amigo, que é bem-vindo e querido por todos nós."

A crer no resultado de um inquérito europeu, mais de metade dos portugueses acreditam na mais básica, brutal e ignara forma de racismo - o biológico, o que defende existirem "raças" superiores e inferiores.

Percebe-se que o responsável pela PJ quisesse, perante a acusação, ventilada por várias vozes e apresentada em manifestações, de que a polícia que dirige estava, por motivos relacionados com a nacionalidade e etnia da vítima, a desvalorizar o crime, certificar não ser o caso; aliás, o facto de a direção nacional se ter deslocado a Vila Real para fazer um esclarecimento in loco é já uma forma de refutar tal ideia.

É mais difícil entender que o diretor de uma polícia considere ser seu papel dar opiniões genéricas sobre relações raciais no país, por melhores que sejam as suas intenções ao fazê-lo.

Sobretudo quando se trata de alguém que já demonstrou ter sensibilidade para as questões relacionadas com a discriminação das minorias. Como quando em 2018 associou o aniversário da PJ à celebração dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, convidando para a cerimónia associações de defesa de minorias como a SOS Racismo e a ILGA, assim como representantes das comunidades religiosas minoritárias, afirmando: "Estribamos a nossa ação quotidiana em prol da não discriminação (...). Não pactuamos com intolerância e somos e seremos firmes perante os crimes de ódio, enfrentando todas as formas de extremismo de natureza criminal fundadas em preconceitos ou motivos ideológicos e confessionais."

Ao fazer acompanhar a negação de motivações racistas no crime que vitimou Luís Giovani pela negação da existência de racismo no país, Luís Neves terá obtido o efeito oposto daquele que pretendia. É que se só a PJ e quem está a investigar pode fazer, para já (ainda estamos numa fase muito inicial do processo), afirmações credíveis sobre a autoria, circunstâncias e motivações do crime, quanto à realidade sociológica do país temos outras fontes de informação; afirmar algo sobre essa realidade que é facilmente refutável acaba por lançar uma sombra de dúvida em relação ao resto.

Ao fazer acompanhar a negação de motivações racistas no crime pela negação da existência de racismo no país, o diretor da PJ terá obtido o efeito oposto daquele que pretendia. Passávamos bem sem isso num caso que se transformou numa batalha campal entre quem suspeita de motivações racistas e quem as nega terminantemente, aventando até que os responsáveis seriam ciganos.

Passávamos bem sem isso num caso que se transformou numa batalha campal entre os que desde logo, baseando-se na identidade das vítimas e na ideia de que os agressores seriam portugueses "brancos", desconfiaram de motivações racistas para o crime e imputaram à investigação falta de cuidado e até tentativa de "silenciamento" ou "encobrimento", e os que quiseram negar essa hipótese aventando que os agressores seriam de etnia cigana, igualmente acusando a investigação de querer esconder esse facto ou mesmo de ter medo de o revelar.

Não é que não seja bem-vinda, nas polícias, sensibilidade sociológica, mas convém que não confunda desejos e sentimentos com a realidade. Talvez seja afinal de dar mais atenção à tutela, e ao que diz sobre o assunto a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, por acaso negra, por exemplo em julho de 2019: "Durante décadas, apregoar a inexistência de fenómenos racistas na sociedade portuguesa tornou-se um quase lugar-comum. A repetição incessante da ideia não teve, contudo, a virtualidade de a converter em verdadeira. A maior expressão de preconceito racial consiste, precisamente, na negação deste preconceito. (...) Parafraseando James Baldwin - uma das vozes mais influentes do movimento dos direitos civis, nos Estados Unidos, "nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado. O confronto nem sempre traz uma solução para o problema, mas enquanto não enfrentarmos o problema, não teremos solução.

Fernanda Câncio

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