A partir da data do verdadeiro arranque da sua carreira, os escritos de José Saramago são publicados com regularidade. No período de 1966 a 1980 – este último ano marca o início da época de grande fulgor literário – o escritor dá a lume doze títulos, destacando-se nos géneros poesia e teatro.
Colabora ainda em jornais, designadamente nos vespertinos ‘A Capital' e ‘Diário de Lisboa', elaborando crónicas que posteriormente faz publicar em livros. Em 1968 inicia também a prática de crítica literária na revista mensal ‘Seara Nova', órgão de combate às ideias que enformavam o regime de Salazar.
O derrube da ditadura, em Abril de 1974, abriu um curto período de grande visibilidade na militância política de Saramago, que não prejudicou, no entanto, o ritmo que vinha mantendo na criação literária. Na sequência da convulsão política e militar de 11 de Março de 1975 e das nacionalizações dela resultante, Saramago ascende a director-adjunto do ‘Diário de Notícias'. Muito contestado pela orientação política que imprimiu ao exercício do cargo, foi afastado em 25 de Novembro desse ano assim que se consumou a derrota militar das forças que apoiava.
Caído no fosso, a opção que faz para se reerguer vai conduzi-lo directamente ao Nobel. Com 53 anos de idade, resolve dedicar-se, finalmente, apenas à escrita de originais e a traduções. A antecâmara da nova fase da carreira é preenchida com a publicação na segunda metade dos anos 70 de um romance, uma colectânea de contos, duas peças de teatro e um livro de crónicas. A grande novidade eclode em 1980, ano em que Saramago entrega o original de ‘Levantado do Chão' ao editor Zeferino Coelho, que o acompanhou até ao fim.
O romance descreve três gerações de uma família de rudes camponeses, verdadeiros "condenados da terra". Com ‘Levantado do Chão' a prosa de Saramago adquire um estilo original. A pontuação desaparece dos longos períodos que estruturam o texto e a sinalização do discurso directo não é mais feita através de travessões ou aspas. Não sendo propriamente inédita, a fórmula é praticada por Saramago de maneira cativante, salvaguardando a capacidade do leitor compreender a narrativa. Singular e atraente, o novo estilo associa habilmente a tradição oral à escrita romanesca.
Dois anos depois (1982), outro grande título, por muitos considerado o melhor dos 37 publicados em vida, sai para os escaparates: ‘Memorial do Convento'. A história de "três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde florescem as superstições e as fogueiras da Inquisição", conforme caracterização do próprio autor, ganha uma projecção ímpar. Dentro e fora do País, os livros de José Saramago, alguns dos quais associando irresistivelmente a linguagem erudita à popular, conquistam a admiração do público e da crítica.
Entre ‘Levantado do Chão' e ‘Memorial do Convento' o escritor ainda tem tempo e capacidade para satisfazer uma encomenda do Círculo de Leitores que lhe vai permitir doravante dispor de mais tempo para a criação. De facto, com os proventos de ‘Viagem a Portugal' (1981), um êxito editorial muito bem pago ao autor, pode deixar de vez a tradução, actividade que constituíra parte importante do seu labor desde 1955, como o atesta o elevado número de obras por si vertidas para português: 48.
Aos 60 anos, Saramago é conhecido em todo o Mundo. Apesar da imensidão de admiradores que congrega, não pode ser considerado um autor universalista, de vastos consensos. Alguns dos seus livros suscitam críticas veementes, designadamente ‘A Jangada de Pedra', editado no ano em que Portugal e Espanha integram a Comunidade Económica Europeia (1986). Nesse romance, o autor idealiza a ruptura física da Península Ibérica com a França e a sua deslocação em direcção "ao Sul do mundo (...) a caminho de uma utopia nova", atitude esta coincidente com a dos meios políticos que ao tempo pintavam cenários catastróficos para o futuro europeista de Portugal.
Nenhuma controvérsia atingiu, no entanto, a dimensão do escândalo suscitado por ‘O Evangelho Segundo Jesus Cristo' (1991), obra em que o autor ensaia a dessacralização da figura de Cristo. Vozes da ortodoxia religiosa condenam Saramago como herético e blasfemo.
Dois anos mais tarde, a medida tomada pelo subsecretário de Estado da Cultura António Sousa Lara de riscar o nome do escritor da candidatura a um prémio literário europeu, a pretexto da não representatividade num país predominantemente católico, levou Saramago a fixar-se na ilha espanhola de Lanzarote com a mulher, Pilar del Río, jornalista espanhola com quem casara em 1988. Embora a mudança já tivesse sido pensada em data anterior pelo casal, acabou por ser concretizada como manifestação de desencanto perante quem então assumia o poder em Portugal.
Mudança para Lanzarote
A iniciativa, tomada pelo subsecretário da Cultura António Sousa Lara, de eliminar o livro ‘O Evangelho Segundo Jesus Cristo' da lista de concorrentes ao Prémio Literário Europeu, levou Saramago a afirmar-se "triste e indignado". Antes de o facto ocorrer, em Abril de 1992, Saramago já havia decidido que iria "viver alternadamente em Portugal e fora". O incidente deu-lhe o empurrão final. No ano seguinte estabeleceu-se com a mulher em Lanzarote (lhas Canárias), onde comprou uma vivenda, que passou a ser a residência fixa do casal.
Sousa Lara justificou a sua atitude considerando que a obra em questão "não representa Portugal", e "atacava princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses." A polémica foi áspera. O livro fora condenado por figuras gradas da Igreja, entre as quais D. Eurico Dias Nogueira, arcebispo de Braga, que o considerou "uma delirante vida de Cristo" e que se referiu ao seu autor como "réu".
Na circunstância, Saramago qualificou o gesto de Sousa Lara como acto de censura. "O facto é brutal", considerou. Em relação à transferência da residência para Lanzarote, encarada pela opinião pública como manifestação de protesto, o escritor rejeitou a palavra "exílio" para designar a condição de emigrado a que se remeteu. Nos anos que se seguiram manteve-se crítico em relação à atitude e ao governo, dirigido por Cavaco Silva, que a concretizou.
A distinção de Saramago com o Nobel da Literatura, seis anos depois da iniciativa de Sousa Lara, colocou este e os seus apoiantes numa situação incómoda. O antigo subsecretário de Estado congratulou-se com a escolha do português, mas acusou-o de dispor de "um enorme ‘lobby' internacional a seu favor".
Só em Abril de 2004, o assunto ficou alegadamente encerrado, na sequência de uma declaração feita pelo então primeiro-ministro Durão Barroso, o qual, duas semanas depois, almoçou com o escritor no Palácio de São Bento. Barroso condenou os processos que no passado haviam descriminado Saramago pelas suas opções individuais. Por seu turno, o laureado com o Nobel alegou que a "aclaração" feita pelo primeiro-ministro punha "fim a um conflito" que da sua parte, aliás, "não existia". Depois do encontro, Durão anunciou a criação da Cátedra José Saramago na Universidade Autónoma do México, destinada a divulgar a cultura e língua portuguesas.
(in Correio daManhã)
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