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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Memórias de Outra Cidade

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

- O caixeiro do Rocha e Cruz, não sei por onde andará e temos falta de chita para os aventais das mulheres, pano dos lençóis e mais umas miudezas.
Comentava a taberneira, naquela gestão rigorosa de quem sabe o que tem e o que lhe faz falta no seu Soto onde havia um pouco de tudo.
- Para remediar, enquanto não vem o caixeiro do Porto também se compra uma peça, ou duas, nos Coelhos em Bragança...que eles não fazem descontos a ninguém, mas para remediar...
Comentava solícito o taberneiro sempre pronto para se fazer ao mundo comprando e vendendo.
No dia de feira, num cerimonial obrigatório de quem vai à cidade, partia o taberneiro para Bragança, fazia as compras, enchia as alforjes do macho que ficava guardado no Américo da Estacado e em paz consigo e com os negócios ia almoçar à Pensão da tia Caridade, mulher gorda, mãe do Cura que na sua bondade matriarcal gostava dos seus clientes como se fossem filhos. Uma vez, quando o taberneiro esteve preso na cadeia de Bragança por causa da compra duma pistola sem licença, nunca a tia Caridade lhe faltou com o almocinho e com os melhores petiscos do mundo, levando-lhe, de vez em quando, um chouriço de mel, assado na braseira, para lhe adoçar as agruras da vida. Por isso, a tia Caridade, tinha o nome mais perfeito do mundo e o taberneiro sentia-se na obrigação de ir almoçar à casa desta mulher, sempre que ia a Bragança, mesmo que não tivesse grande fome.
Aos dias de feira, lá se juntavam todos os taberneiros e comerciantes da Região, falando alto dos negócios e combinando o casamento para as filhas. O almoço era sempre o mesmo aos dias de feira, trazendo a criada grandes travessas de feijoada com feijão branco, orelheira, pernil, chispe de porco e pedacinhos de chouriça, tudo apaladado com pimenta espanhola. Para os que gostavam, a criada trazia também arroz branco para misturar à feijoada. Às vezes e enquanto esperavam por este prato soberbo os mais atrevidos nas lides gastronómicas sempre iam entretendo o estômago com um congro ensopado que a tia Caridade fazia por cortesia para os seus clientes mais íntimos. Então, cozia o congro, enquanto fazia um refogado com cebola picada fininha, louro, pimenta e alho. Num ritual de anos a fio, ia ao armário da sala, trazia a terrina de louça inglesa, com cavalinhos puxando a uma carroça, e depois juntava o congro partido aos bocadinhos, o refogado e a água da cozedura e ali estava uma sopa de congro que até se iam os dentes atrás dela num louvor mágico à alquimia misteriosa guardada no segredo e no aconchego da terrina.
E assim, o dia de feira era como um dia de festa cheio de cumplicidade e de encontros onde o almoço tinha aquele sentido ritual de dar força aos contratos celebrados com comida e vinho da adega do António Júlio. Sim, o almoço era isto tudo pois para comer o taberneiro não dava um passo e se tivesse apetite bem lhe servia uma isca de capatão na taberna do Francês, com meio quartilho de vinho e um molete. Mas quê, era no almoço que estavam os seus amigos e a Tia Caridade a quem devia mil favores.
Finalmente, o taberneiro regressava a casa naquela fartura de homem de negócio a quem nunca se lhe acabou o dinheiro, por pouco que fosse.
O filho mais novo corria a puxar o macho pela arreata com a pergunta sacramental:
- Meu pai, que me trouxe da feira?!.
E como por magia o taberneiro tirava do bolso da samarra um chocolate pequenino em forma de guitarra:
- Hoje trouxe-te uma guitarra!
E a guitarra tinha o fascínio dum tesouro brilhando pela noite fora naquela luxúria da prata vermelha que depois de esticada iria ornamentar o livro da 3ª classe.
O taberneiro nessa noite já não queria cear e mais para matar a sede pedia à mulher que lhe fizesse umas sopas de cavalo cansado. Então, a taberneira, com o carinho que lhe merecia o seu homem que veio cansado de Bragança, adoçava o vinho, mistura-lhe água e junta-lhe o pão de trigo, sem côdea, para que o seu companheiro de mil tormentos visse que era tratado como um rei.
Antes de ir dormir o taberneiro ia deitar uma mão de cevada ao macho, queixando-se sempre, por desfastio, que o macho é que leva boa vida.
Depois deita-se com a sua mulher e dorme como um justo sabendo que amanhã novos fregueses chegarão na esperança da mesa, da cama e da roupa lavada.

Fernando Calado nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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