sábado, 2 de maio de 2015

Pombais Tradicionais

Origens:

No Nordeste de Portugal, na denominada Terra Fria Transmontana, concentra-se um dos núcleos mais representativos de pombais, ainda que existam alguns dispersos um pouco por todo o país.
Esta concentração e similitude tipológica têm origem no facto da comunidade rural desta região ocupar um espaço ecológico muito do Sabor e Tua, e troço das Arribas do Douro. Nos planaltos e vales encaixados dessa zona, abaixo dos 900m, nos terrenos pobres de xisto e granito, dominam, desde há muito, quatro culturas agrícolas: os cereais, a vinha, o olival e as hortas. É precisamente associado a esse cenário físico e socioeconómico que surgem, a partir de meados do século XVIII, os cerca de 1500 pombais existentes nos concelhos de Vinhais (144), Bragança (617), Vimioso(237) e Miranda do Douro (366) – segundo dados do inventário realizado pela CoraNE, Associação de Desenvolvimento dos Concelhos da Raia Nordestina, aqui denominados como pombais tradicionais.

Situação actual:

Com o êxodo rural intensificado a partir da década de 60, a população rural emigrou, desencadeando o abandono de muitas práticas agrícolas tradicionais, nomeadamente o cultivo de trigo, do centeio e da lentilha. Os agricultores que ficaram foram progressivamente modernizando as suas explorações, mecanizando-as, reduzindo a mão-de-obra recorrendo a agro-químicos inorgânicos importados, paralelamente a população activa envelheceu e perdeu muitas das suas anteriores funções. Face a essas mudanças drásticas os pombais viram desaparecer quase por completo a sua utilidade no contexto da economia rural.
Mais recentemente essa tendência acentuou-se com a adesão à UE e a aplicaçãoda PAC, dada a redução do cultivo ceralífero e pela introdução de novas práticas e técnicas culturais. Tal como o fluxo demográfico humano para os meios urbanos, os pombos, perante a falta de alimento e protecção dos montes e vales, passam a proliferar nas avenidas de betão.
Um outro processo decisivo para o abandono generalizado dos pombais, foi a expansão verificada na actividade cinegética após os anos 70. De facto, a “invasão” de largas centenas de caçadores, desconhecedores das tradições locais e desrespeitadas da legislação da caça, levou ao abate fácil de milhares de pombos-da-rocha.
Como consequência desses processos, centenas e centenas de pombais tradicionais deixaram de estar povoados, os trabalhos de manutenção perderam significado, houve proprietários que nunca mais voltaram aos pombais, houve pombais que nunca mais voltaram a ter dono. Muitos entraram em degradação pois apesar das paredes rudes e de construção sólida, estes têm no telhado o seu ponto fraco dado que a cobertura em madeira não resiste à intempérie sem os devidos cuidados. Cada inverno que passa engrossa a lista de pombais em ruínas e empobrece, irremediavelmente, o património cultural desta região. Presentemente o número de pombais povoados ou alvo de manutenção/recuperação por parte dos proprietários varia muito de região para região, sendo reflexo dos diferentes contextos socioeconómicos e culturais. Na Terra Fria Transmontana, onde a tradição da criação do pombo sempre teve mais raízes e com mais carinho se guardou até aos nossos dias, subsiste um maior número de pombais povoados, talvez na ordem de 20%. São ainda algumas as famílias de raizes rurais que perservam este património de forma religiosa dado o seu valor sentimental e as recordações ainda vivas: “o pombal que o avô construi..., “no tempo dos avós viviam mais de cem pombas no pombal...”. Noutros casos os pombais subsistem povoados por se encontrarem próximos às arribas sendo esse repovoamento feito de forma natural e sem qualquer interferência do Homem.

Função: agricultura biológica:

Os pombais da Terra Fria enquadravam-se na economia de montanha característica desta região, pautada por uma agricultura de subsistência com grande dependência da produção pecuária extensiva, sendo provável que originalmente estes tenham servido como um sistema complementar de produção de alimento.
Tratava-se de pôr em prática uma agricultura biológica. Mantendo os pombais povoados, produzia-se anualmente uma quantidade considerável de estrume de elevado valor, denominado localmente por pombinho. Na falta de adubos químicos, esse fertilizante orgânico permitia produções abundantes na vinha, nos olivais, amendoais e hortas. Alem disso, no interior dos pombais existiam inúmeras cavidades em pedra, que proporcionavam o habitat de nidificação para os pombos. Desta forma os pombais permitiam fornecer aos proprietários agrícolas a produção de carne (borracho) que constituía um complemento à actividade agro-pecuária.
Nesse contexto, os pombais – pertença aos agricultores ou trabalhadores rurais, não necessariamente abastados, eram dispostos em aglomerados, em geral nas encostas soalheiras e em proximidade dos núcleos urbanos, reflectindo um certo comunitarismo vivido então nas pequenas aldeias. São exemplos evidentes dessa situação muitas aldeias do concelho de Bragança (Espinhos, Cova da Lua, São Julião de Palácios, etc.), Uva no concelho de Vimioso e Frexiosa no concelho de Miranda do Douro. Nas zonas onde a agricultura assumia ou tenha entretanto assumido uma maior revelância, nomeadamente com a campanha do trigo e com a expansão do olival (Arribas do Douro, Planalto Mirandês), os pombais passaram a ter como função principal a produção de estrume “pombinho”, sendo construídos no interior das parcelas cultivadas e distribuindo-se assim de forma mais dispersa pela paisagem (Ifanes, Palaçoulo, Sendim, Algoso, Argoselo, Vimioso). Esse padrão de distribuição assemelha-se muito à situação típica dos concelhos da Terra Quente Transmontana (Freixo da Espada à Cinta e V.N. Foz Côa). Onde a olivicultura e viticultura têm forte expressão.
Para além da produção pecuária, muitos dos pombais do Nordeste Transmontano serviram para ostentar sinais “exteriores” de poder e riqueza, representando a posição social dos proprietários (famílias nobres ou abastadas, clero...). Noutros casos evidenciavam preocupações estéticas e decorativas por parte da população rural, num certo culto ao pombo, uma vez que este animal sempre foi um símbolo da paz, da pureza, da fidelidade e do divino. Desta forma foram construídas verdadeiras obras de arte da arquitectura vernácula, que foram povoadas e mantidas, de forma briosa e em perfeitas condições, até aos dias de hoje. São muitos os agricultores que por tradição ou herança mantêm essa prática viva.
A riqueza em termos arquitectónicos, a sua presença emblemáticas na paisagem e a beleza dos bandos de pombas flutuando permanentemente sobre o céu das aldeias, tornaram-nos parte integrante do património cultural desta região, e quiçá a sua presença na memória colectiva seja uma das suas principais funções para a sociedade moderna.

Aspectos arquitectónicos:

A maioria dos pombais tem planta circular ou em ferradura, sugerindo formas arquitectónicas castrejas. As paredes são em alvenaria de pedra miúda, terra argilosa como ligante e reboco de argamassa de cal. A cobertura e de madeira apoiadas nas respectivas paredes. O murete / corta-vento, também em alvenaria de pedra é frequentemente ornamentado com pináculos de pedra. O acesso dos donos ao interior dos pombais faz-se por uma pequena porta de madeira. No telhado existem plataformas de entrada e saída dos pombos, saídas de voo.

Maneio tradicional:

O sistema tradicional de produção, quer de carne quer de estrume, nestes pombais constitui um dos acpectos mais peculiares no pequeno mundo que rodeia estas pequenas e toscas jóias arquitectónicas. Este não se enquadra nos processos convencionais de criação, pois a espécie explorada encontra-se em estado selvagem sem que o Homem a tenha privado do voo ao contrário do que aconteceu com muitas outras aves domésticas. O Pombo-da-rocha, também conhecido como pombo bravo, outrora muito comum nesta região, tem como habitat de nidificação as escarpas rochosas existentes nos vales doDouro e afluentes. Os pombais tradicionais aproveitaram a proximidade geográfica com esses núcleos silvestres para assegurar o seu repovoamento por esta espécie. Nesse contexto os pombos são atraídos através da disponibilização de alimento no seu telhado e no seu interior, e a sua curiosidade acabam por entrar e encontrar nas grossas e altas paredes em pedra, fendas, orifícios e prateleiras que garantem refúgio seguro contra predadores e intempéries e recriam o seu habitat. Por sua vez a utilização do pombal atrai outros indivíduos selvagens, inclusive outras espécies silvestres como é o caso do Estorninho-preto e o pardal. A população assilvestrada que aí passa a pernoitar e nidificar é permanentemente atraída com alimento, depositado regularmente ou no período de maior carência que corresponde ao Inverno.
O sucesso deste sistema de produção e sua discriminação pela paisagem rural residiu no facto dos pombos serem criados de forma extensiva, aproveitando assim os recursos alimentares existentes no campo, como sementes de plantas silvestres e cultivadas, sem trazer grandes encargos ao proprietário e permitindo obter grande produção devido ao carácter prolífico e rústico desta ave. No caso do estrume a produção era recolhida uma vez por ano depois do Inverno ou princípios de Primavera, e no caso dos borrachos, ao longo da Primavera e Verão. Era hábito comum nos pombais povoados por estorninhos fazer uma "safra” durante o Inverno, esta operação decorria durante a noite sendo previamente obstruídas as saídas de voo. Com determinação e rapidez vários homens introduziam-se no seu interior e empoleiravam-se pelas paredes apanhando as aves uma a uma. Parte dos pombos era devolvida ao pombal, e outra juntamente com os estorninhos destinava-se à alimentação, nomeadamente para confecção de alheiras.

1 comentário:

  1. Merece ser referido o exemplar trabalho que, na aldeia de Uva do concelho de Vimioso, a Palombar tem vindo a desenvolver e que se tem traduzido na recuperação de vários pombais. Parabéns à Palombar e aos proprietários dos pombais que tornaram possível a recuperação deste património, acentuando, assim, uma singularidade paisagística e uma dimensão relevante da identidade de Uva.

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