Esta é uma daquelas horas em que a solidão se fez Sábado à noite e uma nostalgia velha nos leva demoradamente a outras vidas e a outros mundos, onde não há Domingo, nem esta necessidade de estar de acordo com o rigorosamente instituído.
Depois, o nosso mister de inventar palavras, como quem pega na enxada e cava uma horta, traz-nos este vazio de terra cansada, que já não é capaz de descobrir a seiva funda da emoção.
E nestas horas, em que nada se pode dizer, o sentido da morte ganha a dimensão da eternidade, vindo meigamente aconchegar-se na nossa história.
É Verão, quando todas as plantas trazem em si o afago de mil frutos. Contudo, lá fora cheira a Inverno, à mistura com a terra molhada e carne de porco bêbada de tanta adobe, que o taberneiro da esquina assa demoradamente, para clientes amantes dum petisco fora de tempo.
No Jardim, um par de namorados, na oferta dos quinze anos, encontra-se como antigamente na plenitude do sonho sem limite, quando ainda se desenhavam corações nos troncos velhos e se lia Romeu e Julieta na convergência dum sacerdócio de sacrifício e dádiva.
Hoje é Sábado, como todos os Sábados, só que os sinos tocaram a finados na velha capela do solar, perdida na glória de outras épocas. E sem querer, assisto ao regresso de todos os mortos, que se vestiram de novo e meigamente foram para a casa do infinito para todo o sempre.
Hoje, a casa está deserta, nesta pressa de viver e um vazio enorme fala-nos da nossa finitude. Nos velhos salões do casarão, o tule vermelho, avaro de mulheres belas, cheira à desgraça de cem vidas vividas, na penúria da escassez do tempo.
O velho solar, a velha capela... invade a nossa existência como se fosse Novembro, feito altos ciprestes, que na grandiosidade do ser, emparceiram com esta infinita necessidade de encontro com aqueles que partiram.
A mãe lá está, ao canto do lume, serenamente calada como fez durante toda a vida e a terra húmida e fecunda, traz-me o recado da maior perda, como quem perdeu tudo e nunca mais se encontra no conflito da cidade.
Um rapaz moço, a quem falta a lógica do quotidiano e facilmente comprou a felicidade na toca com a grandiosidade da loucura, beija demoradamente as fotografias gélidas das campas e qual Cristo ambulante, que carregando sobre si todo o sofrimento do mundo, sofre sem saber como a tragédia maior que se fez morte.
Vindos de longe, chegam os sinais da gratidão, de todos aqueles que na perda maior se querem encontar com os que ficam, no testemunho de que quando os "sinos dobram", eles dobram por toda a humanidade.
À porta da Igreja dão-se os "responsos" feitos de moedas novas de um euro na ausência do"carolo" cortado no mais branco trigo. A alvura do pão, diz que a morte não existe, na esperança da passagem para outros mundos e outras verdades.
Depois neste Sábado-Novembro-Solidão é o regresso a casa, onde há um lugar vazio, pois os que partiram estão num sítio sem tempo nem lugar.
Um cão vadio ladra perdidamente na rua, como se também ele sentisse a Solidão-Sábado-Novembro e sem saber porquê, como se tivesse necessidade dum carinho que ninguém entende, levanta a pata num grande cumprimento de infinita ternura.
Então, na casa tudo renasce e a mãe volta a ser a menina que vai à escola. A panela coze o caldo como antigamente, o lume traz toda a magia infinita do fogo, onde gerações de Judeus se encontravam no negócio urgente, ou no ritual perene de sentido e de comunhão com o divino.
E assim, a noite desce calmamente e é bom ouvir o vento lá fora que nos diz que a morte não existe e há sempre um eterno retorno que se consolida naquela menina de dois anos que paulatinamente vai entendendo o segredo da vida e meigamente nos pega pela mão e nos oferece o infinito numa relação perene do avô e da neta.
(Autor: Fernando Calado)
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