sábado, 26 de fevereiro de 2011

A Tracção Animal - Baçal - Varge - Bragança

Foto: Manuel Teles
Em algumas aldeias transmontanas ainda se faz o uso regular dos carros de bois na lavoura Desde o neolítico até ao fim do século XX os carros de bois eram usados como meio de transporte para cargas pesadas, nesta terra. O feno, as batatas, o pão e todas as colheitas vinham para as aldeias ao som característico que tornava os agricultores Não sabemos quando começaram a ser utilizados nesta faixa de terra. Mas, desde que vimos os filmes sobre Júlio César, sabemos que os Romanos usavam carros de bois, para transportar cargas mais pesadas. Em Trás-os-Montes, lugar resistente às grandes revoluções, o tractores só no fim do passado milénio terão substituído por cavalos de tracção a força dos animais domesticados pelo homem. Durante mais de dois mil anos as colheitas tinham o ressoar de uma carga transportada com esforço. Era costume, em certas terras, apertar o eixo, pouco antes de chegar à aldeia, para fazer chiar o carro. Assim demonstrava-se a todos que era grande a colheita, bom o agricultor, enorme a carrada e a fome havia de ficar só para os “laratos” (nome dado aos preguiçosos) durante o Inverno. A fricção, de demasiado apertada, ou prolongada, podia fazer incendiar toda a carga. Era um risco que corriam, calculado com alguma temeridade. Antigamente toda a gente tinha carros. “Nós, em Varge, tínhamos dois a três carros, sempre. Um velho, outro mais velho, e um mais novo”, explica-nos João António dos Santos, nascido na aldeia de Varge, concelho de Bragança, e residente há 45 anos na aldeia vizinha de Baçal, onde casou.
Com os carros apanhava-se o estrume para as terras, colhiam-se as batatas, os molhos das cearas, o feno para os animais e todos os frutos do trabalho do campo. Trazer uma grande carrada e saber carregar muito um carro, puxado por bois ou vacas, era a proa de muitos agricultores. Para os animais puxarem aos carros, lavrarem e fazerem todos serviços que hoje fazem os tractores, tinham que ser amansados. Alguns eram mais resistentes, outros metiam a cabeça no jugo com mais facilidade. Era um trabalho feito com temeridade. Os animais eram domesticados à força de muita “porrada”. Depois, ou ficavam mansos, ou eram declarados irremediavelmente bravos. Sendo esse o caso, encurtavam, normalmente, a distância de tempo que os separava da próxima feira, ou do matadouro. “Para amansar tem que ser com uma cria mansa, se não não dá. A mansa pegava na brava.
Uma vez comprámos um boi que estava bravo. Metemo-lo no meio dos outros dois e foi de rastro. Batíamos-lhe, mas não se levantava, até que tivemos que o deixar. Não quis, mas muita porrada levou. Os outros eram dois bois como duas mesas”, conta-nos o lavrador. Quando eram mais bravos, os bois não poderiam ter a sorte de encontrar ninguém indefeso. “Bravo, tivemos, em Varge, um touro que já tinha sete anos, mas eu tinha 23 anos. Até era da coberta. Um dia lá estaria mal disposto e foi para se atirar a mim... Preguei-lhe com as guinchas na cabeça, só não morreu porque não calhou”. Mas a maioria dos animais eram obedientes, ou tinham que ser. “Tive aqui bois e vacas que eram muito obedientes. Fui muito bom agricultor. Uma vez carreguei uma carrada de pão, ao pé de Varge. Botei-lhe 13 fiadas. Eram 43 pousadas de pão. Cada pousada são quatro molhos”. Por vezes, para “fazer ver”, abusava-se das fiadas e a carga vinha ao chão. “Sim, pinchei muitas vezes o carro e partir o eixe também”, assume João António. Também, em Varge “os terrenos eram difíceis”.
Apesar de terem dois carros e duas juntas de vacas mansas, certas alturas levavam só um carro e aparelhavam-lhe as duas juntas. Faziam “uma quadra” a puxar, para trazer “uma grande carrada”. Claro, depois “toca a partir, toca a pinchar, usava-se assim”. Hoje, “tudo mudou”. Não é que sejam tempos mais fáceis estes, são é muito diferentes. “Não sei se está melhor, se está mais mal. Mas mudou muito. Não há estrumeiras nas ruas, há melhores camas, há melhor tudo. Hoje há mais que comer e beber, mas, se tivéssemos que fazer umas malhas como naquele tempo, não estávamos preparados para receber as pessoas. A minha malha em Varge eram três dias, aqui outros três. Eram chouriços, salpicões... Agora cada um tem um quilo de vitela em casa, mais nada. Isso nem dá para fazer um mata-bicho. Agora a gente vai para o campo, senta-se ao toro de um carvalho enquanto outro sega a terra. Se leva uma cerveja leva, se não, não leva. Na segada tínhamos 10, 15 segadores, uma semana. Dávamos-lhe almoço, mata bicho, taco, jantar, merenda, ceia. Agora não se usa isso”.

Como se fazia um carro:

Hoje os carros estão arrumados. Com o preço do petróleo a aumentar, há quem diga que ainda poderão ser úteis, outra vez. Em algumas terras enfeitam espaços públicos. Os animais, libertos da carga, criam-se só para engordar. Os carros eram feitos por carpinteiros. Hoje, os carpinteiros dedicam-se a outros trabalhos, mas há ainda quem saiba fazer os velhos carros de bois, os “estadulhos”, as “engarelas”, o eixo, as rodas, as “caniças”, tudo como seria preciso, se ainda o fosse, obedecendo às ancestrais medidas, ao desenho do costume. A vida de João António dos Santos não foi ser carpinteiro. Foi sobretudo um agricultor e “um dos bons”. Mas, aos 16 anos teve um curto período de aprendizagem, com um primo do seu pai, na aldeia de Baçal. Com a idade de 20 anos deixou a vida de aprendiz de carpintaria e ficou entregue à casa agrícola da família, em Varge. Depois casou e mudou-se para Baçal e continuou a fazer “uns biscates” em carpintaria, com o conhecimento que adquiriu com o primo. Esses biscates incluíam fazer alguns carros de bois ou compor os que se estragavam. “Fazíamos os carros, os engaços, as charruas, arados, portas, janelas. Agora isso acabou tudo”. Fez carros para várias aldeias, da Alta e Baixa Lombada, mas há cerca de 20 anos esse serviço parou. Hoje ainda tem, por terminar, um “último” carro de bois. Na arrecadação, na cerca do quintal onde guarda a criação de pintos, está um carro, que vai fazendo, quando lhe apetece. Esse carro, a ser terminado, nunca irá para os campos, trazer cargas de feno ou molhos de cereal.
Quando tudo tinha que ser feito à mão, sem recurso a ferramentas eléctricas, um carro demorava, em média, um mês a ser feito. Agora, sem a pressa da necessidade, “faço um pau, se tenho vagar. Se não fizer, não faço. Isto é para estar aqui, não é para trabalhar”, explica. Ainda agora, mais de 50 por cento do trabalho de carpintaria tem que ser feito à maneira antiga, porque os cortes não são “em esquadria”, são curvos. “Tem que ser riscado com o garaminho, para ficar em redondo”. O garaminho é uma dessas velhas ferramentas, usadas para fazer os carros de bois. Além do corte, a marcação tem que ficar bem certa. Qualquer erro pode ser fatal, ou comprometer todo o trabalho. “Tem que ficar bem certinho, bem galgado. Se não, não serve. Eu aprendi pouco, mas um senhor que era bom carpinteiro, que era de Rabal e estava casado em Varge, sabia mais do que eu, dizia: aprendeste pouco, mas aprendeste a riscar bem. O que interessa é riscar bem. Marcar é essencial. Desde que se marque bem, já bate certo”. Segundo indica, “o mais difícil de fazer eram as rodas. A enxeda tem uns quereres, mas as rodas têm outro”. Os carros tinham por norma certas mediadas, cumpridas na generalidade. “As medidas do carro: é assim, o estadulhal tem um metro e 60, a rabiça um metro e 60 a caniça é 90 centímetros”. Isto, claro para os carros de bois. Já os carros para os burros, ou machos, eram mais pequenos, eram carroças. Quanto à madeira utilizada, varia conforme as partes do carro. “As estadulhetas pertencem a ser de freixo, a tritoura também, o coucilham tem que ser de amieiro, as travessas de negrilho, o soalho de negrilho, quase tudo de negrilho... O eixe de freixo. Havia também quem pusesse de sardão, um por acaso. As rodas eram de freixo ou de negrilho, porque as outras plantas não davam. O carro tem um metro e 20 de diâmetro. Portanto, tinha que ser uma torada grande e o sardão não a deitava. O carvalho não serve para nada. As caniças, para ficarem mais levezinhas, podiam ser de choupo, mas o resto não, porque o choupo parte com facilidade”. Assim se faz um carro, para quem ainda queira aprender. João António diz-nos que não fez nunca nenhum para enfeite. Tirando este que está ainda a fazer, que ficará para recordação, ou para esquecimento, dos tempos em que os carros cantavam, como há muitos séculos, quando traziam às aldeias o fruto do suor dos homens e animais.

Por: Ana Preto
in:mdb.pt

Sem comentários:

Enviar um comentário