Por Trás-os-Montes continua a pé o jornalista Nuno Ferreira. No mapa traçam-se caminhos afastados dos roteiros óbvios. Montalegre, Vinhais, Palas, lugares arredados do rebuliço que o Nuno trilha, também, através dos olhos de quem lá vive.
Joaquim estava às bordas de Santo André, Montalegre, a espicaçar um velho burro para que este lá puxasse o arado como sempre puxou, como se não estivéssemos em 2010, como se ainda o campo fosse campo e os filhos e netos de Joaquim não tivessem todos emigrados. Há muito tempo que não via um arado como o de Joaquim fora de um museu. Metade da leira estava já trabalhada, pronta para levar a sementeira, este ano atrasada pela invernia. O resto ia ter de ser feito a custo, o animal a responder sofrido às investidas do pau de Joaquim, o homem a dar tudo o que tinha na terra. Como quem diz: Quem é da terra, sempre na terra.
Até que decidi fazer a pergunta entalada na garganta: E os seus filhos? Suspendi a vista por instantes no perfil magnânime do Larouco, a pairar sobre os telhados, as conversas, um ou outro rebanho e sobre aquela tira de asfalto interminável. «Os filhos, o car...uns estão para a França, outro está para Lisboa, não querem saber disto...Eu estou aleijado das pernas e tenho mais de 80. A minha mulher anda aleijada e o burro já tem muitos anos, estamos todos aleijados».
Desde que comecei a percorrer Trás-os-Montes em finais de Janeiro, com interrupções à mistura, que sou confrontado persistentemente com a necessidade de contactar o que resta do mundo rural. Há sempre um último qualquer que urge visitar: O último albardeiro, o último alfaiate de capas mirandesas, os últimos contrabandistas. No campo, como aquela leira perdida no Barroso, são os últimos agricultores. Nas aldeias, são as últimas casas em pedra, varandas em madeira, cercadas por moradias garridas, portões de alumínio. Nalguns casos, como em Palas (Vinhais), chego tarde de mais.
Fui a Palas na companhia do meu anfitrião em Vinhais, Anselmo Morais, por uma estrada em terra batida a cerca de dois quilómetros da N 103 que liga Bragança a Chaves. Em 1996, ainda ali viviam cerca de 30 habitantes. Os últimos moradores fugiram ao isolamento e à falta de saneamento básico e construíram casas junto à estrada nacional. Hoje, Palas é um mar de silêncio, uma aldeia fantasma, casas abandonadas, outras em ruínas. Por momentos, inventamos vida onde ela já não existe: «Ali, aqueles cortinados a mexer...está ali alguém?» Apercebemo-nos rapidamente que o efeito esvoaçante é causado pelo vento que entra pelas vidraças partidas das janelas.
A desolação humana é tamanha em determinadas aldeias do distrito de Bragança que há pessoas que fogem quando vêem um estranho de mochila às costas a pedir uma indicação. «O senhor desculpe, eu vi o senhor na estrada mas eu não o conheço de lado nenhum...», explicou uma senhora em Pinelo, Vimioso, a recuar em direcção ao carro.
Outras vivem à espera de Agosto, o mês de todas as festas, de todos os reencontros. «Isto assim é um stress, não há ninguém, não há nada para fazer, é um stress», lamentava a dona de um restaurante em São Julião de Palácios, Bragança. «Agosto sim, Agosto é o mês mais feliz do ano, chego a não fechar a porta porque estão uns a chegar da última festa e outros a vir tomar o café da manhã. É festas, casamentos, baptizados, se vier aqui em Agosto não reconhece a aldeia, é gente por todo o lado». E depois? «Depois é uma tristeza. Quando o último vai embora, eu choro. Fecho o restaurante durante quinze dias, fico triste».
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