Nuno Ferreira faz-se aos caminhos do Entrudo nacional. Viaja até Trás-os-Montes, ao concelho de Macedo de Cavaleiros. Aí, em Podence encontra um carnaval chocalheiro. Há caretos e, com eles, as máscaras coloridas de latão ou madeira, fatos de lã vermelha, verde, amarela, envergados da cabeça aos pés. À cintura chocalhos e bandoleiras. Um relato que inclui «banhos de formigas».
Em Fevereiro de 2010, um céu pesado, baixo e sombrio abatia-se sobre o lençol cinzento das águas da albufeira do Azibo. No Verão, dizem, a praia fluvial faz as delícias dos autóctones e dos forasteiros. Em Fevereiro é uma miragem frígida que acena do outro lado da IP 4. Num pedaço grande de campo muito verde em frente à Casa do Careto, em Podence, os burros da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA) estavam ali para quem quisesse dar um passeio ou simplesmente dar uma festa. Por momentos, um careto trepou para cima do dorso de um deles e entrou rua dentro num improviso carnavalesco verdadeiramente espontâneo.
De há uns tempos a esta parte que a tradição do entrudo de Podence é promovida e bem pela autarquia de Macedo de Cavaleiros, que junta num único cartaz a que dá o nome de «Entrudo Chocalheiro - Carnaval Genuíno» as tropelias dos caretos e os desfiles carnavalescos nas ruas da cidade. No desfile de domingo, por exemplo, os caretos de Podence dão uma perninha e descem à cidade para chocalhar um bocadinho antes de regressar à aldeia.
Com tempo para apreciar o entrudo de Podence e simultaneamente o desfile carnavalesco de Macedo, acabei por ver o que vem do fundo dos tempos e o que se improvisa agora. «Ah, mas esse desfile não é genuíno», disseram-me em Macedo.
Por curiosidade e um pouco de teimosia também, acabei por assistir ao desfile citadino, onde, diga-se em abono da verdade, não existem corsos abrasileirados e cada aldeia da região se faz representar, nalguns casos com alguma peculiaridade, como a Banda de Latos de Bagueixe, um povoado de 190 habitantes entre Macedo e Izeda. Os locais da Associação Cultural de Bagueixe tocam baldes de lata, enxadas, chocalhos, sempre em ritmo sincopado tal como dantes os pastores faziam para afastar os lobos e há quem diga que antigamente os mais pobres da aldeia batiam com latos velhos à porta dos senhorios quando tinham fome.
Enquanto ao desfile citadino acorreram sobretudo os locais, Podence e os seus caretos são um chamariz para forasteiros, portugueses e estrangeiros, uma mole acasacada e munida de câmaras fotográficas e máquinas de filmar. Sob uma temperatura gélida e momentos de chuva muito fria, os caretos desciam e subiam a rua junto à Casa do Careto, chocalhando mulheres, sobretudo jovens vindas de fora. Traziam as já famosas máscaras coloridas de latão ou madeira, vestiam da cabeça aos pés os fatos de lã vermelha, verde e amarela e traziam à cintura chocalhos e bandoleiras com campainhas que em tempos deveriam assustar verdadeiramente as moças locais e agora diverte as turistas.
Antigamente, as mulheres da aldeia tinham de esconder-se em casa porque além de serem chocalhadas, eram alvo de cinza e dejectos e fustigadas com pele de coelho seca ou bexiga de porco fumada. «Para não falar no banho de formigas, broma pesada e cruel com especímenes selvagens recolhidos nos campos». Panela que estivesse ao lume era virada e despejada.
Hoje, num tempo em que os caretos já foram ao Festival da Canção, à Eurodisney, ao carnaval de Nice e ao carnaval de Viarregio, em Itália, a celebração é sobretudo uma atracção de raiz etnográfica para turistas sequiosos de imagens de um entrudo passado. Este ano, por exemplo, há concursos de fotografia, há de novo exposições várias na Casa do Careto incluindo uma exposição de fotos de Luís Brinco, o lançamento do vinho «Entrudo Chocalheiro» e do ensaio antropológico em livro «Por Detrás Da Máscara» de Paulo Raposo enquanto continua a ser exibido o documentário «No Domínio dos Tempos» de Vítor Salvador.
«A gente já não liga muito porque todos os anos é a mesma coisa mas a malta de fora gosta porque é um carnaval diferente. É bom para todos», confidenciavam-me em Fevereiro passado. Apesar da ameaça da chuva, o ritual da queima do entrudo com os caretos a correr em círculo entre as chamas foi um festim para os forasteiros. Não me cansei de tirar fotografias e imaginei como tudo deve ter sido nos velhos tempos, quando a aldeia, perdida num Trás-os-Montes que já não existe, vivia intensamente a tradição.
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