terça-feira, 26 de maio de 2015

«Uh, o contrabando é uma longa história»

Ti Fernando de Casares passava nos carreiros de bicicleta às costas; Bento Barroso Grilo passava na fronteira máquinas de jogo para o Casino da Póvoa. Duas histórias que só a raia produz.
O jornalista Nuno Ferreira a bordejar a fronteira transmontana traz-nos relatos do contrabando de outrora.
Não sei precisar exactamente quanto tempo caminhei na raia, a percorrer com algum preciosismo as curvas e incidências da fronteira entre Espanha e Portugal. Em determinadas zonas, é o nosso país que entra por Espanha, autêntico dedo espetado, como em Tourém, Montalegre. Noutras, como em Moimenta da Raia, concelho de Vinhais, Espanha e Portugal confundem-se. É possível, caminhar sempre em Portugal com os olhos em território espanhol. Nessas zonas, falar com alguém com mais de 40 anos, é entabular conversa com um ex-contrabandista, um filho de um ex-contrabandista ou neto de…
Vilar de Perdizes, por exemplo, vivia de noite. «Às duas, três da manhã, havia um movimento constante. As pessoas estavam aqui à espera de luz verde para avançarem. Fazia-se contrabando de tudo, bacalhau, azeite, alhos, chocolate. Também havia o contrabando de sobrevivência que era feito de dia mas o grande contrabando era feito à noite».
Mais tarde, os burros foram «despedidos» (cada pessoa tinha três ou quatro burros) e o contrabando passou a fazer-se em carrinhas VW e em camiões.
Vilar de Perdizes era uma aldeia «rica» em relação às outras: «Todas as crianças tinham dinheiro. Apareciam ensonadas na sala de aula, mais tarde percebi que tinham andado no contrabando de noite. As pessoas aqui, devido ao contrabando, ganharam um estatuto diferente do resto das aldeias do Barroso».
Enquanto fui caminhando junto à raia, fosse no Parque de Montesinho, fosse no concelho de Chaves ou no de Montalegre, umas vezes era eu que procurava a memória do contrabando, outras vezes era ela que vinha ao meu encontro. Numa curva, em Águas Frias, Chaves, encontrei António Lopes, à espera a carrinha com mercearia e com tempo para recordar os velhos tempos: «E quando fui buscar a Espanha um fato de mulher para casamento para entregar a Mirandela?» Do lado de cá da serra, uma samarra a tapar o saco, um guarda agarrou-o. «Botou-me a mão, fugi, ele a gritar alto aí, alto aí e a disparar tau, tau, tau».
António fugiu até a uma ribeira onde a única hipótese foi meter-se de água pelo pescoço. O saco levantou e boiou, enquanto António Lopes puxava as águas com as mãos. O guarda bem queria que parasse. «Bota-te à água que eu também me mandei!», gritava António. No outro dia pela noite, sempre a caminhar, já estava em Mirandela.
Hoje, multiplicam-se as «rotas de contrabando» organizadas pelas autarquias mas os ex-contrabandistas gostam de dizer que os seus trilhos eram muito mais duros e difíceis. «Isto que fazem agora não é nada», disse-me o Ti Fernando de Casares (Vinhais), 20 anos de contrabando. «Passávamos por carreiros com bicicletas às costas, potes de aguardente, barras de cobre ou burros onde hoje ninguém vai. Muita gente não acredita o que passávamos ali».
A história de vida do ex-contrabandista de Tourém (Montalegre) Bento Barroso Grilo, 88 anos, dava um livro, dos tempos de pobreza extrema e sofrimento até ao desenvolvimento de uma rede organizada de contrabando. Foi por ali que passaram as primeiras máquinas de jogo do Casino da Póvoa, em caixas pesando 200 quilos vindas dos Estados Unidos para Barcelona e dali para Ourense. «Fomos buscar as máquinas com um tractor», contou Bento Barroso, que é do tempo de atravessar com gado de Espanha a Tourém, de Tourém à Venda Nova e dali pela Serra da Cabreira até Fafe.
«Eu tinha cavalo mas ia quase sempre a pé porque havia sempre pessoas velhas e descalças a pé.
Uh, o contrabando é uma longa história…»

in:cafeportugal.net

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