O almoço estava maravilhoso. Tão simples e natural que fez despertar em mim, velhos sabores há muito esquecidos. Comemos distendidamente e, como por milagre, a minha tristeza encostou-se a um canto em deleitada contemplação.
Conversámos sobre "todos os do Brasil" como dizia a minha tia e eu lá lhe fui dando notícias pormenorizadas sobre cada um deles.
A minha avó ouvia, de olhos brilhantes, de lágrimas, talvez, as notícias dos seus três filhos ali emigrados e dos netos. Tinha saudades. Sabia que não os voltaria a ver a todos. Sabia que não conheceria os netos...
"Coma mãe, antes que arrefeça." "Não vês que estou a comer, filha." "Sim! Muito que ainda não mexeu no prato!" "Anda, mulher, come..."
Olhei para ela com imensa ternura, dei-lhe um beijo e insisti que comesse. Sorriu-me o seu sorriso travesso e levou a primeira garfada à boca.
Lá fora, parara de chover. O nevoeiro dava mostras de querer levantar. Um raiozinho de sol anunciava-se timidamente. "Que bom, parou de chover!"
Continuámos a conversar e a minha tia insistia na ideia de que nunca na sua vida iria ao Brasil. "É país que não visitarei. São todos índios e selvagens..." "Tia, me espanta que diga isso sendo professora! O Brasil é um país lindo, maravilhoso. O povo é hospitaleiro e afável." "Sim, e a violência e a criminalidade?" "Existe, é um facto, mas proporcionalmente. Eu nunca fui assaltada lá e você sabe que me levantava muito cedo para ir para a faculdade. Tinha de apanhar o ônibus das seis da manhã para começar as aulas às oito." "Tiveste sorte. O teu pai e os teus tios já foram assaltados umas poucas de vezes..." "Algumas, é verdade, mas sem violência, muito calmamente. É só não oferecer resistência e disponibilizar o dinheiro." "Aí está! Isso é vida?" Os meus avós ouviam, suspensos, a nossa conversa. "O que eu queria era tê-los todos cá.", disse o meu avô.
Defendi o país que me tinha acolhido de braços abertos e que amei (e amo), mal pus os pés no aeroporto de São Paulo. Tudo era novo, único, deslumbrante... Os sabores, as cores, os cheiros apoderaram-se do espaço a eles reservado e empurraram para o fundo do compartimento os que conhecia. Era uma pequena rapariguinha, curiosa, capaz de me abrir ao mundo e a tudo o que ele me oferecia.
Adaptei-me como se ali tivesse nascido. Integrei-me com uma facilidade admirável. Fiz amigos como quem bebe uma água de coco. Tudo era perfeito...
Portugal transformou-se num lugar longínquo. Da minha aldeia conservei o azul do céu, tão lindo que até dói e o rio, no verão, que era só risos e chapinhar na limpidez e frescura das suas águas puras.
Até a perfeição tem as suas pequenas máculas e essas são poderosíssimas. Vão corroendo o brilho e, aos poucos vamo-nos apercebendo que a felicidade que sentimos está algo enevoada. Interrogamo-nos, refletimos, continuamos com a nossa vida, casa faculdade, faculdade trabalho, trabalho casa. Família, porto de abrigo.
Acabado o curso, a decisão irrompe no almoço de domingo e apresenta-se como facto consumado: "Pai, quero ir para Portugal. Vou começar a lecionar lá." "Mas filha, você vai ficar sozinha, ainda não é altura de nós regressarmos." "Eu vou primeiro, depois vão vocês..." "E vai para onde, vai ficar com quem?" "Com a sua irmã, né?"
Nova mudança de plano, panorâmica despreocupada.
Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com
Esta Senhora escreve como quem respira!!!!, fácil a deixar brotar em torrente os sentimentos que lhe vão no espírito. Retive do seu texto " Os sabores, as cores, os cheiros apoderaram-se do espaço a eles reservado e empurraram para o fundo do compartimento os que conhecia.", a dar-nos uma visão da capacidade de adaptação de que biologicamente vimos equipados.
ResponderEliminarO texto acaba por nos dar com grande beleza o exemplo de que as raízes, as vivências da Infância e da Juventude, somente ficam adormecidas para mais tarde serem recuperadas com uma força ainda mais intensa.
Obrigada.
ResponderEliminarEscrever é mais difícil do que respirar, pois de respirar não nos esquecemos, já que é natural em nós.
A vida que nos cabe viver, nos tempos que correm, limita-nos enquanto seres criativos e sonhadores. Temos sonhos por cumprir e, também, a incerteza de o conseguir.
As memórias, próprias e alheias, assumimo-las como nossas. Espero que a vida flua, tão natural como o ato de, simplesmente, respirar.
Mara Cepeda