Acabado o almoço e a conversa e, como finalmente, havia parado de chover, saí para a rua. Estava ávida de novos horizontes.
Pela primeira vez, desde o meu regresso, procurava dentro de mim as memórias do pouco tempo que ali vivi.
Dessas memórias insistentes e indeléveis já aqui dei conta em outros escritos.
A rua "principal" que eu conhecia dos relatos do meu pai, quando aos serões, nos falava da "terrinha", era exatamente igual.
A igreja, em frente à casa dos meus avós, reportava-me para um cenário romântico. A ela me dirigi. A porta lateral estava aberta. A semi penumbra invadiu-me como se de outra atmosfera se tratasse.
Entrei. Habituei-me à pouca luz e dirigi-me ao altar-mor. Ajoelhei-me e benzi-me. Rezei, talvez, uma Ave-maria...
Reparei que as paredes eram feitas de pedra e caiadas de branco. Os altares, pobres. Santa Bárbara, pequena, olhava-me nos olhos como a relembrar-me... Não sei o que senti. Havia pessoas enterradas no chão da pequena igreja e era necessário quase pairar não fosse ofender alguém.
Respirava, a custo, aquela atmosfera. Lembrei-me da minha irmã mais velha, que não conheci e que havia falecido com dois anos e meio com uma dessas doenças infantis que nem os meus pais conseguiam dizer qual fora. Sentia-a pelas lágrimas da minha mãe, tantas vezes choradas, em tardes quentes de solidão paulista. "A minha menina, a minha linda menina..."
Como é óbvio, não estava enterrada na igreja mas, sim, no adro, debaixo da oliveira da Senhora como tantas vezes ouvira à minha mãe.
Chorei pela perda de todos nós. Chorei por mim.
Ouvi a voz da minha avó Maria, tão íntima, que conheci no ato do meu nascimento, em casa, com a parteira, tia da minha mãe, irmã do meu avô Zeca. Ficou para sempre como uma tatuagem na alma. Saí da igreja para o sol que agora fazia. "Olá avozinha!" "Minha rica filha."
Sorriu o seu sorriso desdentado, o imaculado cabelo branco a escorregar para fora do lenço verde, às flores pequeninas... "Anda que te vou mostrar onde pusemos a tua irmãzinha."
Segui-a sem contestar e, embora sem vestígios visíveis de alguma sepultura, apontou-me para um tufo verdejante de erva, salpicado por alguns pequenos malmequeres brancos, mesmo por baixo da oliveira. "Estão aqui muitos anjinhos, filha. Não é só a tua irmã. Não havia cemitério quando ela morreu."
Uma pequena lágrima aflorou nos seus olhos doentes de cataratas, fugaz. Agarrou-me na mão e cobriu-ma de beijos. Abracei-a e apercebi-me da sua leveza que em nada combinava com a sua carinha redonda.
Saímos daquele espaço que eu tinha pejo de pisar, descemos a meia dúzia de degraus que nos conduziam à rua enlameada e quase morro de susto ao ver algumas vacas que se encaminhavam para a bica onde deveriam beber antes de ir para a loja.
Com uma rapidez impressionante, até para mim, voltei-me e subi os degraus como se voasse, supersónica. "Não tenhas medo, filha. Elas não fazem mal."
Até podia ser verdade mas, nada me faria ficar onde elas me pudessem alcançar. Sentia um medo irracional destes animais, provocado por uma peripécia passada de que não possuía memória consciente.
Com o coração aos saltos, deixei que bebessem e que o boieiro as levasse. Tremiam-me as pernas. As minhas avós riam-se, o meu avô balançava a cabeça como se dissesse: "estou tramado contigo, rapariga."
Fim de tarde, lusco-fusco, os morcegos começavam a voejar por ali. A redescoberta do meu pequeno mundo teria de esperar.
Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com
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