terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Inverno - Ano Novo


Como o tempo avança, inexoravelmente, assim aconteceu. Voltámos para a aldeia, quinta-feira ao fim do dia, com todas as coisas que havíamos comprado.
À nossa espera estava Joli que saltava e latia, feliz de nos ver. A gata enroscava-se nas nossas pernas mal nos deixando andar. Os meus avós vieram até à porta perguntar se precisávamos de ajuda.
O dia despedia-se rapidamente e mostrava-nos um céu vermelho, belíssimo, encantatório... “Anda rapariga, mexe-te!” Com muita pena deixei de olhar o céu e pus-me a levar as coisas para casa.
Senti-me, de alguma forma, confortada e protegida, quando o calor da lareira se entranhou em mim. Vinha com frio. Sentei-me num dos tripés feitos pelo meu avô que era carpinteiro e aqueci as mãos e os pés. O meu pensamento voou, autónomo, para outras paragens mais quentes. Sofri. Era o último dia do ano e eu estava sozinha, tão absolutamente só como uma pedra no meio do caminho.
"Maria, vai por um avental que temos muito que fazer. É preciso preparar a ceia e temperar as carnes para amanhã."
Levantei-me, agradecida, por me terem resgatado da caverna escura onde adentrara.
Incumbiram-me de fazer as filhoses de abóbora, as rabanadas, os bolos de bacalhau. Confessei a minha ignorância culinária e fiquei deveras aflita por temer não levar a bom porto as minhas incumbências.
"Eu digo-te como se faz e tu vais fazer tudo. Garanto-te que vai sair perfeito!"
Pensei para comigo que não deveria ser nada muito difícil de fazer desde que bem orientada e meti mãos à obra.
Para meu espanto, com as indicações precisas da minha tia e um pouco de improviso, consegui fazer tudo e bem.
O restante jantar foi feito ao lume nos velhos potes de ferro. Devo confessar que o rodeão assado na brasa, que nunca tinha comido, as alheiras, o salpicão e as chouriças acompanhadas por batatas cozidas e couves tronchas, souberam-me como um manjar dos deuses. Os bolos de bacalhau quase pareciam os que a minha mãe fazia e todos foram unânimes em dizer que estavam ótimos.
Comeu-se devagar, como convinha, para que a meia noite chegasse farta e feliz.
Para reforçar as sobremesas juntámos-lhe o bolo-rei e um belíssimo pão-de-ló feito pela tia Engrácia no forno a lenha, depois de ter cozido o pão.
Devo dizer que nunca havia comido filhoses, fossem elas de abóbora ou outras, o mesmo acontecendo com as rabanadas; as nossas eram embebidas em café porque a minha tia não gosta de leite. Acho que tive sorte de principiante e, felizmente, tudo saiu muito bem.
Mesmo tendo comido pausadamente, às dez horas já tinhamos acabado a refeição. Ato contínuo, o meu avô levantou-se do seu lugar e "Vou prá cama. Não fiqueis até muito tarde."
A minha estupefação deve-se ter refletido na minha cara pois, em tempo algum, podia supor que alguém se fosse deitar antes da meia noite na passagem de ano.
Comecei a pensar que, provavelmente, ficaria sozinha na minha primeira passagem de ano em Portugal. Entristeci.
"Ó pai, fique connosco até à meia noite." "Não tinhas tu a culpa! Com este frio, só vós que não tendes juízo nenhum!" Vira-se para a minha avó Elvira e diz-lhe que não demore.
A minha avó Maria levanta-se e encaminhasse para a porta. "Não avó, não vá ainda..." "Já é tarde filha. Tenho de ir." "Dorme comigo avó, cabemos as duas na cama." "Não, minha filha, volto amanhã."
Saiu para a noite gelada, cheia de estrelas como eu nunca vira. Fiquei à porta enquanto a minha avó se afastava ligeira. Olhei para o imenso céu, para os milhões de estrelas que continha e suspirei. Amanhã será outro dia.
Levantámos a mesa, lavámos a louça e sentámo-nos ao lume que, lentamente se consumia. Colocámos mais um pau na lareira e esperámos o tempo passar. Veio-me à lembrança a canção do Chico Buarque de Holanda: "Estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra ver a banda passar, cantando coisas de amor..."
Senti vontade de falar com os meus pais, irmãos, primos e tios, tanta que a saudade doeu. Não podia fazê-lo. Não tínhamos telefone. Senti-me tremendamente infeliz.
Conversávamos, pouco, monossilabicamente. Senti que elas estavam ali por minha causa. Não há champanhe, pensei...
Ali estava, à luz da candeia, o lume aceso, um silêncio sepulcral apenas entrecortado com os chamamentos do meu avô pela minha avó...
O tempo que mediou a chegada da meia noite, embora pouco, foi doloroso. A minha tia colocou o pequeno pote que utilizávamos para fazer café ao lume com água. Foi buscar a enorme tablete de chocolate, grossa e pesada que a minha avó Maria tinha trazido. Começou a ralá-lo para dentro do pote. Isaura sorriu: "Vai tomar o melhor chocolate quente do mundo. Vai ajudar a matar um pouquinho a tua tristeza."
Achei improvável que tal acontecesse. Esperei.
Quando me passou a caneca para a mão cheia de chocolate quente e espesso, ao primeiro gole, reconfortei-me. Bebi-o com enorme prazer. Olhei para o relógio e vi que eram onze e meia. A minha avó levantou-se, deu as boas noites e foi para a cama que o meu avô não se calava. A minha tia fez o mesmo. Fiquei só, teimosamente. "Vai-te deitar! Está muito frio e o lume está quase apagado.Não penses muito neste dia, faz de conta que é um dia como os outros."
"Já vou tia." Fiquei até pouco depois da meia noite. Chorei, simplesmente, sem alaridos.
Acendi a vela que me tinha sido dada, apaguei a candeia. Tiritava de frio quando me enfiei debaixo dos cobertos com os quais quase não podia. Continuei, silenciosamente, chorando pela noite fora. Adormeci de manhã e o novo ano encontrou-me a dormir o sono do esquecimento.
Era tarde quando, finalmente, me levantei.


Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.com

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