terça-feira, 24 de setembro de 2024

...quase poema...ou memórias do nordeste

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Ao fim da tarde regressamos à casa das nossas memórias, dum tempo onde todos os sonhos eram possíveis materializáveis nas prendas dum Cristo antiquíssimo que todos os anos nascia à beira do nosso Presépio pobre, construído à imagem e semelhança da pobreza da nossa aldeia transmontana.

Vamos acender lume que aqueceu mil Invernos para esquecermos a geada e a neve buraqueira que teimosamente tenta entrar em casa por entre as telhas velhas que abrigaram muitas gerações. 
Já matamos o porco, fizemos as alheiras, os chouriços, os salpicões e os botelos. Salgamos os presuntos e gastamos as noites à espera que o calor da lareira seque o fumeiro que será o aconchego de muitos dias.
Esta noite não veio ninguém para a nossa velada e ainda sobrou meia alheira que assamos em lume brando. Por isso, aqui estamos às voltas com os nossos pensamentos, pensando esta terra brava onde os homens obrigam as fragas a dar trigo, azeite, vinho, como quem troca suor pelos melhores produtos da natureza.
O Nordeste transmontano é sem dúvida esta rusticidade de têmpera velha, onde o tempo parou avaro duma cultura ímpar, cheia de mitos, de lendas, dum saber fazer ancestral onde o milagre da mão tece o linho, fia a lã, molda o barro, coze o pão, vai à novena da Senhora da Serra, consulta a bruxa guardadora de mistérios e esconjuros para as doenças da alma.
Ligamos a Televisão e o mundo é grande e orgulha-se do conhecimento científico, das novas tecnologias, do poder da engenharia genética. Os ricos combatem outros ricos e os pobres continuam a ser cada vez mais pobres. Contemplamos o Planeta sentados no escano da nossa casa, onde o nosso avô dormiu regalado no aconchego da manta velha, e sem saber porquê temos saudades de nós, temos saudades desta Terra a Nordeste que tem que preservar o passado e ao mesmo tempo conquistar o futuro.
Fala-se muito em desenvolvimento sustentado e ainda bem, pois temos que travar um certo crescimento saloio que nos envergonha, que transforma o nosso espaço urbano, cheio de riquezas arquitectónicas e paisagistas, numa amálgama de cimento, de rotundas, de semáforos, de prédios sem alma na ausência do vagar do pedreiro que morreu e levou consigo a delicadeza de afagar as pedras.
Por isso, é urgente ir a Freixo de Espada à Cinta, mergulhar fundo no abismo do Penedo Durão e pressentir a dança dos abutres que cruzam os céus num voo largo e solene. Temos que revisitar Miranda e descortinar as memórias de Bispos velhos, enquanto os Celtas dançam para amaciar a guerra. É necessário adoçar a vida com as amêndoas de Moncorvo, com as cerejas de Alfândega, com o vinho fino de Carrazeda, com o fumeiro de Vinhais. Temos que percorrer os caminhos dos comerciantes judeus de Vimioso, ir à feira dos Gorazes de Mogadouro, espreitar Dom Dinis versejando os encantos de Vila Flor, gastar os olhos nos remansos do rio Tua de Mirandela e na beleza da novíssima praia do Azibo de Macedo, para finalmente chegarmos a Bragança à velha Domus dos homens bons e ficarmos comovidos com a lenda da torre da princesa que eternizou amores proibidos dando alma e emoção às velhas pedras do monumental castelo.
As gentes transmontanas vivem outras emoções numa partilha da Democracia que herdou dos velhos comunitarismos. Sai à rua, convence o vizinho, diz meia dúzia de palavrões, luta pelo seu Presidente da Junta, bate-se pelo Presidente da Câmara, ignora os Partidos e revê-se em rostos conhecidos, em sentimentos de honestidade de gente que promete e tem que cumprir porquê os transmontanos têm a sabedoria da honra, a grandeza da palavra dada, e uma sagueza política que não se aprende nos livros mas sim nas regras da boa vizinhança.
Contudo, este relicário transmontano não pode ser o último reduto para estudo duma antropologia que tragicamente vem participar na morte anunciada duma cultura que resiste dolorosamente à avassaladora cultura de massas. O Nordeste tem que renascer das cinzas e não podemos assistir serenamente à morte de tantas aldeias, onde há casas, fontanários, caminhos, mas onde o último habitante partir há muito e para sempre.
O drama do Nordeste transmontano é sem dúvida a desertificação. O Distrito de Bragança envelhece drasticamente, não há crianças, em breve os adultos serão poucos e se não formos capazes de inverter este fenómeno, se hoje encerramos escolas e aldeias, em breve encerraremos Concelhos.
O Distrito de Bragança está a atravessar uma profunda crise de sobrevivência e contudo quando lemos determinadas teorias ficamos com a impressão que ainda é aqui que encontramos a dignidade perdida da humanidade, porque existem sinais de esperança, de que ainda é possível encontrar o homem ético capaz de viver em sociedade.
Pela constatação de alguns paradigmas sociais, parece-nos que a nostalgia dum paraíso perdido regressa aos horizontes das nossas vidas. Sonhamos de novo com o homem comunitário, que não se reduz ao sonho perdido das aldeias de Rio de Onor ou Guadramil, mas que finalmente tem a dimensão da permanência no nosso quotidiano. Para este homem comunitário o bem estar da sua comunidade estava em primeiro lugar e o seu próprio bem estar era relegado para segundo plano. 
Remexemos memórias e de novo encontramos o homem solidário respeitador dos valores, das crenças, dos mitos, que em comunidade administra a sua propriedade e em comunidade define regras de comportamento e perspectivava o desenvolvimento em função de padrões comunitários.
Contudo, quando olhamos para a sociedade contemporânea onde impera um capitalismo liberal, no pior sentido do conceito, onde o dinheiro se sobrepõe ao homem, onde há cada vez maior pobreza e maiores riquezas, aonde existe a exploração do homem e o apelo ao consumismo é constante, ficamos com dúvidas se o homem comunitário das nossas memórias transmontanas não será um paradigma perdido.
Mas, sem dúvida, é necessário agarrar a esperança, nem que seja a última esperança para que o homem transmontano ainda possa viver numa região de velhos comunitarismos, com dignidade e com moralidade.
Em verdade, enquanto não surja o homem novo mais preocupado com a moralidade do que com o consumismo e o bem estar individualista, o sonho do homem comunitário nascido na rudeza das terras bravas do nordeste transmontano, será o paraíso do desejo que aguarda uma discriminação positiva por parte dos mais ricos que têm que pensar nos mais desprotegidos e naqueles que vêm os seus filhos partir pelo mundo à procura de níveis de vida que a sua terra não lhe pode oferecer.


Fernando Calado
nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

Sem comentários:

Enviar um comentário