Local: VINHAIS, BRAGANÇA
Esta é uma história de Outono. Do suave Outono que, com a eclosão dos frutos, todos os anos torna os anseios de todos nós mais fundos, mais vivos, mais humanos... Sim, é uma história de Outono — no amor, no sacrifício, na nostalgia, a estação que tão bem (e tão simplesmente!) descreveu um dos maiores poetas de Portugal: Augusto Gil.
Outono. Morre o dia.
Cai sobre as coisas plácidas e calmas
Um véu de sombra e de melancolia
Que dulcifica e embrandece as almas.
Pois foi no Outono (há tantos, tantos anos já, que a memória não os consegue contar...) que esta história começou. No Outono e nas margens do rio Cabanelas, lá para os lados de Vinhais...
Helena, a formosa Helena, de quem os poetas diziam que tinha nos olhos o brilho do mar e nos cabelos os reflexos dourados do Sol — Helena, filha de um poderoso rei cristão, deixava-se também contagiar pelas nostalgias outonais...
O único confidente que ela tinha era seu pai, tão forte no batalhar como sensato nos conselhos.
— Oh, Senhor meu pai... Nem sei o que sinto... É uma vontade estranha de sonhar, estando acordada...
E suspirando, ela continuou:
— Ás vezes, Senhor meu pai, fico-me a olhar um ponto distante, e chego a persuadir-me de que toda a minha vida se escoa por aí, lentamente, misteriosamente...
Os seus olhos fitaram os olhos do pai, como que a querer ler-lhe na alma:
— Que será isto?... Sim, que será isto, Senhor meu pai?
O velho rei, mais sabedor que sua filha dos segredos da vida e do tempo, respondeu apenas:
— Sabeis o que é, Helena?... É a Primavera lutando contra o Outono!... Vós sois a Primavera, senhora minha filha — e que maravilhosa Primavera!... Mas a vida que nos rodeia agora é o Outono!
Foi a vez dele suspirar. E rematou as suas palavras confessando, como que numa confidência:
— É tempo de procurar o noivo por que a vossa alma anseia, minha filha. Já vo-lo tenho dito… e hoje repito-vos, com maior segurança. Compreendeis-me?
Mas Helena, a formosa Helena, pareceu não compreender — não querer compreender. Sacudiu os seus cabelos, longos e sedosos, num leve movimento negativo, e retorquiu:
— Bem sabeis o que penso a tal respeito, Senhor meu pai... Nenhum dos pretendentes que me apontastes — nenhum, escutai bem!... — fez até hoje bater mais forte o meu coração.
A sua voz esmoreceu subitamente. As últimas palavras foram mesmo ditas em murmúrio:
— Talvez não exista a alma par da minha!
Mas logo o pai de Helena reagiu:
— Existe, minha filha!... Existe… e há-de aparecer!
Houve um silêncio, durante o qual o velho rei pareceu meditar, interrogar-se intimamente.
— Só uma coisa receio, minha querida Helena!
— O quê? Dizei, meu pai... Falai, peço-vos!...
Ele suspirou de novo. Custava-lhe a confessar. Mas acabou por dizer, embora com voz cansada:
— Enfim… receio... que no exagero da vossa escolha… vos possais enganar... Às vezes, minha querida Helena, Deus castiga assim... Não tendes ouvido dizer que todos aqueles que muito querem muito perdem?
A formosa Helena sorriu. Sorriso doce, onde havia algo de indefinido.
— Oh, Senhor meu pai, eu não quero muito... Quero apenas um homem que seja digno da minha beleza. Que seja digno dos dotes naturais que Deus me deu!
Nova pausa. Nova revoada de pensamentos. E depois, entre duas respirações fundas, o velho rei, ponderado e sereno, sentenciou:
— Oxalá o encontres, minha filha!... E que ele te saiba compreender como tu mereces!
E, já mais desanuviado de semblante, ainda ajuntou:
— Amanhã, como sabes, realiza-se um torneio em tua honra... E como sabes também, minha filha, encontram-se na corte cavaleiros de todo o mundo, qualquer deles desejoso de ser o escolhido pela mais formosa das princesas.
De facto, no dia seguinte teve lugar mais um torneio de cavalaria, presidido por Helena, a formosa Helena... O seu olhar, altivo e belo, passeava indiferente sobre aqueles que ansiavam por um gesto, por um sorriso... Mas de súbito, Helena, a formosa Helena, inclinou-se para o seu velho pai:
— Senhor… reparai naquele moço, além. Vedes?... Que distinto me parece! E que porte admirável!... Não achais? Gostaria de o conhecer, de lhe falar...
O velho rei limitou-se a dizer, num resmungo tolerante:
— Hum!... Mais um, entre tantos... Nada sei a seu respeito... Mas vou sabê-lo imediatamente.
E o velho rei foi dar despacho à pretensão da filha, enquanto o torneio decorria agora com maior entusiasmo, pois o cavaleiro desconhecido — inspirado talvez pelo olhar de Helena, de que se apercebera e ao qual retribuíra com igual ardor — parecia vir a ser o vencedor final.
Dali a pouco, o velho rei voltava com notícias fresquinhas para sua filha.
— Helena... Helena... Já sei o que querias saber!
Parou para tomar fôlego, mas ela mal o consentiu, de alvoroçada que eslava.
— Dizei, Senhor meu pai, dizei depressa!
E num rompante de alegria, embora ruborizada pela vergonha da confissão, ela afirmou convictamente:
— Agora, sim... Agora sinto o coração bater mais forte!
Então o velho rei, transformando em força a fraqueza da idade, esclareceu sem mais demora:
— Trata-se de um moço peregrino que vai a caminho da Cruzada. Ninguém sabe ao certo donde veio, mas todos temem a sua força e a sua destreza.
Helena voltou a olhar o campo de combate. O torneio estava no fim. E ela não conseguiu conter uma explosão de entusiasmo.
— Vede, Senhor meu pai, vede!... Olhai para ele! Acaba de derrubar o último adversário!... É maravilhoso!
E fechando os olhos, no reflexo de uma oração muito íntima sublinhou baixinho:
— Bendito seja o nome de Deus!
E o velho rei repetiu, também baixinho:
Nessa noite, segundo conta a antiga lenda, ambos se encontraram no grande baile da corte. E logo ele, o cavaleiro desconhecido, desenvolto e amável, se dirigiu a Helena, a formosa Helena.
— Senhora, permiti que deponha a vossos pés o meu triunfo… e sabei que somente o consegui pensando em vós!
A filha do velho rei cristão sentiu-se confusa. As suas palavras saíram breves, embaraçadas, ao sabor da excitação que a dominava.
— Agradeço-Vos, senhor... Agradeço-vos e felicito-vos... Vencestes os melhores batalhadores do meu reino...
E ele, expontâneo, fluente, sem dar tréguas ao diálogo:
— Com a ajuda do vosso olhar, Senhora... Foi ele, só ele que me deu forças para vencer.
Helena titubeou, num leve sorriso:
— Oh, sois poeta!...
Mas o cavaleiro desconhecido riu, com discreta cortesia.
— Poeta, eu?... Nunca na minha vida dei por isso...
E olhando-a bem no fundo dos olhos, rematou com voz intencional:
— Mas agora, sim... Talvez agora eu queira ser poeta... só porque estou junto de vós, Senhora!
Mais confusa do que nunca, feliz e emocionada, Helena fingiu querer mudar de conversa.
— Disseram-me que viestes de longe...
E o jovem cavaleiro, sem perder tempo, voltou a sublinhar.
— Senhora, sim... É certo o que vos disseram. Eu vim de longe, de muito longe… apenas para vos ver e admirar!
Recuou alguns passos. Quedou-se extático, maravilhado. E ajuntou com voz trémula:
— Quero dizer-vos, Senhora, quero dizer-vos que, afinal, vós sois ainda muito superior a tudo quanto me disseram de vós!
A partir desse instante, Helena, a formosa Helena, passou a viver apenas para o cavaleiro desconhecido, que viera de tão longe só para lhe render homenagem.
O idílio entre ambos foi-se prolongando, dia após dia, noite a noite. Até que, certa manhã, o palácio acordou num doido sobressalto.
Desvairado, sem encontrar sua filha Helena, a formosa Helena, o velho rei clamava, numa fúria:
— Procurem minha filha, imbecis!... Procurem-na por toda a parte… Não, não é possível que esse miserável a tenha raptado! Não quero acreditar!... Para quê, se eles podiam ter casado aqui, e aqui ser felizes?
Porém, de nada serviam as ameaças, nem as súplicas, nem os gritos do rei. Os seus emissários nada conseguiam descobrir. E ele somente se podia lamentar.
— Minha pobre Helena! Minha querida Helena! Tanto quis escolher... Oxalá Deus não a castigasse!
E de novo apelava para os seus melhores servidores, os fiéis companheiros das grandes batalhas.
— Ide! Procurai de novo!... Por tudo vos peço: não volteis sem trazer notícias de minha filha!... Darei a fortuna que me resta àquele que encontrar a minha bela Helena!... Ide, amigos! É preciso descobri-la!
E eles foram. E procuraram. E voltaram tristemente, terrivelmente desiludidos.
Somente alguns se atreveram a contar a grande verdade ao seu velho rei: que o sedutor de Helena, a formosa Helena, por maior desgraça ainda, fora um jovem guerreiro mouro, habilmente disfarçado de peregrino.
O soberano exclamou, num assomo de energia.
— Como? Que dizeis? Que ele era um aventureiro mouro… um príncipe infiel disfarçado de peregrino?... Tendes a certeza, amigos?... Absoluta certeza?
E diante do olhar apiedado dos outros, o velho rei caiu de joelhos, clamando e chorando:
— Oh meu Deus, meu bom Deus!... Maior castigo eu não poderei receber!... Maior castigo não podia ser o Vosso!
E assim era, na verdade. Quando a princesa Helena, a formosa Helena — a quem o seu raptor fizera tomar um narcótico, com a cumplicidade de uma escrava — despertou, já longe do palácio, e se viu conduzida à garupa do corcel do seu apaixonado, teve a terrível revelação do que lhe acontecia. E gritou, num impulso de vontade.
— Parai!... Parai!... Estais louco?
Mas o cavaleiro desconhecido limitou-se a rir calmamente e a dizer:
— Louco nunca estive, Senhora! Estais admirada decerto... Porém já sabereis quem eu sou!...
Abrandou a marcha da montada, até que esta parou. O cavaleiro debruçou-se sobre Helena, a formosa Helena.
— Ficai sabendo que sou um príncipe mouro, inimigo da vossa religião. Mas desejo fazer-vos minha esposa!
De um salto, ela apeou-se do cavalo, desenvolta e raivosa.
— Nunca! Ouvistes bem?... Nunca!
E sem que ele a pudesse segurar, Helena, a formosa Helena, correu para a ribanceira mais próxima, rolando por ela desvairadamente.
— Esperai! Esperai, Helena!... Que fazeis?
Mas era tarde. Perturbado, o cavaleiro olhou em redor. Teve a sensação de que era perseguido. Então, sem descer do cavalo, abalou dali à desfilada, convencido de que Helena, a formosa Helena, encontrara a morte lá em baixo, no fundo da ribanceira…
Porém, Helena não morreu. Por estranho prodígio e para salvação sua foi parar às águas tranquilas do rio Cabanelas... E, conforme se continua a contar de geração em geração, Helena, a formosa Helena, ali ficou a viver largos anos, envergonhada da sua triste aventura. Até que um dia, quase por acaso, um súbdito de seu pai a descobriu e a levou de novo para o palácio, apresentando-a de surpresa ao velho soberano, que não se cansava de chorar a morte de sua filha.
De princípio, ele mal podia acreditar. O sorriso e as lágrimas misturavam-se no seu rosto.
— Mas será possível?... Será possível que Deus ouvisse as minhas súplicas?... Oh, meu Deus! Obrigado, mil vezes obrigado! Isto é um autêntico milagre dos Céus! Um autêntico milagre!
E correndo para a filha, e abraçando-a, e beijando-a, somente sabia repetir:
— Minha Helena, minha querida filha!... Um milagre! Um verdadeiro milagre!
Mas Helena vinha diferente. Não era mais a formosa Helena: era uma pobre mulher, roída de desgostos e saudades.
— Como vos tinheis razão, meu pai!... Fui bem castigada!
O velho rei olhava-a, quase sem a ouvir. Mirava-a da cabeça aos pés. E de súbito, perguntou:
— Helena, minha querida filha... Que fizestes do vosso colar... aquele colar tão lindo que era o meu encanto?
Ela suspirou. Suspirou devagarinho. A lembrar-se da sua infeliz aventura. E acabou por confessar, como que envergonhada:
— Oh, Senhor meu pai... Deixei-o nas águas do rio que me salvou... Ofereci-o às trutas que me deram de comer durante tantos e dolorosos anos…
E é talvez por isso que, ainda hoje, o povo das redondezas atribui ao colar de Helena, a formosa Helena, o sabor magnífico que têm as trutas pescadas no rio Cabanelas, la para as bandas de Vinhais.
Fonte: MARQUES, Gentil Lendas de Portugal
Sem comentários:
Enviar um comentário