Parte das minhas recomendações destina-se a viajantes fora de época, aqueles que sobem a uma serra para poder observar melros num descampado, ou árvores raras num campo inclinado para um rio. É um vício pessoal e, felizmente, transmissível. A ideia de que a paisagem pertence apenas à natureza seria um descanso – mas não é verdadeira. Foi construída por gerações de gente descuidada ou prestável, concentrada ou apenas atenta e respeitosa. Esse país vai desaparecendo num mar de rotundas suburbanas e de parlapatices arquitectónicas que o futuro se encarregará de demolir. Enquanto esse tempo não vem, aproveitemos. Partamos para o interior. E para o mais distante. Veja--se a localização de Outeiro no mapa.
O meu primeiro contacto com a freguesia deve-se ao seu castelo abandonado, também chamado do Mau Vizinho, uma fortificação rasante ao planalto e à estrada que segue entre Bragança, Vimioso e Miranda. CAMINHOS PERDIDOS
Grande parte dos portugueses ignora os caminhos perdidos do interior, sobretudo estas vias solitárias que atravessam desertos que foram sendo abandonados pelos roteiros turísticos habituais, pelos caminhos da economia do cimento e do asfalto rápido e, finalmente, por si mesmos, convertidos em seres urbanos e impermeáveis à beleza da paisagem ou à sua história.
Por isso, essa construção do início do século XIV é um emblema do planalto – tal como, em outra dimensão, e mais bem conservado, é o castelo de Algoso, uma vigia belíssima e misteriosa dependurada sobre um alcantilado que acompanha o rio Maçãs.
DESCONCERTANTE
A Igreja do Santo Cristo de Outeiro segue uma cronologia que deixou as suas marcas desde 1648, data em que foi edificada, na sequência da Restauração – e onde o ano de 2011 será decisivo, uma vez que foram recentemente concluídos alguns trabalhos de restauro. Visitai-a, leitores! Erguida no centro da pequena aldeia, é um monumento a não perder: pelo seu exterior, surpreendente de volume numa aldeia minúscula; pelas suas duas torres sineiras que rodeiam, do alto, uma balaustrada raríssima; pelo interior de três naves e altares de talha dourada; pelo coro alto – mas, sobretudo, pela sua sacristia, uma obra de arte no conjunto. Explico: pouco espaço de parede existe que não esteja coberto pelas cerca de noventa imagens emolduradas representando cenas bíblicas com a vida de Cristo. E é uma explosão de cor, de rostos impressionantes, de volumes, de ironias. "Ironias?", pergunta o leitor que procura "arte sacra". Ironias, responde o incréu, porque se devem a Damián Rodríguez Bustamante, o meu herói setecentista de Valladolid, pintor que não atraiçoa nem as suas origens nem a sua vontade de brincar com elementos do Divino e rematar com um auto-retrato infiel em que o artista assume o seu gosto pelo vinho.
Lá está ele, de copo erguido, a beber, brincalhão – o Bustamante –, para deixar a sua assinatura dourada, querida dos outeirenses, mesmo dos abstémios que, felizmente, são poucos. Bustamante é o meu herói, a beber na sacristia.
Por: Francisco José Viegas
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