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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Pobreza

Pobreza. Nada mais do que pobreza naquela pequenina aldeia do concelho de Vinhais. Não pobreza de dinheiro. Não, que esse ia havendo para o que fizesse falta e muito mais.
Era uma pobreza de espírito aliada a uma estonteante e desconcertante avareza.
Quando conheci a tia Joana, era ela já muito velhinha, enrugada, negra, andrajosa, parca de carnes, encarquilhada, dobrada, quase até aos joelhos, onde lhe tocavam os murchos peitos dos muitos filhos que havia parido.
Era filha de uma casa rica. Casara com um homem abastado. Tinham de seu e mais construíram e amealharam ao longo das suas sacrificadas vidas.
Os filhos não nasceram em berço de ouro porque na casa não havia limpeza nem arranjo. A roupa que havia mantinha-se nas arcas fechadas a sete chaves. Ana vestia-se e a roupa acabava no corpo até se diluir pelo uso e pela sujidade.
Comia-se o que a terra dava, com parcimónia extrema. Mais valia que se estragasse no campo para que todos vissem a sua fartura do que alimentar os filhos famintos e ávidos de tudo. Joana cozia o pão em grandes fornadas que tinham obrigação de durar o dobro das outras casas.
Ninguém entendia as razões daquela miséria. Tinham dinheiro, muito dinheiro.
António, o filho mais velho, mal pode com as pernas, passou a trabalhar nas terras dos pais, mal vestido, mal alimentado, mal lavado... fazia parte da paisagem. Tornou-se homem e sacava de um poderoso maço de notas do bolso encardido das calças e mostrava-o, presunçoso, a quem o quisesse ver. De fraca figura, não atraia as raparigas, nem mesmo quando mal se lavava que a merda era tanta que era difícil de tirar. Se alguma vez teve um fraco por alguém, nunca ninguém o soube. Era tão miserável como os maltrapilhos que ostensivamente desprezava. Calado como um dia sem vento, não se dava a conhecer. Trabalhava, apenas trabalhava.
Ernestina era outra história. Mal se sentiu gente, menina, muito menina, assume as rédeas da direcção da casa. O pai, homem inteligente, fez dela o seu braço direito. A mãe abdicou do que nunca fizera. Tirou toda a sujidade da casa, tornou-a habitável e saudável. Lavou-se e lavou os que quiseram ser lavados. Joana, a mãe, não admitiu que a moldassem, não permitiu que a limpassem. Trazia, apesar de tudo, a roupa mais lavada, fruto da árdua tarefa da filha que conseguia sacar-lhe a roupa para lha lavar. A vida segue o seu rumo. Ernestina casou, teve o primeiro filho em casa dos pais. O marido quis emigrar para os brasis onde já se encontrava o seu irmão mais novo. Lá foram os três. O menino, André, tinha um ano e era a luz dos olhos dos avós.
Julieta era uma menina muito boa, muito meiga, muito estudiosa com um sentido de responsabilidade muito acima da sua idade. Na escola era excelente a matemática, sofrível a português. A exigência do pai com os seus resultados escolares era aterradora. Muitas vezes sentiu na carne a fúria do progenitor quando uma avaliação escolar não estava dentro dos parâmetros. Vivia aterrorizada. Tremia de pavor quando a professora a chamava para ler um texto, fazer uma composição... Dizem que se suicidou aos dez anos, atirando-se de uma carrinha de caixa aberta em movimento.
Cândida, inteligente, viva, bonita, trabalhadora, não caiu nas graças dos pais. Essa, sim, se a tivessem posto a estudar, teria conseguido realizar o sonho do pai de ter uma filha professora, mas não. Era tão escrava como o irmão com a diferença de que António era feliz assim e ela não. Muito cedo se entregou ao homem da sua vida para se livrar da tirania dos pais. Foi expulsa de casa, grávida. Encontrou guarida na casa dos sogros pobres, limpos, humanos que não tinham muito dinheiro mas viviam uma boa vida para os padrões da época, numa miserável aldeia, no interior mais interior de Portugal.
Amélia, uma das filhas mais novas, tinha sido escolhida para estudar. A pobre rapariga não apresentava capacidades para tal mas era bonita. Fez a quarta classe ao cabo de seis anos. Foi para Bragança fazer o exame de admissão ao liceu e, sabe-se lá como, conseguiu entrar. Andou dez anos a estudar e não passou do segundo ano. Entrou para as finanças, casou, teve dois filhos e viveu uma vida tranquila e responsável na vila. Era limpa, vaidosa e ciosa da sua casa.
Glória, a mais nova, nunca deixou de ter cinco anos. Tinha um atraso mental dessa grandeza e era mais uma naquela engrenagem de trabalho sem descanso, daquela miséria incompreensível. Desde a ida da irmã mais velha para o Brasil, regressara a miséria, a sujidade, a fome...

A pobreza e a miséria, às vezes, não são uma questão de dinheiro...

Mara Cepeda
in:nordestecomcarinho.blogspot.pt

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