A obra do Prémio Camões 2011 desmente a despedida no documentário sobre a sua vida. Manuel António Pina deixa-nos “Um Sítio onde Pousar a Cabeça”. Ontem, no Hospital de Santo António, no Porto, o cancro só o levou a ele
O suspiro final do poema mente com todas as letras. Que acredite quem puder no desfecho do travelling sobre a sua obra, acompanhado pela récita. “Estas são as minhas últimas palavras.” Verbos de conversador nato, exemplar contador de histórias que os parceiros de tertúlia do portuense restaurante O Convívio terão frescas na memória. Aqui se provava o seu humor torrencial, e daqui seguia o jantar que levava para a mãe e para uma das filhas. Seguia-se a escrita no cardápio, nessa agonia de esgaravatar assunto que aflige a caneta de um competente funcionário da escrita com urgência de picar o ponto.
“Ele dizia que o facto de escrever uma crónica diária [para o ‘Jornal de Notícias’] era uma tortura. Não tanto escrever como encontrar o assunto. Só escrevia de noite. Deitava-se já sobre a manhã, dormia uma ou duas horas. Muitas vezes começámos a gravar depois da uma da manhã”, relembra Ricardo Espírito Santo, o realizador que assinou com o jornalista Alberto Serra o documentário “Um Sítio onde Pousar a Cabeça”, sobre a vida e obra do Prémio Camões 2011, “a coisa mais inesperada que podia esperar”, observou o escritor quando recebeu a notícia.
A Montablanc de escrita grossa oferecida pelo amigo e poeta Jorge Sousa Braga entendia-se melhor com a Lua, num ritmo marcado pela chaga regular da hemodiálise. Dupla pressão para um coleccionador de Parkers de tinta permanente desde os tempos do liceu, que vivia rodeado pelas bolas de pêlo humano dos gatos. Pressão aplacada pela cigarrilha, que se aninhava na mão esquerda com subtil desprezo pelos lábios. “Não sei travar o fumo nem quero aprender. O meu vício nem é de boca, é dedos”, confessou-nos em tempos a propósito do seu método de escrita, pleno de truques manuais e arcaísmos nostálgicos, quando a brevidade do telefonema em nada encurtou a sua música amena. “McLuhan disse que o ritmo da máquina de escrever é o mais próximo da improvisação do jazz, ao passo que o ritmo da escrita tradicional é mais próximo da sinfonia.”
Não é preciso ser bom homem para ser bom poeta, mas quando o maestro concerta virtudes o público aplaude com estrondo. “Privando com ele conseguíamos distinguir o que é autêntico do que é uma imagem construída. A rodagem será uma das experiências mais gratificantes que tive na profissão. Pelo extraordinário ser humano que o Pina era”, acrescenta o realizador.
“TRABALHAR COM PALAVRAS” Muito material captado por Ricardo Espírito Santo ficou de fora do documentário que a RTP voltará a exibir sobre o beirão nascido no Sabugal, a 18 de Novembro de 1943, que aos 17 anos foi adoptado pelo Porto, depois de uma infância em constante mudança, que o levou a passar pela Sertã e por Oliveira do Bairro, à boleia da profissão do pai, chefe de Finanças e juiz das execuções fiscais. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, em 1971, Manuel António Pina exerceu a advocacia, mas trocou-a pelo ofício das palavras, acumulando ainda no currículo empregos na publicidade, nas Contribuições e Impostos, nos inquéritos de rua, numa agência de informações comerciais, na Comissão dos Vinhos Verdes, nas vendas e nas aulas de Português, recuperando as lições dos seus mestres das aulas de Literatura, como Paulo Quintela e Vítor Aguiar Silva, que levavam a melhor ao protagonismo das leis.
Chegou às redacções com o “Jornal de Notícias”, em 1971, ainda a cumprir o serviço militar, diário onde chegaria a editor, e onde publicou até Agosto deste ano. Desabafos críticos que incluíam sempre poesia, aqui sem concessões a lirismos. “A vontade que tenho era pôr um cinturão de bombas e rebentar com essa malta toda”, confessou em entrevista ao i, em Fevereiro deste ano.
É caso para recordar o título do seu primeiro livro de poesia, que começou a escrever em 1965 e foi publicado em 1974: “Ainda não É o Fim nem o Princípio do Mundo Calma É apenas Um pouco Tarde”.
Os versos chegaram às estantes a tempo. Os primeiros ensaios recuam à criatividade dos seis anos, que a mãe se encarregou de guardar. Era miúdo, como muitos eram quando se cruzaram com os seus livros para a infância e a juventude, como “O País das Pessoas de Pernas para o Ar” (1973), “Gigões e Amantes” (1978), “O Pássaro da Cabeça” (1983), “O Inventão” (1987), ou “Histórias Que Me Contaste Tu” (1999). Quando cresceram, esses leitores não ficaram órfãos de irmãos. Pina pô-los a eles e a nós a imaginar pontos de fuga para os seus labirintos de trocadilhos, guiados por um “eu” que teimava em estilhaçar-se, a partir de motes como “Nenhum Sítio” (1984), “Um Sítio Onde Pousar a Cabeça” (1991), “Algo Parecido com Isto da mesma Substância” (1992), “Farewell Happy Fields” (1993), “Cuidados Intensivos (1994), “Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança” (1999), ou “Os Livros” (2003).
Ficam ainda as novelas e os ensaios, bem como os textos dramáticos representados por grupos e companhias de teatro de todo o país. A sua ficção serviu de base a alguns programas de entretenimento televisivo e algumas das suas obras foram editadas em disco. Em 2002, com a publicação de “Atropelamento e Fuga”, recebeu o Prémio da Crítica, atribuído pela Secção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários, ao conjunto da sua obra poética.
“Sempre foi minha intenção fazer um DVD com os conteúdos extraordinários que ficaram de fora. Passando esta ressaca, irei organizá-los. Há ali tesouros valiosos que merecem ser públicos.” Promessa de Ricardo Espírito Santo. Enquanto não chegam estas imagens, ficamos com as outras, como o começo de “Algumas Coisas”: “A morte e a vida morrem/e sob a sua eternidade fica/só a memória do esquecimento de tudo/também o silêncio de aquele que fala se calará.”
Por Maria Ramos Silva
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