terça-feira, 22 de janeiro de 2013

«Festas de Inverno com Máscaras»


Uma iniciativa que estuda e divulga o imaginário associado às máscaras transmontanas. A coordenadora do projecto, Paula Godinho, explica como decorre no terreno o trabalho desenvolvido por bolseiros. Estudam as várias formas de intervenção cultural e social dos caretos ou dos chocalheiros. Manifestações que mantêm vivas muitas aldeias confinadas ao abandono do interior do país.
Café Portugal - Como nasce a iniciativa «Festas de Inverno com Máscaras»?
Paula Godinho - O site é uma parte de um projecto que abrange vários bolseiros no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (IELT) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Esta página revela os resultados desse projecto que envolve bolseiros. Percorrem, aldeia a aldeia, todo o nordeste português para fazerem um levantamento e a cartografia da situação actual destas máscaras, que só emergem no ciclo de Inverno no norte de Portugal. Isto envolve um trabalho muito intensivo destes bolseiros e que eu venho dirigindo. É um trabalho que surge na sequência de algo que o Benjamin Pereira (o «pai» de todos estes estudos antropológicos em torno das máscaras) fez em 1973, através de uma obra absolutamente pioneira chamada «Máscaras Portuguesas». Uma abordagem em termos dos materiais, como são feitas, quem as faz, em que circunstâncias são usadas, e em que momentos do ciclo longo do Inverno. Recordo que este ciclo começa no dia de Todos-os-Santos e termina no sábado da Aleluia com dois momentos muito fortes no chamado ciclo dos 12 Dias (vai do Natal até ao dia de Reis) e também no Carnaval. Ou seja, falamos de momentos mais densos de um ciclo em que as máscaras, todavia, podem emergir. Depois, no final da década de 1990, Benjamin Pereira resolveu contactar uma série de antropólogos para que fossem com ele revisitar as máscaras. Eu participei nesse processo. Resultou daí um livro chamado «Rituais de Inverno com Máscaras».
C.P. - Falamos, então, de um trabalho de reencontro e de um novo olhar sobre anteriores abordagens antropológicas em torno das máscaras? 
P.G. - Exactamente, porque as máscaras têm sofrido modificações, as festas têm mudado e as sociedades alteram-se. E não poderia ser de outro modo. Não podemos olhar para as sociedades de forma cristalizada. Neste momento, quando vamos às aldeias transmontanas, estamos perante um terreno que está desertificado. Estas aldeias estão a perder gente desde a década de 1960, o momento em termos demográficos em que estes lugares tinham, mais pessoas. A partir dessa época, até aos nossos dias, o processo é de desertificação. Estas aldeias têm uma parte substancial da população fora. E as festas são feitas normalmente por jovens que estão fora. Nesse sentido, as festas tiveram que ter readaptações. Algumas das manifestações desapareceram e reapareceram em novo formato porque já não são as mesmas aldeias. Temos, pois que olhar para este fenómeno e perceber porque é que as coisas mudaram e entender como é que as máscaras hoje se apresentam. 
C.P. - E que máscaras são essas que temos hoje?
P.G. - Elas mostram que as festas passaram por um processo duplo. Por um lado, em comunidades que perderam pessoas e que dificilmente estão a resgatar a sua auto-estima porque não têm jovens que trariam uma enorme vitalidade a estes lugares. Nestas comunidades, estas festas, representam o resgate da auto-estima da aldeia. As festas permitem à aldeia mostrar aos outros que têm festas antigas, autênticas, com um passado que não sabemos muito bem até onde é que remonta. As aldeias agarram-se muito a esta ideia. As festas tornaram-se, portanto, num marco, num verdadeiro fenómeno de `emblematização` e de patrimonialização. Um outro processo, que se depara a estas aldeias, relaciona-se com uma instância externa de pessoas. Estas aparecem, vindas de fora, ligadas a empresas que querem promover uma certa exportação de segmentos festivos e que os levaram para fora da aldeia, do seu espaço e do seu tempo. São fenómenos de folclorização e festivalização da festa. 
C.P. - E essa «exportação» das festas tem consequências positivas, nomeadamente ao nível da promoção das aldeias e no combate à sua desertificação?
P.G. - São exportados os segmentos da festa que tenham maior espectacularidade. Em Ousilhão, no concelho de Vinhais, verifica-se, por um lado, que há máscaras de uma espectacularidade imensa, que aparecem nesta altura do ano. Por outro lado, há um grupo de quatro moços, menos espectacular, que faz um peditório por toda a aldeia com uma dança em torno da mesa de cada casa. Estes moços, que são fundamentais para a festa entendida localmente, não são alvo de exportação. Num festival urbano eles não têm o lado da espectacularidade que as máscaras de Ousilhão têm. 
C.P. - Mas são o exemplo vivo da tal história e tradições de que falava.
P.G. - Sem dúvida. Há autores que trabalham sobre estas questões da patrimonialização e que dizem que «o património é um recurso para tempo de crise», no sentido de uma crise enraizada. Quando uma população sente que não tem gente é aflitivo ver as aldeias transmontanas (onde faço trabalho de campo há muitos anos) de cabelos grisalhos todo o ano. Para essas aldeias, é bastante importante a valorização desta nova expressão que é dada à palavra património. E as aldeias orgulham-se muito dessa projecção para fora e desse reconhecimento que é feito das suas produções próprias, nomeadamente das suas festas e das suas máscaras. 
«Desarticulação do território»
C.P. - Estas simbologias e patrimónios que caracterizam as aldeias transmontanas e os seus os territórios, e que permanecem vivas pelas vontades colectivas locais, têm sido esquecidas pelos poderes instituídos? 
P.G. - Tem havido uma desarticulação do território do país que tem conduzido a que o Interior e as zonas rurais tenham sido sucessivamente desertificados. Cada vez que se fecha uma escola ou um centro de saúde, há que pensar que com isso se desarticulam modos de vida e se cria um modelo de desenvolvimento em que parece que só o urbano é importante e em que a ruralidade passou a ser algo de decorativo e um sítio de lazer para citadinos. 
C.P. - Há um preconceito em relação à ruralidade em Portugal?
P.G. - Há um preconceito em relação à ruralidade como se ela representasse atraso e como se o desenvolvimento fosse algo que só é possível na cidade. Neste momento há um movimento residual de neo-ruralidade mas que por enquanto é isso mesmo, residual. Há um desinvestimento sucessivo no mundo rural. As aldeias deixaram sucessivamente de ter escolas, sem crianças e que só têm velhos. 
C.P. - Estas aldeias têm um fim anunciado?
P.G. - É difícil prever este processo. Uma das aldeias onde trabalhei há muitos anos (final dos anos 80) no concelho de Vinhais tinha, na altura, 18 casas habitadas e a média de idades era 65 anos e eu achava que a aldeia estaria condenada. Mas um habitante regressou à aldeia, depois de se reformar, fez uma casa de turismo rural, contratou jovens, imigrantes, que foram para lá viver e revitalizaram o local. Do ponto de vista das políticas que têm sido desenvolvidas parece que tudo conspira para acabar com as aldeias. E de que é que vamos viver com a desarticulação da agricultura? Estas festas fundem nelas vários ritos agrícolas, associados a um momento do ciclo de cultivo em que no final de Outubro se lança a semente à terra, mas ela fica a germinar sem ser vista. É como se todo o campo estivesse morto. Este momento do ciclo agrícola tem uma assunção por parte das pessoas aos ciclos da morte. A força disto é tanta que, se reparar, este ciclo inicia-se com o dia de Todos-os-Santos, ao qual se segue o dia de Finados, um ciclo que termina no sábado da Aleluia. Há todo um conjunto de ligações à morte. Por outro lado, estas festas são levadas a cabo por jovens, porque estas aldeias têm de continuar. 
C.P. - Essa ligação da morte com a vida é importante?
P.G. - Acima de tudo é a teoria da continuidade e da reprodução das aldeias. Por um lado, o ciclo agrário quase deixou de fazer sentido quando a pouca agricultura que existe é sobretudo para a subsistência. Os jovens estão fora e restam apenas os velhos. Mas é impossível dar continuidade às aldeias só com velhos. 
C.P. - Qual a importância da simbologia destas festas e das máscaras e que efeitos provocam na sociedade?
P.G. - Não há uniformidade entre as aldeias, e as máscaras têm simbologias diferentes de aldeia para aldeia. No concelho de Bragança encontramos máscaras associadas às festas de rapazes e à passagem dos jovens a homens, depois temos festas associadas a mesas comunitárias. Mais a sul, no distrito de Bragança, na zona de Mogadouro, entre os rios Sabor e Douro, temos os chocalheiros. Os chocalheiros são, talvez, as máscaras com a maior carga de nominoso, ou seja, uma espécie de sagrado selvagem, é aquilo de que não nos podemos aproximar sem ficarmos completamente tocados. Quando se vê desfilar o chocalheiro, entre a névoa de manhã cedo no dia de Natal, é impossível que aquilo não tenha as tais características do luminoso, porque é tremendo, misterioso e fascinante. Esta máscara do chocalheiro é uma máscara que ainda hoje amedronta as pessoas da própria aldeia, sendo ao mesmo tempo uma máscara com uma carga fortíssima.
C.P. - E no caso dos caretos?
P.G. - Os caretos têm um lado brincalhão, chocarreiro, com uma carga muito grande sobre as mulheres. E aqui também se vê uma alteração, porque hoje em dia os caretos também podem ser mulheres. As mulheres conquistaram um novo lugar na sociedade, logo também conquistaram um novo lugar na festa.
C.P. - O Diabo e Deus são outras «figuras» também sempre presentes. 
P.G. - O que se passa é que estas festas reportam-se a um tempo muito longo. Os últimos dois mil anos foram anos sobre a hegemonia do Cristianismo. E o Cristianismo em relação a algumas festas anteriores colou-se-lhes ou perseguiu-as. Aquilo de que falamos quando nos reportamos aos diabos representados nestas festas, são eles próprios uma construção feita à posteriori em relação a outras personagens que provavelmente não teriam nada a ver com o Diabo. A colagem de algumas destas cerimónias, das festas a Santo Estêvão, considerado patrono dos jovens, é obviamente uma colagem do Cristianismo, neste caso do Catolicismo, a uma festa que seria pré-existente. E essa foi a forma de algumas destas festas permanecerem no tempo. Quando há pouco falei nos chocalheiros, estes, que são diabos, são talvez a máscara mais bela de todas as máscaras transmontanas. Todas essas máscaras dos chocalheiros e zangarrões foram máscaras perseguidas. A história dessas máscaras é a história da sua perseguição por parte da hierarquia católica. Em aldeias como Vale de Porco (concelho de Mogadouro), há 60 anos, houve um representante do clero que pagou para que a máscara fosse queimada em público. E neste momento, revisitei recentemente Vale de Porco e há uma revitalização, a máscara começou a sair de novo. O próprio presidente da câmara quer apostar nela como forma de recuperar a auto-estima da aldeia. Mas encontrei um fenómeno de fundamentalismo religioso que levou à destruição de uma representação da máscara que estava posta na entrada da aldeia, com a escrita em cima de ‘Jesus é maior’. E as pessoas não têm noção que estas coisas são vividas com muito impacto. Por fim, recordo que neste momento há Entrudos em Trás-os-Montes que são apelativos para também quem vai de fora porque este é também um outro momento para as aldeias se mostrarem. Podence (concelho de Macedo de Cavaleiros) tem o seu Carnaval, Santulhão (concelho do Vimioso), Vila Boa de Ousilhão (concelho de Vinhais) têm festas que as populações se habituaram a dosear, tendo em conta quem vem de fora e quem é de dentro. E há dias das festas mais virados para dentro e outros mais virados para fora, porque as aldeias também gostam de se sentir admiradas por esta população citadina que vai ali à procura de um Carnaval diferente. E as aldeias aprenderam a usar isto como um recurso e um capital de auto-estima e até turístico.

Ana Clara; Fotos - «Festas de Inverno com Máscaras»
in:cafeportugal.net

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