sexta-feira, 22 de março de 2013

A Poesia da Terra

Eduardo Guerra Carneiro

Só agora lhe chegou às mãos uma edição do CineClube de Faro, A Poesia da Terra, livro de homenagem aos cineastas António Reis e Margarida Cordeiro. É um volume de 292 páginas, com excelente aspecto gráfico, profusamente ilustrado, e que, através de entrevistas e depoimento, recolha de artigos de jornais e revistas, traça a vida e obra de dois dos cineastas que marcaram o cinema português nos últimos anos, nomeadamente com esse excelente filme chamado Trás-os-Montes (1976), assinado pelos dois, mas antecedido pelo profético Jaime (1974), assinado apenas pelo Reis.
Já, por várias vezes, neste mesmo espaço, lhe apeteceu escrever sobre o António, que partiu para outros mundos em Setembro de 1991, quando tanto havia ainda a esperar do seu talento. Sente a falta daquele sorriso aberto, das palavras amigas e solidárias, debaixo do odoroso cedro do jardim do Príncipe Real; numa mesa ou ao balcão da Cister, ali na rua da Escola Politécnica. Senta a falta desse príncipe camponês do Norte, da sua franqueza, da aparente timidez, da imensa ternura, dos seus diminutivos, dos abraços fortes, da maneira de dizer «adeus». Um imenso adeus. Ou, como cita o Rodrigo Afreixo, numa biofilmografia inserida no livro, Eu só quero ouvir os meus passos / nas salas vazias.
Mas, do António Reis, o conhecimento vem de longe. Vem, de um Porto quase mítico, do início dos anos 60, da admiração pelo poeta dos Poemas Quotidianos, de tertúlias de café ou taberna, como bem recorda o Manuel António Pina, nas páginas desse livro, num texto intitulado Duas ou três coisas que sabíamos de nós, já publicado na revista A Grande Ilusão, em 1992. E, também ele, lembra o poeta, o mestre, de sorriso gaiato, a dar lições de vida, ensinamentos de fraternidade, entre a chuva miudinha, que trazia uma estranha luminosidade ao granito e aos azulejos da cidade, e as águas secretas do Douro, que eles atravessavam em noites cerradas.
Mas cabem ainda aqui, nesta coluna, outras memórias mais profundas, quando, em Novembro de 1974, o António o convidou a passar três semanas com a pequena equipa que então filmava o Trás-os-Montes em terras do Nordeste.
Foi o espanto e o deslumbramento, entre Bragança e Miranda do Douro, com dias inteiros passados em Babe, Palácios, Ifanes. Recorda a paciência infinita dos dois realizadores; a procura do rigor e da perfeição; uma conversa na saleta com piano da Pensão Moderna, em Bragança; as meninas ruivas; Heliodora, um girassol aberto no planalto; o ferreiro Fortunato; os grandes sombreiros azuis dos padres; os pombais em ferradura; olmos e mais olmos; Albino Delgado, o pequeno pastor que fazia 15 anos, naquele dia de filmagens no lugar da Cruz das Antas, a gritar às ovelhas para se reunirem, falando-lhes dos lobos; um pequeno comboio, quase de brinquedo, a fumegar, às voltas, a apitar ao
longe, mas sempre presente.
Conta os caracteres do texto e repara que está quase a exceder-se.
Mas, desse livro, destaca uma entrevista com Pedro Costa, o realizador de Ossos, e, pelas suas palavras, ele está consciente que, afinal, o Reis não partiu naquele Setembro de 1991. Permanece. Como o comboio de Trás-os-Montes.


Eduardo Guerra Carneiro

Jornalista e escritor português, Eduardo Guerra Carneiro nasceu em 1942, em Chaves (norte de Portugal). Frequentou a Faculdade de Letras do Porto e de Lisboa, sem embora terminar a licenciatura.
Como jornalista, exerceu, desde o final dos anos 60, a sua profissão em vários órgãos de informação, como o Primeiro de janeiro, Diário Popular, O Século, República e a revista TV Guia. Foi distinguido, duas vezes, com o prémio Júlio César Machado que prestigia os melhores textos sobre Lisboa, na imprensa diária.
Enquanto escritor, Guerra Carneiro escreveu o seu primeiro livro de poesia em 1961, O Perfil da Estátua, seguindo-se muitos outros livros de poesia e de crónicas, tais como É assim que se Faz a História (1973), Damas de Copas (1981), Contra a Corrente (1988), Profissão de Fé (1990), Lixo (1993), Outras Fitas, (1999) e A Noiva das Astúrias (2001). A sua produção literária manifesta-se, inicialmente, no surrealismo e, mais tarde, num lirismo neorromântico.
Guerra Carneiro morava sozinho, no Bairro Alto, no mesmo prédio onde também viveu o mestre Agostinho da Silva. A 3 de janeiro de 2004, Guerra Carneiro foi encontrado sem vida.

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