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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

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COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

terça-feira, 19 de março de 2013

Márcia: O “Cão Preto”


Por: Amadeu Ferreira

Na aldeia, trama forte que o Diabo urdisse só a Tia Márcia deslindava.
Nó, por apertado, que o Sujo desse à vida dum desgraçado só a Tia Márcia desfazia.
Ferrolho que o Demo armasse às almas incautas só a Tia Márcia conseguia abrir.
O «Márcia» vinha-lhe do Brasil, onde nascera e se criara até aos catorze. Ao arrepio dos usos, que eram a gente nova emigrar para o Rio de Janeiro e para São Paulo, Márcia imigrara para a aldeia e com ela trouxera um sotaque cantarolado e aberto e uma «arte» que, diziam os entendidos, tinha muito a ver com o candomblé, os orixás, os voduns, os oxosis e os iemanjás e outros «cultos» dos nossos irmãos do outro lado do mar.
Toda a aldeia sabia das «artes» da Tia Márcia para anular enguiços e afastar assombrações, redes que o Diabo tecia quando lhe davam azo e abriam caminho às «malapatas» com que atentava os desprevenidos, que os aldeãos entendiam como «tentações do Demónio».
Que na aldeia o Demónio tinha muitos nomes, mas todos iam dar ao mesmo: às aflições e aos desassossegos dos que lhe sofriam as arremetidas e atraíam as atenções diabólicas. E alguns já o Demo assombrara e afligira, e eram várias as «manobras» que ele usava: desde «ataques» no termo em noites escuras e coriscosas até às «aparecidas» na curva do cemitério a horas caladas, tudo eram meios e processos de o Sinistro abordar os aldeãos descuidados e menos crentes.
Talvez viesse da variedade de circunstâncias e disfarces a diversidade onomástica que lhe atribuíam, nomes que a Tia Márcia invocava ao tornear-lhe as armadilhas e os maus intentos.
A Tia Márcia tanto recorria ao «Demo» como ao «Demónio», ao «Sujo», ao «Satanás», ao «Sinistro», ao «Canhoto», ao «Porco», ao «Barzabu», ao «Dianho» e até ao «Cochino», «Marrano», «Tinhoso» e «Mafarrico». Não se sabe bem das preferências da Tia Márcia nas invocações; se seria o acaso que as inspirava ou se o nome teria influência no caso concreto que ela tinha a resolver.
A «arte» da Tia Márcia não tinha paralelo na aldeia. Esconjuração sua era remédio e cura para muitos enredos dos corpos e das almas.
Só não passava «escritos» como a vidente da Lousa; ela até sabia ler e escrever, mas é que não acreditava naquele «recurso».
As palavras ditas a tempo e horas e com a devida intonação, os gestos cabalísticos ilustrados com penas de três pitas pretas cosidas com nastro de três fios, e três patas de coelho bravo enfiadas num baraço de linho de três fios dobrados completavam o cerimonial e eram a «ferramenta » toda de que a Tia Márcia precisava.
É certo que as tais palavras que acompanhavam o esconjuro vinham num «brasileiro» que soava um tanto estranho aos ouvidos da aldeia, mas a que muitos atribuíam o sucesso da Tia Márcia nos despiques com o «Mafarrico».
Às vezes, o Diabo empenhava-se na urdidura de um mal maior, o que pedia empenho especial dos interessados e da Tia Márcia. Mas os casos notáveis, que ficaram na memória e andam ainda na tradição da aldeia, foram três.
O do «ivadinho», um garoto eivado e relesito, que o Demo trazia mirrado, «sequinho com’às palhas» quando lho levaram, e ficou listo e escorreito com três dias de esconjuras e rezas e se fez depois um homem alentado e cheio de saúde.
O outro caso que deu brado foi o do «cavalo rinchão» que tropeava na Mesquita e nas Ferrarias em noites de tempestade e trovões e que resistiu a «figas», «abrenúncios» e «t’arrenegos» dos muitos passantes naquele caminho obrigatório para Vale de Ladrões e Carviçais, mas que nada pôde contra os apelos da Tia Márcia aos «génios do bem» e aos contrapoderes dos misteriosos «mundos do além» a que recorreu.
Mas a coroa de glória da Tia Márcia, e a razão cimeira da gratidão da aldeia, foi quando da aparição no caminho da Deveza do «cão preto de três cabeças e três pares de olhos» que impediu mais de um mês o acesso nocturno aos Casais dos Lobos, acesso importante para os pastores e os donos dos muitos castanheiros que ponteavam a zona.
O «cão preto» já fora visto por três aldeãos em noites particularmente escuras e de cieiro cortante, número que desceu quando duas das três testemunhas confrontadas com a dificuldade de ver um cão «preto» em noite também «preta» confessaram que o não tinham visto, mas que lhe ouviram bem os «ladrares» das três bocas ao mesmo tempo. Quanto ao terceiro, não teve dúvidas e manteve a certeza de o ter visto e ao brilho dos três pares de olhos fixos nele e que sorte fora o ter-lhe escapado «sem ofensa nem moléstia».
Ainda se pediu ao Tio Balhé que aprestasse a caçadeira e os zagalotes e saísse ao caminho à «besta-fera» na curva do caminho da Deveza onde se acoitava aquela «alma penada feita cão». Mas o Tio Balhé argumentou que melhor seria pedir ajuda à Tia Márcia, que «cão preto de três cabeças» não era serviço ao alcance da sua pontaria, «porque se acertasse numa sempre ficariam duas», e mesmo que acertasse em duas
sempre poderia a terceira vingar-se do «desaforo que haviam feito às parceiras», como ele dizia.
O Tio Balhé lembrou ainda o caso de há anos em que o povo pediu a um seu parente, também caçador, que o livrasse dos lobos que, às ocultas do escoval que então enchia o Trás-das-Eiras, se chegavam aos gados quando saíam e entravam nos palheiros. Só que ao parente, ao meter-se ao escoval, lhe saltou um lobo, «grande com’um reixelo», de moita espessa, sem campo de tiro nem tempo de pontaria, e que milagre foi ter tudo ficado só numa grande borrada nas calças do caçador, «que não poude suster as tripas c’o susto».
Não que ele, Balhé, tivesse medo, mas «cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém», e «isto de lobos e cães pretos é tudo aparentado»; só iria se a Tia Márcia o acompanhasse com as suas «artes» e «ferramentas», decidiu o Tio Balhé.
E, assim, numa «noite de lobisomens», que são «noites de lua a meio crescer», se puseram a caminho o Tio Balhé, a Tia Márcia e um voluntário, pastor valente e entendido em lobos e armadilhas.
Só que as rezas, as figas e os esconjuros com as penas de pita preta e as patas de coelho bravo da Tia Márcia surtiram e quando os três passaram a linha do comboio e entraram nos domínios da «besta-fera», este já tinha sumido ou, como dizia o Povo, estava em «pó e terra», como a Tia Márcia tinha pedido nas suas rezas e exorcismos, bem mais fortes e bem urdidos que as tramas do Demo.
Há sempre descrentes e «gente de pouca fé»; alguns duvidaram do «assucedido», rindo-se do que contaram o Tio Balhé e a Tia Márcia, mas tiveram que engolir as troças e as desfeitas quando depois se encontraram os restos do «cão preto» perto do sítio em que os esconjuros foram feitos. Restos que não deixaram dúvidas, que as «cinzas» não enganavam e ainda se viam alguns pêlos e alguns dentes das «três bocas», que aguentaram melhor o «fogo» que consumiu a «besta-fera».
E a confirmar o acerto daquela verdade veio o facto certo e verificado por todos que nunca mais houve novas do «cão preto de três cabeças» nas redondezas dos caminhos que da Fonte da Moira levam à Deveza e aos Casais dos Lobos, fosse em dias de sol a pino, tardes de lusco-fusco, noites de invernia e trevas ou madrugadas de raios e troviscos.

Amadeu José Ferreira (Sendim – Miranda do Douro, 1950) é mestre em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e professor convidado na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Vice-presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). É presidente da Associaçon de Lhéngua Mirandesa (ALM) e professor em cursos desta associação desde 2000.
Assinou várias obras obras em língua mirandesa, desde poesia como Cebadeiros (Campo das Letras, 2000), L Ancanto de las Arribas de l Douro (INA-PDI, 2001), Cula Torna Ampuosta Quienquiera Ara (Tema, 2004), Pul Alrobés de ls Calhos (Fluviais, 2006), até contos como Las Cuontas de Tiu Jouquin (Campo das Letras, 2001), e literatura infantil como L Filico i l Nobielho (Chinchin, 2006) e L Segredo de Peinha Campana (Gailivro, 2008).
Além de Os Lusíadas, Amadeu Ferreira traduziu para mirandês obras de escritores latinos (Horácio, Virgílio e Catulo), Os Quatro Evangelhos e duas aventuras de Astérix (em colaboração), Asterix l Goulés e L Galaton. É coordenador científico e tradutor da banda desenhada Mirandês – História de uma Língua e de um Povo. Fracisco Niebro é um dos seus pseudónimos literários.

1 comentário:

  1. Guapa a conta e mestria de contar. Embalamo-nos no cantarolar para enxotar o Mafarrico que bem longe irá parar. Não tinha lido esta, gostei.

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