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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

A imagem de Bragança através de Cardoso Borges entre a tradição e a razão - 1721/1724

Importa finalmente apreender a imagem, a representação que Cardoso Borges nos oferece da cidade de Bragança em 1721-1724, da sua pátria, ainda que não tivesse nela nascido, do que nos disse…e do que ficou por dizer.
A estrutura e conteúdo das Memórias são bem elucidativas da mentalidade setecentista, das preocupações e percepções deste homem que pertencia à elite da cidade. O corpo do seu texto divide-se fundamentalmente em três partes: a descrição de Bragança, as suas origens míticas ou proto-históricas, e a origem e linhagem da nobreza da cidade.
A descrição da cidade constitui um texto racional, lógico, bem articulado, que nos permite ter uma ideia clara da estrutura urbana, dos seus principais monumentos, fundamentada na observação direta do autor e em numerosos documentos que transcreve ou cita. Trata-se da parte mais original e valiosa das Memórias de Cardoso Borges, herdeira da historiografia crítica e documentada de frei António Brandão, que honra as “Luzes” do século XVIII e a própria Academia Portuguesa da História.
Quanto às origens, Bragança, para Cardoso Borges, é um burgo antiquíssimo, cujas origens estão tão bem determinadas como o próprio mundo – 406 anos após o dilúvio, 1906 anos antes do nascimento de Jesus Cristo – e como a nação lusitana, que tivera início com um filho de Noé.
Como era comum nessa época, evoca várias passagens bíblicas, superior e irrefutável fundamento de qualquer assunto, interpretando literalmente as palavras do texto sagrado, e bem assim as datas e números aí referidos. Está o autor convicto de garantir, desta forma, a inquestionabilidade das suas afirmações e da cronologia que apresenta, sempre em prol da defesa e elevação de Bragança e excelência da sua origem.
A partir deste pretenso facto, baseado nos mais diversos autores, que cita para confirmar as suas prodigiosas conjeturas, e nas fontes epigráficas que carreia e interpreta para fundamentar a tese que defende, constrói o seu discurso no sentido de reafirmar Bragança como sendo, “sem contradição conhecida”, a cidade mais antiga de Portugal, que nunca deixou de ser habitada, mesmo após a invasão muçulmana.
Assim, temos a construção e legitimação do mito das origens.
Por outro lado, apesar de muito antiga, nunca Bragança conheceu a “idolatria”, uma vez que “da sua primeira fundação teve sempre e nunca perdeu o conhecimento de Deus verdadeiro.
E será esse o mais forte argumento da sua grande antiguidade e nobreza”, visto que “a verdadeira nobreza consiste em tributar louvores a Deus”.
Para que não restem dúvidas, consegue até assegurar, escudado em numerosos autores, que os fundadores de Bragança estão isentos de qualquer envolvimento na perniciosa construção de Babel, como poderia temer-se por outras fontes, cujas afirmações refuta, ponto por ponto.
Ao autor, repugna aceitar o passado não cristão de Bragança, salvo no que respeita aos tempos romanos. Para tal, vai ao ponto de defender a pouca contaminação da região por outros cultos, e isto desde a antiguidade, enfatizando a inclinação que os seus habitantes sempre demonstraram para o monoteísmo, rumo ao cristianismo, desde muito antes de Cristo, tendendo a afastar-se dos ritos e deuses pagãos, mesmo quando estes estavam plenamente instalados entre os seus vizinhos. Importa notar que, além do já referido menosprezo pela presença islâmica na região, no que respeita aos judeus da cidade, redu-los a pouco mais de meia página do seu texto, dando-os aliás por ausentes ou convertidos, já de longa data.
A cidade foi cristianizada pelo apóstolo Santiago que, em pessoa, aí instaurou “a fé católica”, de tal modo que nessa fé sempre se manteve, apesar do domínio dos mouros, uma vez que estes ocuparam apenas o castelo de Bragança, “porque o corpo da cidade sempre foi de católicos”.
Cardoso Borges escreve que lhe fizeram, quanto a este facto, uma advertência, “e foi que aplicasse o maior cuidado em descobrir alguma inscrição antiga que fosse monumento da nossa tradição, mas o monumento mais sólido da nossa tradição é a mesma tradição e em esta só me fundo”.Assim, temos a construção e legitimação do mito da sacralização/cristianização da cidade.
Sob este aspeto, as Memórias de Bragança continuam a historiografia fabulosa da Monarquia Lusitana de frei Bernardo de Brito, que mergulha o passado nas lendas e mitos, não contestando a origem divina da Bíblia e muito menos a autoridade da Igreja, demonstrando uma erudição clássica acrítica, escolástica, nesta perspetiva nada devedora aos princípios do Iluminismo.
Que pretende Cardoso Borges ao defender a origem sobrenatural, fabulosa, quer sagrada, quer profana, de Bragança? Tão-só, enaltecer a cidade. Com fervor, o autor das Memórias procura – e a seu modo encontra – nas fontes documentais e arqueológicas a que recorre, provas incontornáveis da presença de Bragança ou dos seus habitantes nos momentos de charneira da História, não só de Portugal ou ainda assim Ibérica, mas do mundo, desde os primórdios, segundo as suas cronologias. Quiçá, o mais significativo terá sido o nascimento de Cristo, notavelmente assinalado em Bragança com prodígios que aí ocorreram.
Quanto à nobreza bragançana, podemos afirmar que esta parte se desdobra entre a tradição e a história. Isto é, quanto ao solar de Bragança, “antigo fundamento” da nobreza da cidade e de outras “nobilíssimas famílias”, as origens remontam a Afonso VI de Leão, seguindo outros escritores e memorialistas que pretendiam fundamentar a superioridade da nobreza através de uma genealogia muitas vezes fabulosa quanto às origens das famílias ilustres, mais uma vez baseada na Monarquia Lusitana.
Sob este aspeto comungamos do juízo de Francisco Manuel Alves, que ao tratar da nobreza de Bragança e do Nordeste Trasmontano conclui, baseado em Cardoso Borges, que “pouco ou nenhum crédito” merecem as filiações anteriores ao século XIV 10.
Mas pago o tributo às origens lendárias das famílias nobres, Cardoso Borges, ele próprio genealogista e membro da pequena nobreza bragançana, fornece-nos, a partir do século XIV, uma informação rigorosa, assente em documentos históricos, referindo, em caso de dúvida, que “parece ser”, e noutros casos, reconhecendo que não pode apresentar “a linha direta com a verdade de nomes certos” ou de “notícias certas”.
Assim sendo, as informações relativas à nobreza, a partir do século XIV, ou seja, aquelas que Cardoso Borges pode reconstituir a partir de fontes documentais seguras, revelam-se
fidedignas.
Que grau de autenticidade é que Cardoso Borges confere à tradição quanto às origens míticas da cidade, e à sua cristianização? Quanto às lendas e milagres que refere? Quanto às origens da nobreza de Bragança? Quanto à exaltação patriótica e religiosa que impregna, segundo ele, a história de Bragança no passado?
Como se compreende que, face ao movimento cultural do Iluminismo, das “Luzes”, de racionalização e laicização da História e de oposição ao panegírico face à reduzida base científica dos estudos históricos anteriores; de valorização da mentalidade crítica; de recusa do argumento de autoridade; de oposição à interpretação mística de fenómenos naturais; de cepticismo quanto à vinda de Santiago a Espanha e aos excessos da devoção mariana; do culto dos documentos, com recurso à arqueologia e epigrafia; e de afirmação do carácter absoluto da verdade considerada como universal e defendida reiteradamente pela Academia da História, Cardoso Borges demonstre, ao tratar de certos temas nas suas Notícias, demasiado respeito pela tradição, uma erudição livresca e ultrapassada, à boa maneira da historiografia seiscentista, e uma omissão total quanto aos problemas atuais com que Bragança então se debatia, lavando deles as suas mãos?
Temos sérias dúvidas de que Cardoso Borges acreditasse piamente nos mitos, lendas e milagres que refere. Em defesa desta nossa posição são as próprias expressões do autor das Memórias que, ao tratar daqueles, refere que “é constante tradição geralmente recebida”, “segundo a tradição geralmente recebida”, “comummente dizem” e ainda, “entra agora a tradição” ou “como afirma a tradição”.
Isto é, embora fundamentando, por vezes exaustivamente, os “factos” da história fabulosa, para os quais carreia citações e opiniões dos mais diversos autores, Cardoso Borges distancia-se da mesma, recusando dizer o que pensa efetivamente sobre os mesmos. Chega a afirmar, a propósito da pretensa fundação, pelo próprio Francisco de Assis, do Convento de São Francisco de Bragança, que “a tradição nesta cidade é tão constante que ninguém se atreveria a dizer o contrário sem nota de temeridade”.
Porém, em tudo aquilo que não é questão de fé ou de tradição arreigada que possa colocar em discussão os pergaminhos da sua cidade, Cardoso Borges revela uma mentalidade moderna, iluminada, académica, datando historicamente o que as fontes permitem, consultando e transcrevendo numerosos documentos que autenticam as suas afirmações, refutando posições erradas de contemporâneos seus, descrevendo com simplicidade e objectividade a cidade, informando assim, com rigor e segurança, o retrato da sua cidade sob o ponto de vista urbano e patrimonial.
Trata-se de um paradoxo? De modo algum.
A contradição existente no texto das Memórias de Bragança, entre a tradição do passado e a razão do presente é, de facto, aparente.
Com efeito, a tradição que fundamenta e legitima, vinda de um passado que continua até ao presente, constitui uma regra, um princípio que visa não a destruição da hierarquia, da religião e da ordem estabelecida, mas a sua manutenção e glorificação.
Numa sociedade estratificada, dividida em ordens, ou classes como alguns pretendem, profundamente religiosa, Deus é o princípio supremo da justiça e da verdade, da tradição e da razão.
Cardoso Borges simboliza justamente, nas Memórias de Bragança, de forma exemplar, essa difícil comunhão entre o sagrado e o profano, a razão e a fé, que só irá ser posta em causa, definitivamente, lá para os finais de Setecentos.
O Iluminismo joanino constituiu sobretudo um movimento aristocrático, num tempo em que a nobreza detinha a primazia social e cultural. Ora, Cardoso Borges pertencia à nobreza de província, onde o peso da tradição se manteve até mais tarde; onde o sangue azul recusou a mistura com outros grupos sociais e teimou em manter a estrutura rígida do Antigo Regime; onde a educação era jesuítica graças ao magistério e vigilância ortodoxa do Colégio da Companhia de Jesus; e onde, finalmente, mas não de somenos importância, ao contrário do que acontece, por exemplo, em Chaves e Vila Real, a Inquisição desenvolve eficaz e sistematicamente a sua sinistra ação contra os “cristãos-novos”, “os “judeus”, sobre a qual e sobre os quais as Memórias de Bragança registam um prudente e angustiante silêncio...
Cardoso Borges é testemunha privilegiada da fúria com que a Inquisição se abate sobre Bragança. Só entre 1704 e 1720, são processados pela Inquisição 429 bragançanos, dos quais 114 referentes ao ano de 1718. É a esta dramática perseguição que Ribeiro Sanches e Luís da Cunha se referem, entre 1730-1750, ao denunciarem a “desolação” de Trás-os-Montes (entenda-se, Nordeste Trasmontano) e referirem que “boas povoações” como “a cidade de Bragança”, estavam “quase desertas” “e destruídas as suas manufaturas” – terrível provação da qual não encontramos qualquer rasto nas Memórias de Bragança.
A religiosidade dos habitantes de Bragança – “no culto divino é que mais se apura” –, os excessos da devoção mariana, a “pia devoção” expressa pelos moradores nas procissões (a qual se teria afervorado mais, segundo ele, nos anos anteriores a 1721), era verdadeira, tendo origem numa fé profunda, ou resultava do terror infundido pelo Santo Ofício?
Face a estes múltiplos e complexos fatores, poderia Cardoso Borges escrever as Memórias de Bragança de forma diferente?
De acordo com a tradição quanto à antiguidade de Bragança, à sua ideia de Deus e posterior cristianização. De acordo com a tradição quanto ao catolicismo fervoroso dos seus habitantes. De acordo com a tradição quanto às origens críticas da nobreza bragançana.
Mas revelando espírito crítico, racional, pragmático, iluminista, em todos os outros temas de que trata, e nos quais revela um discurso lógico e coerente, assente nas fontes, numa investigação criteriosa que passa pela análise crítica dos factos, numa cronologia rigorosa e na refutação de outros autores.
Borges rejeita para Bragança a imagem de uma cidade periférica e repugnam-lhe os epítetos de «provinciana» ou «rústica» que outros lhe atribuem. No passado, Bragança era toda a província de Trás-os-Montes, sendo, por 1721, a sua comarca a maior – escreve o autor com exagero. Releva a posição fronteiriça como factor estruturante da natureza intrépida e bélica dos seus naturais – “o que em muitos pode ser violência, em Bragança é natureza” –, e bem assim da honestidade e bom «alinhamento» das mulheres. A distância do mar, de Lisboa ou mesmo do Porto, não a impediu de ser o berço de muitas pessoas que, ao longo do tempo, se distinguiram, para além de Portugal, para além da Ibéria, para além da Europa.
Por outro lado, com base no conhecimento direto que tem da cidade, faz o panegírico das suas belezas naturais e riqueza, desde as águas «cristalinas» (nomeadamente as do rio Fervença, que não sentiam inveja das águas do rio Tejo), a todos os produtos da terra e dos rios, sempre os melhores, “um agradável país”, “tão abundante de todo o regalo”. A Bragança em que vive e nos apresenta, é uma cidade que, do ponto de vista paisagístico, se revela de uma beleza quase bucólica, mas monumental e nobre nas suas edificações. De certo modo, pode dizer-se que tudo o que vê e descreve é, na verdade, o espelho de si próprio, pois evidencia uma cidade socialmente aristocrática, cortês e requintada, culturalmente erudita desde os seus primórdios, militantemente católica a uma só voz, sinceramente piedosa e empenhada na sua devoção, esta sim, transversal a todas as classes sociais. Se a obra foi produzida, como alguém escreveu, “com intuitos panegíricos”, tal só se pode compreender quanto à exaltação que faz de Bragança.

Memórias de Bragança
Publicação da C.M.B.

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