sexta-feira, 24 de julho de 2015

Azeite - Uma dimensão histórica, económica e cultural


Símbolo da civilização milenar da bacia do Mediterrâneo, presente na cultura popular através das crenças, medicina, rezas e provérbios; arreigado à religião e às economias, o azeite continua, hoje, a ser um elemento com peso nos hábitos de consumo dos portugueses. Abordagens aprofundadas por Manuel Paquete, formado em história, na obra «O Azeite na Cultura e no Património Alimentar Português».
Café Portugal - O livro «O Azeite na Cultura e no Património Alimentar Português» (Colares Editora) mereceu agora uma segunda edição, revista e actualizada. Conta, inclusivamente com a colaboração de Ana Soeiro, Secretária-Geral da Qualifica. O que podemos esperar ao folhear esta obra?
Manuel Paquete - Este livro surgiu na sequência de outros dois - um sobre a cozinha «saloia», outro sobre a cerveja - e persegue a mesma perspectiva que é a de abordar os diversos aspectos ligados à cozinha, à alimentação e à mesa, a partir dos olhares das ciências sociais sobre essas temáticas. Acresceu à motivação, o facto de essas abordagens não terem o merecido eco editorial. Uma excepção relevante tem sido a editora Colares, que mantém - heroicamente, diga-se - uma colecção sobre Gastronomia, desde 1992, onde cabem registos vários, desde livros mais centrados em receituários, passando por vários títulos incontornáveis para o estudo da história da alimentação e da cozinha em Portugal. A ideia de um livro sobre o azeite, lançada pela Dra. Maria Rolim, da Colares Editora, foi um estímulo e oportunidade para uma abordagem historiográfica que situasse, tão justamente quanto possível, através dos usos do azeite (sobretudo o alimentar), a sua importância cultural. Um aspecto central do livro foi a observação da presença do azeite no receituário típico regional e a partir daí compreender um pouco da geografia desse consumo, tendo em conta, também, as premissas romanas e árabes, ou seja, mediterrânicas, da olivicultura. Salientaria ainda outro aspecto: a demonstração duma «cozinha festiva», onde o azeite é indispensável, cujos pratos começaram por ser consumidos em contextos festivos religiosos, ou originalmente associados a uma antiga cultura do trabalho, casos da recolha da azeitona ou do trabalho nos lagares.
C.P. - Ou seja, um produto com uma presença central na nossa cultura. Pode dar-nos alguns exemplos dessa matriz civilizacional?
M.P. - O azeite sempre teve vários usos, entre eles o alimentar, que, por sua vez, não terá sido, na Antiguidade, o uso mais significativo. O azeite começou por se firmar, na área mediterrânica da sua produção, como um óleo com virtudes farmacológicas e de algum poder simbólico, no domínio da religiosidade, comum ao judaísmo, ao cristianismo e ao islamismo. No plano alimentar, o uso do azeite acabou por integrar, de algum modo, aqueles atributos adquiridos nesse uso não alimentar. Actualmente, a importância alimentar do azeite tem vindo a crescer, com base em dois aspectos: o peso económico e o discurso médico-nutricionista, a que não é alheia a «descoberta» da dieta mediterrânica, com a grande valorização deste óleo como a melhor das gorduras. 
C.P. - No que se refere à cultura popular em torno do azeite praticada em Portugal, como se pode caracterizar, tendo em conta que ela é diferente de norte a sul do país?
M.P. - Essas diferenças, entre o norte e o sul, poderão estar relacionadas com o, historicamente, maior ou menor consumo regional do azeite. Mas é curioso notar que mesmo em zonas onde o azeite não era uma gordura culinária de eleição, acaba por estar presente, por exemplo, nomeado ou usado nas chamadas mezinhas com fins propiciatórios ou profiláticos.
C.P. - Aborda nesta sua obra uma dimensão normalmente menos focada, a das rezas e práticas curativas associadas ao azeite. Quer pormenorizar?
M.P. - De acordo com as características e as finalidades da chamada medicina popular, com a sua componente mágico-religiosa e propiciatória, associada a rezas e outras práticas curativas, o azeite é um elemento precioso, já que a sua natureza está imbuída, segundo a crença popular, inspirada por sua vez no discurso religioso, na sua matriz judaico-cristã, que conferiu ao azeite poderes profiláticos a partir da sua eleição como unguento com faculdades sacramentais. Um exemplo: o termo Cristo deriva do grego Khristós, que significa «ungido».
É curioso notar que o uso medicinal tradicional do azeite passa, sobretudo mas não apenas, por tratamentos de doenças de pele já defendidos na antiga medicina grega e romana, a que não terá sido alheio o uso religioso do azeite como unguento.
C.P. - No consumo e na exportação do azeite, o país tem registado, nos últimos anos, indicadores muito positivos. Mas nem sempre foi assim. Como comenta esta realidade?
M.P. - Na primeira metade do século XIX, por exemplo, registou-se um notável incremento da olivicultura relacionado com a expansão da iluminação pública, que recorreu a esta gordura como combustível. É natural que a maior quantidade de azeite disponível no mercado influísse o aumento do seu consumo alimentar. Pelo contrário a parir da década de 1960, a produção e o consumo decaíram na sequência duma campanha, devastadora, favorável à expansão industrial e comercial de outros óleos e gorduras alimentares. Entretanto, a descoberta das virtudes da chamada «dieta mediterrânica» (conceito introduzido na década de 1990) reabilitou, e ampliou, o interesse do azeite, que é, agora, um sector económico em alta, dado o aumento da procura, sobretudo internacional, deste alimento visto também como uma espécie de alimento-medicamento.
C.P. - Estamos no fundo a falar de um produto basilar na cozinha portuguesa. Algo que verte para a presente obra através do receituário que apresenta…
M.P. - O azeite é de facto fundamental na cozinha portuguesa e muitos pratos que remotamente recorriam a outras gorduras, ou dele prescindiram temporariamente por questão de moda (construída pelos citados interesses da indústria agro-alimentar), optam agora pela aquela que foi eleita como a melhor das gorduras alimentares. Mas, é claro, embora o azeite seja um dos ingredientes marcadores da cozinha portuguesa, não é, nem nunca foi, o óleo exclusivamente presente nas mesas portuguesas. As receitas deste livro são, forçosamente, algumas das que poderão compreender uma «cozinha de azeite», ou dos «comeres de azeite», dada a sua presença como ingrediente «obrigatório» porque central. Frequentemente a alusão a esse uso encontra-se na própria nomeação das receitas: bacalhau à lagareiro, vários pratos de peixe em que o azeite é usado como ingrediente culinário ou apenas como tempero, migas lagareiras, açordas, pão de azeite, tibornas, bolos de azeite, biscoitos de azeite, broas de azeite, etc. 
C.P. - Em conclusão, que mensagem gostaria que ficasse com este seu «O Azeite na Cultura e no Património Alimentar Português»?
M.P. - Um aspecto talvez marcante, e que passa um pouco por ser uma «mensagem», assenta numa ideia de fundo: a de que o azeite - também os restantes alimentos, de forma variada, e em níveis diferentes - são, ou podem ser, portas de acesso ao conhecimento de realidades históricas, económicas, culturais, religiosas, etc., implícitas nos gostos, nas escolhas, na adopção, adaptação, ou rejeição colectiva de certos consumos.

Ana Clara

in:cafeportugal.net

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