quinta-feira, 23 de julho de 2015

Bragança 1721 - Para uma história das mentalidades


A fonte em estudo não nos permite, apenas, captar a organização administrativa e eclesiástica que tinha Bragança como polo de decisão (ainda que muito sintética e parcelarmente), a sua população, economia e sociedade, e de modo mais profundo, os traços urbanísticos fundamentais deste burgo trasmontano.
Permite-nos, ainda, carrear alguns materiais para a história das mentalidades, para o estudo dos comportamentos, modos de pensar e de sentir, códigos de atitudes e de moral, enfim, do imaginário dos seus habitantes no século XVIII.
Por exemplo, Cardoso Borges refere que, quando casam, “as mulheres levam os maridos para a sua freguesia”; e quando dão à luz, que o marido ou parente mais chegado vai tanger o sino da Igreja de São Vicente, para que as pessoas que o ouvem as possam auxiliar com as suas orações. Muito interessante é também a informação de, por ocasião do batismo das crianças, os pais escolherem a paróquia da cidade a que iriam pertencer... a não ser que ambos pertencessem à mesma freguesia. Por outro lado, quem, vindo de fora, passasse a residir em Bragança, se construísse casa, ficava a pertencer à paróquia de Santa Maria; mas se arrendasse a sua habitação, pertenceria à freguesia em que se localizava.
Deixando para uma outra oportunidade uma análise mais profunda deste aliciante e complexo tema, que passa, obrigatoriamente, pela demografia histórica, pelo levantamento dos factos registados nos livros dos tabeliães e por outras fontes, vamos tratar, para já, de algumas formas de religiosidade, expressas através das confrarias e irmandades, das festividades e cerimónias religiosas, dos milagres, sinais divinos que robusteciam a fé dos crentes, e, por fim, da própria imagem da vila e dos seus habitantes aos olhos de um dos seus habitantes.
Confrarias e irmandades
Enquanto associações total ou parcialmente abertas a pessoas oriundas de diversos estratos sociais, as irmandades, confrarias e ordens terceiras contribuíram significativamente para difundir o espírito da fraternidade humana e atenuar a desigualdade social no Antigo Regime.
As Memórias de Bragança não nos fornecem, ao contrário do que acontece para Vila Real, no mesmo ano, com a fonte que já referimos, uma enumeração exaustiva das suas irmandades e confrarias.
Assim, na Igreja de Santa Maria, Cardoso Borges indica as irmandades das Almas, Santíssimo Rosário, Santo Estêvão e São Pedro, esta última reservada aos sacerdotes, e a dos Moços Solteiros.
Na Igreja de São Vicente, menciona as confrarias da Santa Cruz e do Santo Cristo, esta última, ocupando “o primeiro lugar” da cidade, pela sua antiguidade e responsável por enterrar os mortos antes da criação da Misericórdia.
Refere, como não podia deixar de ser, a Irmandade da Misericórdia.
Na igreja do Convento de São Francisco, a Irmandade das Chagas e a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, dos militares.
No Colégio dos Jesuítas encontramos três irmandades, a da Anunciada, dos estudantes, a de Nossa Senhora dos Prazeres e a de São Xavier.
Na igreja do Convento de Santa Clara, a Irmandade de São Caetano.
No termo da cidade e a propósito de um nobre, fala-se da Confraria do Santíssimo Sacramento, em Rabal.
Quanto a ordens terceiras, apenas temos notícia da Ordem Terceira da Penitência, na igreja do Convento de São Francisco.
Festividades e cerimónias religiosas
Várias festividades laicas e religiosas se desenvolviam ao longo do ano, de acordo com a liturgia cristã, ritmando a vida quotidiana da população da cidade, pautando os tempos de recolhimento e devoção, e solenizadas com as procissões que percorriam itinerários simbólicos, e expressavam assim a fé e a religião dos crentes.
Na Igreja de Santa Maria do Sardão, a 14 ou 15 de Agosto, celebrava-se “como festa real”, com a assistência do Senado municipal, e com a participação de todos os mesteres como no dia da procissão de Corpus Christi, a vitória das armas portuguesas em Aljubarrota (1385), o nascimento e morte de João I (1357-1433), a conquista de Ceuta (1415) e a retirada das tropas espanholas que cercavam Bragança (1710). Quanto a este último episódio, importa sublinhar que José Cardoso Borges, inspirado no Santuário Mariano, associou o dia 14 de Agosto de 1710 com os efeitos das campanas de Santa Maria, a igreja principal da cidade, uma vez que o repicar dos seus sinos foi compreendida pelo marquês de Caylus, comandante das forças espanholas que cercavam a cidade, como um mau presságio. Em consequência, foi com celeridade que mandou levantar o sítio que constrangia a cidade.
Episódio relevante por, no imediato, mostrar a todos que a Senhora não desamparava a cidade e ainda por possibilitar a recuperação, em transporte rememorativo, do apego do rei João I a Santa Maria – sucesso que permitiu o lançamento de uma interpretação de sentido modernizante, que tinha em vista o revigoramento do alcance nacional da mítica batalha de Aljubarrota, em 1385.
Era também nesta igreja que se solenizavam “todas as festas reais”, sendo as de maior culto as da Páscoa e do Corpus Christi, nas quais participavam os sacerdotes, religiosos, cavaleiros, nobreza e quadros militares, com toda a guarnição da praça a incorporar-se nas procissões que então se realizavam.
A Procissão de Quinta-feira Maior era realizada pela Irmandade de Santa Cruz, que ocupava o primeiro lugar, logo seguida pela Irmandade da Misericórdia, cerimónia esta que, em certos anos, era acompanhada por gente de 2 000 fogos, uma vez que os moradores da cidade e lugares do termo circunvizinhos eram obrigados a nela participarem, para levarem os andores.
A Procissão de Sexta-feira Maior desenvolvia-se com igual solenidade, apelando a todo o clero, nobreza, guarnição militar, irmandades, com todos os membros da Misericórdia descalços, e povo, na qual seguiam os andores e figuras de anjos e profetas, fazendo dela, pela “pausa, submissão e piedade”, uma das “mais perfeitas” do Reino. Comummente se dizia em Trás-os-Montes, “Semana Santa em Bragança”.
Nas grandes “aflições” da cidade, realizava-se a Procissão do Santo Cristo, da Igreja de São Vicente, a qual se respeitava como “dia santo”, “dia grande na cidade”. O clero assumia a responsabilidade da sua organização, assistindo todas as irmandades da cidade, a guarnição da praça que formava atrás do pálio, a população da cidade e os moradores dos povos circunvizinhos, que entravam na cidade cantando ladainhas e incorporando-se na procissão com as imagens da sua devoção.
Com um carácter mais profano, realizavam-se ainda a Festa de São Jorge, a 23 de Abril, e a Festa de Santiago, a 25 de Julho, ambas solenizadas pelo Senado “por voto que fez a cidade”.
A Festa de São Jorge comemorava o “feroz combate” que se teria realizado em Bragança, no ano de 1001, contra os mouros, e que libertou a cidade e a região da sua dominação, nele participando São Jorge à frente do exército cristão. Na procissão seguiam mais de 140 sacerdotes e os meninos da cidade, que percorriam a cidade “em ladainha”.
A Festa de Santiago, em honra deste apóstolo que “pregou e plantou a fé nesta cidade”, organizada por dois mordomos eleitos pela Câmara, “pessoas das mais nobres e ricas”, divertia o povo durante seis a oito dias, com exercícios e corridas de cavalaria, comédias e outros espetáculos.
Importa, ainda, relevar que, nos dias de festa, no concelho de Bragança como na terra de Miranda, os seus moradores praticavam “danças e folias”, com espadas e adargas (escudos de couro), que designavam por “cedras”, “que a compasso batem umas com as outras e a som de tambor e flauta fazem curiosos laços e voltas e as ações tão valentes que em tudo representam um militar certâmen”. Outras danças – continua Borges –, executavam-se “com paus curtos”, de tal modo que “correr, lutar e tirar a barra está em seu ser”.
Nos lugares da terra de Miranda, o “certâmen da luta” tinha o seu auge nos dias “que concorrem os castelhanos raianos, com os quais se desafiam”.
Milagres
A devoção e a piedade do homem setecentista eram, de certo modo, recompensadas pelos “milagres” que se manifestavam, por vezes – mais no passado –, na cidade, através das imagens da Nossa Senhora, do Santo Cristo e de São Francisco, acontecimentos e sinais extraordinários que deixam perceber mais o espírito de crudelidade popular que a intervenção divina.
Se bem que, nas Memórias de Bragança, a religiosidade popular se manifeste mais pela devoção que pelo milagre, a verdade é que este não deixa de estar presente.
Assim, a Nossa Senhora do Sardão (carrasco ou azinheira), da Igreja de Santa Maria, produzia “inumeráveis prodígios”, de que era penhor “Bragança milagrosa”, nomeadamente, em 1685 e 1718, que o próprio Cardoso Borges testemunhou, com as chuvas que aconteceram, na sequência da saída à rua da imagem de Nossa Senhora.
A “milagrosa e sagrada imagem do Santo Cristo”, da Igreja de São Vicente, “refúgio desta cidade”, era também muito venerada, levada em procissão pelas ruas de Bragança em momentos de grande aflição coletiva, produzindo nos católicos, “principalmente nos mosteiros das religiosas”, “maravilhosos efeitos”, unindo-se muitas ao “Divino Amado com os braços da meditação em tão apertados vínculos que o não poderiam largar se as preladas, com a santa obediência, não suspendessem os voos a que tinham subido com as asas da contemplação”. A devoção – garante Borges – “tudo quer para o Santo Cristo”.
Ainda na Igreja de São Vicente, encontrava-se a imagem de Nossa Senhora de Roncesvalles (que se venerava em Navarra, no Convento de Santo Agostinho, dos Cónegos Regrantes), que era também “muito milagrosa”. Valiam-se da proteção da Senhora as parturientes que, em caso de perigo de vida, ao darem à luz, mandavam “o marido ou o parente mais chegado dar nove toques no sino” da igreja, “para que os fiéis que os ouvem, ajudem também com as suas orações”.
No Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, das Clarissas, existia igualmente a “milagrosa imagem de São Francisco”, a propósito do qual Borges relata “dois casos prodigiosos” que afetaram, no século XVII, duas freiras, cujos corpos, após a morte, revelaram num caso “notável formosura” e no outro “suavíssimos aromas”.
Registe-se, aliás, que a intervenção divina nem sempre é bondosa, uma vez que também pune quem se porta mal, ameaçando com “severos castigos” caso não reconsiderem os erros cometidos – como aconteceu com uma das freiras do mosteiro referido, que não aceitando os “exercícios” da clausura, ousou regressar a casa dos pais –, e nem sempre defere as súplicas dos crentes “por seus altos e incompreensíveis juízos”, o que igualmente “se tem por um grande milagre”.

in: Memórias de Bragança

Publicação da C.M.B.

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