segunda-feira, 3 de junho de 2013

GALINHA, em Comeres Bragançanos e Transmontanos

“matou a galinha dos ovos de ouro”
[Conto popular]

A ambiciosa mulher levou o homem a matar a galinha de ovos de ouro, ao ser aberta nenhum ovo de oiro surgiu para pasmo da megera e aumento da dor do marido. A moral a extrair é que não devemos ser cobiçosos. Noutra perspectiva a alusão aos ovos de ouro relembra a crucial valia das galinhas e ovos na economia doméstica nas aldeias e vilas portuguesas, até há bem poucos anos.
De uma maneira geral, a alimentação dos meios rurais sempre se caracterizou por uma grande escassez de meios, a qualidade sobrepunha-se à quantidade, imperava a forçada parcimónia.
De todas as aves de criação a galinha suplantava as restantes aves na postura de ovos a servirem de moeda de troca na aquisição de produtos, além de os chocarem gerando magníficos frangos que os senhores recebiam como paga de foros, censos e outras prestações em vigor. E, o pago pode considerar-se conta calada dado o valor das galinhas, se fizermos a comparação que Mestre Gil possibilita, ao no Auto da Barca do Inferno, pôr Marta Gil a clamar:

“Vendia minha lavrança,
um ovo por dois reais,
um cabrito se se alcança,
té quatro vinténs, não mais:
Tendes vós isto em lembrança?
Um frangão por um vintém,
E uma galinha sessenta,
E acerta-se também
Que às vezes bem alguém,
Que as leva por setenta”.

No Elucidário de Viterbo lemos: “Galineiro – Havia mordomos galineiros, a quem, privativamente, pertencia a cobrança do foro das galinhas em própria espécie as quais se pagavam à coroa”, e mais adiante: “galinha de canteiro, galinha do açor ou do azor” também relacionadas com foros, e ainda nos informa sobre o frangão de souto. Este frangão de souto é o que já não é pinto, nem precisa de defender-se debaixo das asas da galinha, mas antes procura o seu sustento pelos soutos e campos, e longe da mãe; tais são os que ainda não são galos mas que já se distinguem por cristas e esporões.” Obviamente, nos soutos e campos de Bragança criavam-se frangãos, frangas (à maior parte reservadas para poedeiras), galitos, galarotes, galos e capões.
O gosto dos senhores da nobreza pelos cozinhados de galinhas, frangas, frangos e capões alargou-se à burguesia em ascensão, como o demonstram os receituários dos séculos XVII, XVIII e XIX. A Arte de Cozinha escrito por Domingos Rodrigues em 1680, menciona quatro receitas de empadas: duas de frangãos, duas de galinha, trinta e duas receitas de frangãos, e trinta e duas de galinha, incluindo quatro de manjar branco.
Na obra A Alimentação em Portugal no Século XVIII – Relato dos Viajantes Estrangeiros, de Carlos Veloso, topamos comentários elogiosos à galinha e aos frangãos, ao manjar real, leia-se: “Tivemos manjar branco e manjar real e entre outras saborosas iguarias um certo guisado de frangãos com arroz que muito me agradou” assim o diz William Beckford, já Merveileux anotou serem as sobremesas o momento mais esperado das refeições que constam de “manjar branco, geleias, gemas de ovos revestidas de açúcar”.
Num manuscrito conventual do século XVIII coligido por António de Macedo Mengo, estão anotadas receitas de: arroz de galinha, descahidas de galinha (cozinhado contendo as tripas, os fígados e as moelas), empadas de galinha, frango amarelo no forno, frango cozido, frango à mourisca ou verde, galinha cozida, galinha estilhada, galinha à mourisca ou verde e galinha recheada.
No século XVIII, a criação de galinhas rendia os ditos ovos de ouro a muita gente, satisfazendo a procura de quem as podia pagar, caso dos donos das casas de pasto, a significar que mesmo nas locandas mais infectas se podiam encontrar, o mesmo em relação aos ovos.
A Arte de Cozinha de Lucas Rigaud dado à estampa em 1780 contempla cinquenta e três receitas de frango, uma de geleia com fatias de capão. O apetite real pelos frangos está amplamente documentado, o melhor exemplo é o Rei D. João VI, dizem as boas línguas ser capaz de comer quatro ou cinco frangos durante uma refeição.
O Arte de Cozinha de João da Mata, editado em 1875, da família do Gallus Gallus insere quinze receitas, além do benquisto manjar real (imprescindível nas mesas das classes elevadas), aparece ainda a receita de croquetes de galinha.
Os frangãos pagavam rendas ao senhorio pelo uso de soutos, matas e devesas, para agrado dos donos das terras dada a soberba qualidade da sua carne, agora percorremos centenas de quilómetros a fim de saborearmos um desses frangãos cognominados de pica no chão. A galinha, o frangão, a franga e o capão estiverem sempre na base de comeres dos ricos, dos clérigos, as gentes humildes só em dias excepcionais – festas, feiras e romarias –tinham acesso a estas boas carnes. As aves de criação eram alimento raro nas casas dos humildes, as mulheres pobres apenas comiam galinha durante alguns dias quando pariam.
As parturientes e os doentes tinham na galinha velha o melhor alimento, fosse em canjas saborosas por causa da enxúndia que largavam, fosse cozida, estufada ou guisada. Em Contos Escolhidos, de Júlio Brandão, dia o autor da carta a Vasco: “Lá me esperava a canja, verdadeiramente divina.” Anotações deste género povoam romances de todos os géneros, Eça de Queiroz adorava canja.
Enquanto pusesse e chocasse ovos a galinha vivia tranquila nas imediações da casa dos donos, respondendo de imediato aos chamamentos quando tocavam “às Trindades”, sinal de ter chegado a hora de recolher ao galinheiro, a sua valia económica não permitia deixá-la a vaguear durante a noite à mercê de ratoneiros e das raposas.
A galinha descendente de aves selvagens da Ásia, domesticada há uns quatro mil anos, entrou na Europa via Grécia, estando representada nos receituários de cariz local e regional do Oriente e Ocidente desde sempre. Porém, a partir da II Guerra Mundial o panorama mudou. Até ali galinhas de ovos de ouro mereciam o epíteto pelo contínuo contributo para engordar a bolsa dos pequenos proprietários, a partir da década de quarenta do século transacto alteraram-se os métodos de criação e produção, passando à condição de alimento barato ao alcance de todos, gerando fabulosos lucros para os grandes industriais da alimentação.
Da galinha e do frangão de souto iguarias dos senhores, chegámos ao popular frango vendido a retalho e à peça conforme os desejos dos compradores, mostrando-se, hoje em dia, em receitas de todo o mundo, do churrasco ao pilau, passando pelo caril, a paella, o chop suey, o Brathendl austríaco, o chicken pie, à cafreal. Estas as mais conhecidas.
A criação intensiva transformou o frango num alimento importante nas ementas de numerosos países, podendo-se confeccionar assado, estufado, guisado, frito, panado e grelhado, esta última cozedura popularizou-se seja na forma de inteiro ou em pedaços.
Pode-se afirmar sem receio que os galináceos de criação industrial ajudam a minimizar a crónica falta de alimentos de origem animal nos países mais populosos e nos mais pobres, factor decisivo no suster as reivindicações dos famintos. O frango acalma as mentes à medida que satisfaz a básica necessidade de nos alimentarmos.
O Anatómico Jocoso regista a preferência popular pela galinha:

“Antes galinha que vaca
Que bacalhau, salmonete”

Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.

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