Número total de visualizações do Blogue

Pesquisar neste blogue

Aderir a este Blogue

Sobre o Blogue

SOBRE O BLOGUE: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira.
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blogue, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Lenda da Flor que Nasceu da Lama

Local: Lamas de Orelhão, MIRANDELA, BRAGANÇA

Contam velhos pergaminhos — que ficaram na memória de alguns, os quais por sua vez contaram a outros — que em tempos remotos viviam ali, nas terras por detrás dos montes, lá bem ao norte de Portugal, dois irmãos muito virtuosos e estimados por toda a gente: um rapaz e uma rapariga. 

Ninguém sabia donde tinham vindo, nem quem eram, na verdade. Mas mostravam-se tão bons, tão sossegados, que os deixavam viver em sossego, sem cuidar da sua origem. 
Ela era muito jovem e muito bonita, talvez a mais bonita de todas as raparigas das redondezas. Ele parecia bastante mais velho e possuía uma cultura que embaraçava as pessoas sabidas. 
Todavia, apesar da diferença de idades, o irmão em tudo obedecia às determinações da irmã... 
E como passatempo favorito entretinham-se a andar pelos campos, falando das coisas do Céu e namorando as coisas da Terra.

Ora aconteceu que, certo dia, o rei mouro que então dominava a região soube também da existência desses dois irmãos, que a toda gente mereciam respeito e simpatia. E quis conhecê-los. Porém, matreiro como era, preferiu ir ao encontro deles sem que dessem por isso... E assim, mandou aparelhar o seu melhor cavalo. 

— Vamos, depressa!... Aprontai-me o melhor dos meus cavalos... Tenho de fazer uma grande viagem! 
E como se quedassem a olhá-lo, gritou mais forte e mais furioso: 
— Vamos, imbecis, porque esperais?... E que o cavalo fique digno do seu cavaleiro, perceberam?... 
Depois, numa gargalhada, gracejou: 
— Que os meus próprios inimigos rebentem de inveja, quando eu passar!... 
Cavalgando o seu cavalo branco ajaezado a ouro, o terrível monarca correu montes e vales, até que encontrou quem procurava. 
Com aparente ar de singeleza, aproximou-se devagar dos dois irmãos. 
— Vós estais sozinhos, jovens? 
Olharam-no, sobressaltados. Mas, vendo o sorriso que lhes dirigia, sentiram-se mais tranquilos. 
E o mais velho respondeu, sorrindo também: 
— Senhor Dom Cavaleiro, basta que estejamos os dois para nos acompanharmos um ao outro... 
O cavaleiro concordou, aproximando-se mais: 
— Dizeis bem. — E logo, num ar brejeiro, acentuou: — Para dois jovens que vêm viver para o campo o seu romance de amor, todas as presenças são importunas... 
Numa expressão de magoada e ofendida, a jovem retorquiu imediatamente: 
— Perdão, senhor Dom Cavaleiro... Ele é meu irmão! 
O cavaleiro fingiu surpresa. 
— Sim? Então aceitai as minhas desculpas. Mas, sinceramente... considero excepcional o facto de encontrar dois irmãos... assim tão amigos... 
Foi o irmão quem respondeu: 
— Pois assim vivemos, senhor Dom Cavaleiro... E assim morreremos. 
Depois, num reflexo de pura curiosidade, perguntou: 
— E vós, senhor... quem sois? 
Houve uma pequena pausa, antes do cavaleiro responder: 
— Bem... Sou um dos favoritos do rei... A propósito: o rei já vos conhece? 
Foi a vez da rapariga informar: 
— Não, não nos conhece... Nem nós desejamos conhecer esse tirano, que tanto mal tem feito. 
Num berro, o outro deixou transparecer o seu espanto: 
— Que dizeis? 
Mas logo o irmão se juntou à irmã, a reforçar-lhe as palavras. 
— Dizemos a verdade, senhor Dom Cavaleiro! Vós decerto o sabeis... já que sois um dos seus favoritos. 
A cólera do outro cresceu, na voz e no olhar e nos gestos. 
— Pois quê? Atreveis-vos, diante de mim, a dizer tais coisas? 
Os dois irmãos silenciaram, temerosos, perante o ar irado do cavaleiro. Porém a rapariga ainda se atreveu a acrescentar. 
— E porque não, senhor Dom Cavaleiro? Falamos pela voz da verdade. Bem sabemos, por experiência própria, quanto este bom povo sofre com a tirania do rei. 
A voz dela encheu-se de lágrimas. 
— Foi por ordem desse tirano que mataram nossos pais! 
Um sorriso misterioso voltou a nascer no rosto do cavaleiro. 
— Ah! Compreendo agora... Estão aqui para se vingarem, não é? 
— Não, senhor Dom Cavaleiro — retorquiu a voz tranquila da rapariga — a vingança não entra em nossos corações! 
O rosto do rei mouro carregou-se de pequenas rugas interrogativas. 
— Então... que pretendeis? Que intenção é a vossa? 
Foi ela ainda quem respondeu, com a mesma tranquilidade de alma. 
— Iluminar os espíritos dos bons... e encaminhar o espírito dos maus... É essa a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo. 
O cavaleiro deu mostras de ficar pouco satisfeito com a resposta. Esporeou o cavalo e gritou: 
— Bem, vou seguir viagem... Já aqui me demorei bastante! 
Depois a sua voz tornou-se mais branda, mais melíflua. 
— Sempre vos digo, meu rapaz, que não deveis deixar andar por aqui vossa irmã. Ela é tão bonita, tão fresca, que faz entontecer o coração de qualquer homem. 
O irmão da jovem limitou-se a afirmar convictamente: 
— Não faz mal. Ela sabe defender-se. E, se precisar, terá sempre a minha ajuda! 
Uma gargalhada maldosa saltou dos lábios do cavaleiro. 
— Julgais-vos decerto muito forte... 
O outro olhou-o de frente, com calma. E com calma retorquiu: 
— Tenho a força que Deus me dá! 
Nova gargalhada se fez ouvir. Desta vez mais grosseira, mais brutal. 
— Pois ficai com a vossa força… que melhor ficará quem ficar com vossa irmã! 
E abalou correndo pelos campos, sem mais olhar para trás...

Os dois irmãos, depois da abalada do estranho cavaleiro, ficaram a meditar no caso. Foi a jovem quem rompeu primeiramente o silêncio. 
— Que homem tão singular... Falava com voz áspera, mas o olhar dele era doce e meigo... 
O irmão sorriu. 
— Ora, irmãzinha... Era doce e meigo, quando olhava para ti... Mas eu confesso: não gostei nada desse olhar! 
Ela deixou que todo o seu receio se lhe estampasse no rosto. E perguntou: 
— Que pensas tu? 
Ele inclinou-se para ela. E murmurou, quase em segredo: 
— Penso que ele nos veio espiar... para ir contar tudo ao rei tirano! 
Suspirou fundo e concluiu tristemente: 
— Se estávamos em perigo, agora o perigo é maior. 
A rapariga ergueu os olhos ao céu, num ar de serena confiança. 
— Deus encaminhará os nossos passos no melhor e no mais seguro dos caminhos... 
Ele seguiu-lhe o olhar. E disse, como quem reza: 
— Que Deus te oiça, irmãzinha!

Não podiam eles adivinhar que o estranho cavaleiro nem sequer se afastara dali... 
Ficara de atalaia, bem perto, esperando que a noite cobrisse tudo e todos com o seu manto de luar... 
E quando julgou chegada a hora propícia para pôr em prática os seus planos, começou a avançar cautelosamente... 
Olhando o céu estrelado, os dois irmãos prepararam-se para dormir sobre a relva fofa. Ficariam ali, mais uma vez, longe do tumulto das gentes. Aliás, já se tinham habituado a viver assim, em contacto directo com a Natureza... 
Nessa noite, porém, a rapariga parecia desassossegada. 
— Ai, meu irmão! Pressinto qualquer coisa que me faz estar inquieta... 
Ele bocejou, olhou-a sorrindo, e disse-lhe meigamente: 
— Olha bem em teu redor... A noite está serena... Temos por cama a relva do campo e por tecto o céu... Que desejas tu de melhor? 
Ela suspirou. A sua voz tornou-se mais dorida, mais íntima: 
— Tens razão... Nada de melhor posso desejar! Mas... repito-te, meu irmão... É como que um pressentimento... algo de sobrenatural que me avisa de que esteja alerta. 
O irmão deu uma pequena risada. 
— Ora, ora... Ficaste com certeza a pensar no tal cavaleiro... 
Mas o sono pesava sobre ele. Encolheu-se todo, voltou-se para o outro lado, voltou a bocejar e recomendou: 
— Dorme, dorme, irmãzinha… e verás como isso passa depressa. 
Ela estendeu-se também no seu leito de ervas. 
— Vou tentar, meu irmão... Já que não posso dormir, rezarei ao menos... 
E assim fez. Pouco a pouco, porém, vendo o irmão a dormir profundamente, a jovem acabou também por mergulhar num torpor muito próximo do sono. Somente acordou, surpreendida e aterrada, quando escutou uma voz a segredar-lhe, mesmo junto ao seu rosto: 
— Não fujas! Não grites! Sou eu que te venho buscar... 
Com voz de coração amedrontado, a rapariga gemeu o seu espanto: 
— O senhor Dom Cavaleiro!... 
O rosto dele aproximou-se mais. E mais segredou: 
— Não, eu não sou qualquer Dom Cavaleiro... Eu sou o próprio Rei... E quero levar-te comigo! 
Então a jovem compreendeu tudo. O seu pressentimento concretizava-se. Quis afastar-se. 
— Não me toqueis! Sois um cobarde e um mentiroso... Afastai-vos, senão grito! 
Mas nem fugiu nem gritou. Mais possante, aguardando já tal reacção, o rei mouro prendeu-a nos seus braços fortes e amordaçou-a, murmurando: 
— Ainda ficas mais bela quando te irritas, minha pombinha... Terás de vir comigo, quer queiras quer não... 
Embora amordaçada e bem segura, a jovem ainda tentou lutar, debatendo-se. Mas ele apertava-a com mais força, arrastando-a consigo. 
— Agora pertences-me, compreendes?... A mim, nunca ninguém disse que não! 
E desse modo a foi levando até uma pequena comba próxima, onde se recolheu com ela. Então, vendo-a quase inerte, abandonada aos seus desejos sádicos, beijou-a, como que enlouquecido, numa volúpia mórbida. 
— Já não conseguirás fugir... És minha! Só minha! A minha Rainha! 
E a jovem apenas teve forças para rogar, com toda a sua alma: 
— Oh, meu Deus!... Meu Deus, valei-me! 
E logo nesse mesmo instante — conforme corre de geração em geração, ao sabor dos séculos — algo se passou de maravilhoso... Inesperadamente, decerto por milagre, a jovem tornou-se invisível, completamente invisível, aos olhos do rei mouro!...

Entretanto, o irmão acordara sobressaltado, e mais sobressaltado ficara ao dar pelo desaparecimento da irmã. A sua voz ecoou angústias e desesperos. 
— Irmãzinha! Minha querida irmãzinha, onde estás?... Onde estás, irmãzinha?... 
E correu pelos campos, na ânsia de a encontrar.

No fundo da pequena comba, por seu turno, o rei mouro gritava também, como que alucinado: 
— Mas que é isto? Que se passa? Onde estás tu, que eu não te vejo? Não, não é possível!... Maldição! Maldição! Isto é feitiçaria!... 
Nisto chegaram-lhe aos ouvidos os gritos aflitivos do jovem, em busca da irmã. 
Os olhos do rei mouro luziram de ódio, sequiosos de vingança. 
— Ah, és tu?... Vem cá!... Vem cá!... 
O outro aproximou-se. E, ao ver o mouro, imediatamente compreendeu o que se passara.  
— Vós, senhor Dom Cavaleiro?... Que fizeste de minha irmã? 
Uma gargalhada brutal foi a resposta. 
— Que fizestes? Dizei-mo! 
— Pois não sei!... Ela desapareceu de repente! 
Estavam a olhar-se e a medir-se. O jovem não se atemorizou. 
— Fostes vós que a fizestes desaparecer... Sois tão cobarde como o vosso rei! 
Outra gargalhada. Cruel. Ferina. 
— Enganais-vos. O rei... sou eu próprio! 
Os olhos do rapaz encheram-se de espanto. 
— O rei? Sois vós o próprio rei?... 
E logo, numa fúria, atirou-se ao outro, bradando: 
— Rei, não! Assassino! Assassino é que sois! 
Mas o rei mouro era forte e astuto. E estava bem preparado para a luta. Assim, habilmente, num golpe seguro, fez com que o rapaz caísse por terra, dobrado a seus pés. E levantando o alfange descarregou-o sem dó nem piedade sobre o pobre moço. 
— Ides pagar por vós… por vós e por ela! 
Coberto de sangue, já sem forças, o jovem irmão murmurou somente: 
— Ai, maldito, que me matais! 
Todavia o rei mouro continuou a descarregar sobre ele, em golpes furiosos, todo o seu ódio e sede de vingança. 
— Sim, mato-vos!... Mato-vos, miserável feiticeiro, para que ela apareça!... Ela há-de aparecer! 
E ela apareceu, precisamente nesse mesmo instante. Chorosa e linda. Como alguém que já não é da Terra mas ainda também não pertence ao Céu. 
Debruçou-se sobre o jovem ferido de morte. 
— Meu irmão! Meu querido irmão... Foi por minha causa, eu bem sei!...
Ele ainda teve forças para a olhar uma última vez. Para lhe falar uma última vez. 
— Deixa lá, irmãzinha... Deus sabe o que faz... Ele assim o quis! 
— Irmão! Meu irmão! 
Ele já não a ouvia. E ela também nada mais pôde dizer, porque o rei mouro avançava em sua direcção, espumando raiva. 
— Agora nós, pombinha feiticeira!... 
Hirta e solene, a rapariga fez um gesto. 
— Nem mais um passo! 
Parecia uma estátua. Estátua de dor. Estátua de dignidade. 
— Se derdes um passo mais... ficareis atolado nesse lodo que está em vossa frente! 
Os olhos dele voltaram-se para a terra e pasmaram. 
— Sim... É lodo... É lama!... Mais uma das tuas feitiçarias! 
Logo porém tentou reagir, com a força do seu ódio. 
— É mesmo lodo, sim!... Mas não te ficarás a rir de mim... Não ficarás! 
E dum só golpe, brutalmente, com o seu alfange ainda tinto de sangue, o rei mouro cortou a cabeça da jovem cristã...

Depois, para esconder o seu crime, o rei mouro afogou no lodo o corpo decapitado da jovem e o cadáver do irmão... 
E fugiu, convencido de que ninguém conseguiria descobrir a verdade...

Mas Deus tudo pode! Alguém decerto assistira à cena terrível, pois no outro dia, gente que acorreu ao lameiro para recolher os corpos viu, maravilhada, que no lodo imundo nascera uma flor lindíssima, viçosa e pura... 
Logo a notícia do prodígio se espalhou de terra em terra. E porque tudo isso se passava numa pequena comba, cerca duma terra chamada Orelhão, começou aquele sítio a ser designado por Santa Comba das Lamas de Orelhão, pois o povo encarregava-se de santificar a jovem meiga e bonita que morrera sacrificada às mãos bárbaras do sanguinário rei mouro e que se transformara em flor nascida da lama...

Fonte: MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 383-389

Sem comentários:

Enviar um comentário