“No dia de S. Tomé pega o porco pelo pé; se ele disser «quié-quié», diz-lhe que tempo é; se ele disser «que tal, que tal, guarda-o para o Natal”.
O porco é o animal comestível que logrou maior estima desde a Antiguidade até agora, em terras portuguesas.
Por essa razão inúmeros forais fazem referência a porcos, porcas e leitões. Não pode ser motivo para espanto existirem nos documentos em causa, tantas referências ao precioso animal, objecto de estudo, elogio, veneração e também apreço gustativo pela parte de estetas como Ateneu autor do monumental Banquete dos Eruditos, Paládio, Apicius, Juvenal, Petrónio e Marcial representativos autores da Roma civilizada. Não restam dúvidas: o porco recebia dos eruditos antigos, estridentes elogios, eles tinham um motivo primacial para tecerem tais ditirambos – a gostosa carne –, em prosaicas ou complexas receitas. O porco é produto de primeira na alimentação dos europeus desde há milénios, nós ainda mais lhe devemos dada a circunstância de não possuirmos tantos recursos como os restantes povos.
Antropólogos, cientistas sociais, historiadores de hábitos alimentares, também se interrogam sobre a magnitude e importância do porco para elevado número de povos – na China é imprescindível em todos os festins –, mas também se interrogam se sobre as causas de ser alimento interdito aos judeus e muçulmanos.
Tanto o Levítico como o Corão são taxativos na proibição de os seus seguidores degustarem a carne de porco e derivados.
E, no entanto, o generoso animal, na Antiguidade pagã, atingiu o estatuto de animal totémico – veja-se o Pelourinho de Bragança – protector de clãs, encerrando nele próprio qualidades capazes de levarem o homem a render-lhe culto.
Na Grécia uma deusa porca recebia natural veneração, Eubluleo “bom conselheiro” faz parte da Mitologia na qualidade de porqueiro, o mesmo ofício tem Eumeo criado fiel de Ulisses, somente ele e o cão reconheceram o herói quando regressou a casa. Homero conta-nos que durante a guerra de Tróia, o imbatível Ulisses ofereceu a Ajax e Fénix lombos de porco, cabra e espinhaço do reco, meteu os bocados numa vara e assou-os na brasa, numa antecipação das espetadas. Homero em relação à preparação do farrôpo ensina que deve ser metido numa panela e deixar cozer a carne até sair do osso.
No século I, Plínio o Velho na obra História Natural, relativamente ao porco afirma: “De nenhum outro animal se tira melhor matéria para a glutonaria.” A Roma daquela época concede ao porco patente de grande pureza, assim o atestam os escritos de Plauto, Varrone, Venio Flaco e Pompeu Festo. Nesse tempo costumava-se sacrificar um porco aquando dos festejos de celebração de um tratado de paz, também ninguém o dispensava nos festejos nupciais.
No Egipto e na Síria o porco estava na galeria dos animais sagrados, mas a partir do Império Novo (1567-1085 a.C.) os egípcios deixaram de nutrir gosto pela carne de porco, tendo os sacerdotes proibido a sua ingestão dizendo que provocava a lepra, ao contrário, na Melanésia e na Nova Guiné é considerado alimento mágico desde tempos imemoriais.
O porco é referência constante em todos os tratados e livros de cozinha, aparece em obras literárias: poesia, conto, novela, romance, teatro; a título de exemplo lembro Aristófanes, Antífanes e o romano Apícius, que nos legou importante colecção de receitas integradas no De Re Coquinaria, ainda nos livros de contas das finanças locais e das casas reais e senhoriais. O romano deixou para a posteridade receitas dedicadas ao porco e à porca, extravagantes para o padrão culinário da actualidade, até susceptíveis de causarem repulsa, mas que evidenciam o gosto de então. Atente-se: “como preparar almôndegas de vulva de porca, vulvas de porcas estéreis, tetas de porca recheadas, rabos, coiratos e focinho de porco, ainda cinco receitas de rojões”.
Apesar deste notório currículo, justamente outorgado tanto no Oriente, como no Ocidente, o porco é considerado imundo e colocado no índex pelos judeus e muçulmanos.
A razão fundamental reside no conceito de puro e impuro. As leis dietéticas do Talmude consideram-no impuro, está tudo dito. A fundamentação alude aos seus hábitos, outros animais como o cão em casos extremos copiam-no, no entanto, o castigado é o porco porque também é extremamente voraz a ponto de comer raízes e de economicamente só depois de morto render lucro, realidade mal considerada pelos povos habitantes do escalavrado deserto, daí declararem-no proscrito.
Os interditos, os jejuns, o ser cognominado: porco sujo, não impediu a ascensão do reco a elemento determinante na dieta alimentar dos nossos antepassados nas terras onde se aclimatou e reproduziu.
A importância do porco nos comeres do quotidiano e de regozijo dos povos peninsulares deu azo a vincadas e jubilosas manifestações de todo o género. Nelas é exaltado, seja na arte religiosa, seja na arte profana, nas oralidades – adivinhas, alcunhas, calendários agrícolas, contos tradicionais, lengalengas, provérbios –, na literatura, na literatura infanto-juvenil (Os três porquinhos e o lobo mau), na história, no teatro, em especial no teatro popular, na pintura vejam-se os famoso quadros – O Porco Butcher de Camile Pissaro, A Mesa das Carnes de Pieter Aertsen e Comida Frugal de Pablo Picasso – para o confirmarmos.
O cinema e a televisão oferecem-nos graciosas imagens de porcos e porcas, ninguém esquece a Miss Piggy, noutras manifestações artísticas como é supino exemplo o cadeiral da Sé de Ciudad Rodrigo, aparecem elas e eles se exibindo-se atrevidamente.
O porco nos seus sinónimos e diminutivos: cevado, farrôpo, cochino, reco, marrão, marrancho, varrão, varrasco, varrasquete, tó, bácoro, berrão, laparinho, larego, leitão, porquinho, numerosas vezes era a derradeira resposta solucionadora de tremendas aflições resultantes de mofina carestia para largas faixas da população portuguesa. Fosse consumido ainda fresco (marrã), salgado ou fumado o porco assegurava na maior parte do ano o conduto das refeições no mundo rural. Por assim ser, recebia o epíteto de “mealheiro de ricos e pobres”, esta constatação representa-se nos mealheiros em forma de porco, oferecidos às crianças no intuito de as levar a intuirem o valor da poupança. E, assim se entende, a omnipresença do porco em Trás-os-Montes, pois o benfazejo animal tinha primacial importância na vida das famílias, bastava a matança correr mal, os enchidos ficarem deteriorados pela má fumagem, logo a vida corria pessimamente aos prejudicados porque ficavam sem a principal fonte de proteínas de origem animal.
Para estas desgraças não acontecerem recorria-se à intercessão dos Santos protectores, daí as oferendas a Santo Antão, a Santo António Abade, a São Martinho. Um sino e um porco são elementos iconográficos associados a Santo Antão, em muitas fachadas e capitéis das igrejas surgem porcos e porcas, a porca da Vila e a porca de Murça todos as conhecem.
Festa colectiva, a matança do porco obedecia a um ritual preciso, não se esquecia nenhuma função ou obrigação. As mulheres menstruadas estavam impedidas de participavam nos trabalhos da matança porque podiam estragar os enchidos, já Dulcineia entendia a adoração que Dom Quixote lhe devotava, porque tinha mãos hábeis no tratamento dos derivados provenientes dos porcos.
O dia da matança escolhia-se de acordo com a posição da Lua, o matador tinha de conhecer os segredos da arte de sangrar de forma a o precioso líquido ser integralmente aproveitado. A plenitude da matança só por si é matéria para podermos escrever um tratado de grande dimensão e a abarcar múltiplos aspectos do quotidiano rural.
A amplitude da influência do porco na sociedade portuguesa pode ser aferida de forma simples e singela catando-se num dicionário corográfico, topónimos relacionados com ele. Refiro alguns: Aldeia dos Porcos, Barbas de Porco, Cabeça de Porca, Casais do Bacorinho, Casal da Pocariça, Casal dos Leitões, Foz do Porqueiro, Leitão, Leitões, Matança, Matancinha, Mata Porcas, Moinhos da Ponte de Porcas, Pocilgais, Pocilgão, Pocilgas e Casinhas, Porca, Porcalhota, Porcas, Porqueira, Quinta do Porco, Vale da Porca, Vale das Porcas, Vale de Porco e Venda do Porco.
Um receituário francês do início do século XIX, depois de dizer que a “carne de porco é mui nutriente e gostosa” adverte ser de difícil digestão, “não convém às pessoas de uma vida sedentária, principalmente sendo estudiosas e dadas às letras. Pelo contrário é muito conveniente aos homens laboriosos que regem a rabiça do curvo arado, que passam a vida puxando pelo remo, ou que empregam em trabalhos semelhantes, executados ao ar livre.”
Esta asserção é o maior elogio que se pode fazer ao povo trabalhador, esgotado, sacrificado na criação de riqueza quantas vezes dissipada pelos possidentes, é também retrato do modo de pensar dos fautores das cozinhas nobiliárquica e burguesa a denunciarem o seu complexo de classe.
Tal como nessa época do Ancien Regime, o porco continua a ser alimento primacial dos humildes e donos de parcas posses e, por essa razão, dezenas de receitas a ele subordinadas são tronco principal da cozinha popular. Ou não fosse o porco melhor amigo do homem no dizer de tantos, pois come-se da ponta da cabeça à ponta do rabo. Talvez tenham razão!
O Senhor Abade de Baçal sobre o porco escreveu: “Consta entre outras, das seguintes peças: bandas, butêlo ou bucho, cochechas, enguião, fígado, lombélos, passarinha (baço), peituga, suã, xixo (miudezas, restos de toda a carne). De sua espinha dorsal, conquanto seja apreciável, por saborosa, diz o povo: suã, barba untada e barriga vil.”
Na região de Bragança reina a raça de porco bísaro, a preta ou preta malhada, tendo nos últimos anos sido objecto de reabilitação a pureza da raça após um período de cruzamento com outras. A alimentação dos bísaros era à base de viandas, farelos com folhas de negrilho, castanhas, maçãs, abóboras, rabas e rabões. Poucas semanas antes da matança recebiam um suplemento alimentar de cereais e mais castanhas, originando uma carne dotada de supino paladar.
Se todos estamos de acordo acerca das virtudes sápidas da carne de porco, há partes mais iguais que outras, entenda-se: de melhor qualidade e sabor, caso do lombo do qual se fazem os famosos salpicões.
Por assim ser, não pode causar espanto o facto de em 1938, na tabela de preços promulgada pela Câmara Municipal, carne de maior custo era a do lombo de porco.
Por quilo:
Vitela, 1.ª qualidade...... 8$00
Vitela, 2.ª qualidade...... 7$00
Vitela, 3.ª qualidade...... 4$00
Carneiro ou chibato...... 3$50
Cabrito.......................... 4$50
Cordeiro de leite........... 4$50
Lombo de porco.........10$00
As transformações e inovações ocorridas na área da indústria alimentar conduziu à produção industrial de porcos, razão porque o preço da carne sofreu uma forte quebra. No entanto, os porcos de criação artesanal continuam a ter procura, os presuntos e os enchidos provenientes desses animais atingem preços elevados, em consonância com os seus superiores atributos.
Comeres Bragançanos e Transmontanos
Publicação da C.M.B.
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