segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Nordeste

Discurso proferido em 12 de Maio 2006 no Forum Lisboa

Em primeiro lugar devo agradecer, muito reconhecido, o facto de a Casa de Trás-os-Montes ter organizado esta sessão, também o de tantas pessoas terem decidido estar presentes, e finalmente que o Doutor Fernando do Amaral, pela sua excessiva bondade que o caracteriza, e trazendo consigo o prestígio de uma tão longa e fecunda carreira, ao serviço do País e da justiça, se tenha disposto a discursar numa reunião de trasmontanos em que sobretudo me sinto na função de pretexto, sem outro mérito justificativo. De mim posso também dizer que “menino e moço” me trouxeram, a minha mãe Leopoldina e o meu pai António, ambos solidamente trasmontanos, para a cidade grande, que era um dos destinos da nossa constante corrente migratória de gente pobre, sempre cristãmente modesta mas nunca humilde, praticando que a igualdade vem da maneira de viver e não da maneira como se ganha honestamente a vida, porque todos esses trabalhos são igualmente dignos.


Que o meu pai, que se reformou subchefe ajudante da Polícia de Segurança Pública do Porto de Lisboa, e a minha mãe que trabalhava arduamente na máquina de costura que está em casa do meu filho mais velho, tenham decidido e conseguido, a duros mas alegres sacrifícios, que a minha irmã Olívia fosse médica, e eu me formasse em direito, ambos na Universidade de Lisboa, torna fácil entender que sinta, no meu íntimo, que esta homenagem trasmontana lhes pertença, também porque nos educaram no amor à terra de origem, às suas tradições, às suas virtudes e costumes.

Na minha vida sempre me encontrei ligado a trasmontanos e, para falar apenas dos que já morreram, não posso deixar de recordar o Almirante Sarmento Rodrigues, tão decisivo que foi nas minhas escolhas de serviço à comunidade, do seu e meu amigo Dr. Joaquim Trigo de Negreiros, do Dr. Águedo de Oliveira, todos da geração da qual foi celebrado o centenário do nascimento, em que tive a honra de ser orador, e membros de um grupo mais alargado de trasmontanos que estavam juntos no governo no meu tempo de jovem licenciado, e que por isso conhecíamos como A sereníssima Casa de Bragança.

Mas hoje, quando, no entardecer da vida, recordo as gentes e as terras por onde passei, o que mais seguramente me vem à lembrança é o avô Valentim sentado na pedra que na aldeia de Grijó de Val-Bem-Feito lhe servia de banco para ler o jornal, a Maria Boleira que me tinha sempre reservada uma bôla de azeite, o Manuel Fiscal que se despedia desejando “a saúde ou dinheiro, que Deus não pode dar tudo”, a minha tia Maria que me ensinou a ler pela Cartilha de João de Deus, o moínho onde trabalhou o meu avô paterno que não conheci, o arroz doce e as alheiras da minha avó Olívia, o direito abusivo que eu tinha de emparceirar com o meu primo Alexandre para carregar o andor do Menino Jesus na festa do Senhor do Calvário, no primeiro domingo de cada Setembro.

Nos longos caminhos do mundo por onde andei, na África do nosso findo Império, no Brasil, nas duas costas dos EUA, no Oriente, sempre encontrei o mesmo fenómeno da solidariedade dos trasmontanos emigrados, entre si e logo de braços abertos para os que chegam. Na década de sessenta do século passado, sendo então Presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, pareceu-me necessário organizar a solidariedade das comunidades de portugueses residentes no estrangeiro, com as comunidades de descendentes de portugueses, e ainda com as comunidades filiadas na cultura portuguesa porque por ali tinham passado ou a soberania ou a pregação portuguesas.

Fiz uma longa viagem ao redor da terra para organizar o I Congresso dessas Comunidades em Lisboa-Guimarães-Coimbra (1964), e o II Congresso a bordo do Príncipe Perfeito (1966), navegando no Índico na rota de Vasco da Gama ao longo da costa de Moçambique, e sempre, espontaneamente, os trasmontanos que existissem se mobilizaram para que o projecto se efectivasse.

Foi então que pude viver a força de um portuguesismo que se mantinha, variado na forma mas com igual substância, na diversidade de meios e de circunstâncias em que se encontravam: percebi que existia uma realidade a que chamei A Nação Peregrina em terra alheia, e que os trasmontanos formaram sempre um elo dessa rede que se estendeu a partir da interioridade nordestina por todos os caminhos que abrimos pelo mundo. O conceito de Reino Maravilhoso, que devemos a Torga, tem certamente origem na beleza da paisagem que muda harmonicamente com as estações, e depois com a amorosidade que para sempre envolve a relação da terra com os seus filhos, mas os custos da interioridade foram enormes ao longo dos séculos, nesta região que foi sempre do Reino político português, sem guerras de conquista. Os progressos evidentes das últimas décadas europeias não eliminaram todos os custos, mas serão melhor avaliados em face da memória de carências passadas, e da submissão à natureza das coisas. Lembrarei a Colheita do Senhor, palavras com que se aliviava a dor das mães que em cada ano sofriam a perda dos meninos de anjos sem pecado. Ou as razias causadas pela tuberculose, que por quatro vezes, só na nossa família, levou o avô Valentim a percorrer o caminho do cemitério para enterrar os filhos.

A geração que assumiu a gestão local, neste período europeu em que nos encontramos, deu passos largos na melhoria da qualidade de vida, a governar a parcela nacional mais próxima dos centros da União, mas ainda a mais distante em termos de acessibilidade. Geração muito apoiada pela rede do ensino, em que destacaria o Politécnico de Bragança e a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Mas a sofrer agora, como toda a interioridade, o despovoamento, a quebra da natalidade, a debilidade do crescimento económico que não oferece condição suficiente de fixação dos diplomados, com o agravamento que deriva da crise financeira do Estado que obriga  a meditar, cada vez que a invocada racionalidade gestora o leva a retirar presença e serviços, se não é a batalha da interioridade que perde forças e espaço de intervenção.

O Reino Maravilhoso vai exigir a mobilização geral para que estes efeitos colaterais de uma mudança global das circunstâncias em que o país se insere sem escolha não atinja as raízes, não afecte o alicerce que é a pátria pequena dos que são obrigados a partir, dos que ficam, e dos que serão os herdeiros dos novos erros e acertos.

Ao longo dos tempos os portugueses foram emigrantes para todas as lonjuras da sua terra natal, por vezes, como nós, apenas dentro do próprio país, outras porque a pobreza da vida incita a procurar diferentes promessas de abundância, também porque o Estado, deitado a longe, para a gesta das descobertas e segurança e povoamento das conquistas, organizava a transferência nem sempre consentida. O fim do império, em 1974, fez convergir toda a diáspora, sem diferença das causas e razões da partida, para a condição hoje de Nação peregrina em terra alheia.

O regresso foi de regra um projecto guardado na memória dos afectos, mas, com frequência, os filhos nascidos nas terras de acolhimento foram a âncora que fixou para sempre os pais, e assim foram crescendo, nas cinco partes do mundo, as comunidades de descendentes de portugueses, que em geral não ignoram as origens, embora alterando a imagem que passa de geração em geração. É assim nas duas costas dos EUA, é sobretudo assim no Brasil, também assim em vários lugares do Oriente.

O que tudo faz nascer duas distâncias do emigrante em relação à origem. Primeiro a dolorosa distância física que não deixa esquecer os amigos de infância, o arvoredo e o cheiro dos campos, nem permite voltar a puxar a corda do sino, andar na procissão, comer o caldo de couves temperado com unto, mais as amoras que tingem as mãos, e o pão de centeio ou de trigo.

Mas depois cresce para muitos a distância da memória, isto é, a memória que se distancia no tempo e vai apenas guardando registos selectivos, piedosa no embelezar das lembranças que não conservam nem as dores da infância, nem o envelhecer penoso dos pais e avós, sacrificados ou à decisão de ficar ou à impossibilidade de partir.

Dos vários longes, ou físicos ou das memórias, à medida que os horizontes se alargam, e que as novas dependências e exigências se tornam mais densas, o sentimento das raízes parece vir socorrer a defesa da identidade originária, e lembrar a pátria pequena que é a terra de origem, o município que parecia tão vasto, as artes populares que primeiro educaram os gostos, os saberes ancestrais para lidar com a saúde e a comida, para animar os festejos, para fiar e tecer, para dar formas à madeira e à pedra, para colher o mel ou fabricar os enchidos, e afinar os cuidados com manter os velhos muros, as antigas casas, as acolhedoras esquinas, para preservar ou recriar o ambiente que acolha a mudança sem perder as origens, que reinvente um futuro com história, e abra os braços a todas as memórias, as memórias dos que partiram e voltam, dos que não voltam mas não esquecem, dos que ficaram e garantiram a identidade, e com ela a esperança, a ternura, e o consolo dos reencontros. A Nação peregrina em terra alheia deve a estas devoções dos que ficaram, governando, defendendo e revigorando as comunidades locais, e afeiçoando a sua circunstância, que a identidade de todos e de cada um não se dilua no turbilhão do globalismo que nos visita para ficar.

E nós já estamos no fim da nossa responsabilidade. Aquilo  em que nos resta meditar é, se pela nossa intervenção, algum sal salgou a terra e se alguma terra ficou salgada.

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