sábado, 29 de maio de 2021

Eu e tu não somos dois

Por: Fernando Calado
(colaborador do Memórias...e outras coisas...)

Às vezes ainda te encontro menino triste na alvura do teu fato domingueiro, com a cegonha e a raposa bordadas na disputa das papas de milho, guardadas na magia da fábula em ânfora elegante e estreita.
Às vezes ainda te encontro, pois tu moras dentro do meu coração e somos um só e ouço-te rir na alegria de estrear as meias novas de renda, e ainda te adivinho os olhos grandes presos no encantamento do voo dos pássaros, ou no mergulho certeiro da rã que se deleitava ao sol no poço da nossa horta.
Às vezes sinto-te. Tanto… nas lágrimas quentes vertidas noite fora, pela morte da gatinha branca que tragicamente passou na hora errada na estrada estreita.
Às vezes ainda engulo as lágrimas… e ouço a tia Sara, para todo o sempre, a dizer:
- quando já se viu um garoto a chorar por uma gata…que até metia nojo!
Nunca percebi… como a gatinha branca de neve… a mais bonita do mundo, podia meter nojo!
… não choro pela gata… choro porque me queimei no lume!
E então encontro-te… estoicamente… a meter as mãos no lume… sem sentir nenhuma dor, para puder chorar copiosamente e para todo o sempre pela gatinha branca… a mais bonita! Tanto!
Encontro-te sempre nas minhas alegrias… e muito mais nas grandes perdas… olhos grandes… lágrimas muitas.
Encontro-te, claramente, na ternura e alegria do pintainho desenhado, pela irmã mais velha, em papel costaneira… mas quando virava o papel, tragicamente, o pintainho desaparecia como perda maior e sofrida. Mas tudo pode ter remédio quando o sonho é maior… e pacientemente a irmã desenhou outro pintainho igual do outro lado da folha… e assim o pintainho ficou para sempre e não crescia, na tranquilidade dum sono tão feliz.
Fazes-me falta menino triste… para poder chorar demoradamente quando estou triste… e para rir sem parar, como quando o pai regressava da feira com chocolates com pratas de todas as cores como as cores dos sonhos!
Pego-te pela mão meu menino e levo-te comigo para todo o sempre!
Estamos a envelhecer ao mesmo tempo!...
… que saudades… e tão breve é o caminho!


Fernando Calado
nasceu em 1951, em Milhão, Bragança. É licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto e foi professor de Filosofia na Escola Secundária Abade de Baçal em Bragança. Curriculares do doutoramento na Universidade de Valladolid. Foi ainda professor na Escola Superior de Saúde de Bragança e no Instituto Jean Piaget de Macedo de Cavaleiros. Exerceu os cargos de Delegado dos Assuntos Consulares, Coordenador do Centro da Área Educativa e de Diretor do Centro de Formação Profissional do IEFP em Bragança. 
Publicou com assiduidade artigos de opinião e literários em vários Jornais. Foi diretor da revista cultural e etnográfica “Amigos de Bragança”.

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