Nosso Senhor é como as pessoas de Miranda, não fala mirandês.
Quando uma língua não serve para rezar. Quando se dizem todos os pecados a Deus, sem medo, e se tem vergonha de rezar em mirandês. Quando é assim, não há língua que resista. Parece que Deus, quando andou pelo mundo a aprender as línguas, chegou aqui e passou ao lado. Eu creio que o desviaram. É tempo de Deus não ter vergonha de falar em mirandês.
Quando uma língua não se escreve, dizem que a história ainda não começou, porque não há como contar essa história. Apenas pode ser contada pela língua dos outros. Uma língua sem história não pode durar para sempre.
O pior é quando a língua deixa de servir para pensar. Ou, quando dormimos, não aparece a falar nos sonhos, porque a língua dos sonhos é aquela que está dentro de nós. Fala-se como se respira. Se o leite que mamamos não vem misturado com a língua, esta não pode ficar metida dentro de nós e ser tão importante para a vida como o estômago, o coração, a cabeça, o fígado. Só dessa maneira não se pode viver sem ela. Apenas assim aparece nos sonhos, ainda que não queiramos. Uma língua que não fala nos sonhos não vai longe.
Há palavras que, quando as dizemos, nos deixam com pele de galinha, mas apenas nós nos apercebemos; há sons que mos envolvem como uma onda de calor, mas apenas nós sentimos o gelo que por vezes trazemos dentro de nós a derreter; há trejeitos da língua dentro da boca, falando, que nos fazem cócegas que ninguém mais sente; há ditos que não têm outra maneira de se dizer e ninguém se apercebe quando não conseguimos traduzi-los; há coisas que, quando usamos outra língua para as dizer, soam como estranhas e, no fim, ficamos com a ideia de que não fomos capazes de as dizer. Há palavras, sons, ditos, coisas, que dormiram durante tanto tempo connosco, que tomaram cama para um lado e quando não nos deitamos para esse lado é como dormir sobre uma pedra.
Em Lisboa há um jardim zoológico com animais de outros países ou que já desapareceram dos campos. Quem fala mirandês, pode ser como esses animais raros: toda a gente gosta de os ouvir e acha piada à sua língua. Está a chegar um tempo em que quem fala mirandês pode estar como num jardim zoológico, animal raro a quem as pessoas acham piada e por quem têm curiosidade. Acontecem coisas que nos devem fazer pensar: há grupos, associações e até partidos para defender tudo o que está a desaparecer. Defendem-se os pássaros, os burros, certas aves. O governo até dá dinheiro para tudo isso. Por mim, até concordo. Por que razão com o mirandês, uma língua que está a desaparecer, nada disso acontece?
Os mirandeses apenas podem gabar-se de uma coisa: a sua língua. Correi o mundo inteiro e não encontrareis nada igual. Não é melhor do que as outras línguas, mas é a nossa, única no mundo. Porque as línguas são como as pessoas, cada pessoa: por muito semelhantes que sejam, são todas diferentes. Quando uma delas morre, é algo que se perde para sempre.
Há mil anos, dizem, já se falava mirandês. Talvez fosse um pouco diferente, mas era mirandês. Uma língua que teimou permanecer numa pequena ilha, cercada pelo mar que é o português e o castelhano, deve levar-nos a pensar. Se morrer, com ela morrerão de novo todas as pessoas que nestes mais de mil anos a falaram. Então, ficamos com um enorme problema: nem em toda a Terra de Miranda há espaço para enterrar tanta gente. Por isso, como almas penadas, ficaremos condenados a chocar constantemente com os esqueletos da língua que morreu: uma palavra aqui, uma letra além, um dito mais adiante. E quando, durante o inverno, o fumo das chaminés se for espalhando com o vento por fontes, por outeiros e por vales, os esqueletos da língua virão a aquecer-se na boca de algum velho sentado à lareira com os netos nos joelhos. Porém, de tão enregeladas, as letras, as palavras, não conseguirão juntar-se para formar contos ou cantigas.
Concordareis comigo que ninguém gosta de viver num cemitério ou caminhar por um campo de batalha onde apenas ficaram cadáveres, cheiro a pólvora e, passado algum tempo, a carne putrefacta. Um campo assim, apenas pode ser bom para os abutres que, voltejando no céu, virão descendo com os bicos preparados para se fartarem. E só quem está cego não vê os abutres que já andam por aí. Nada tenho contra os abutres, mas essa não pode ser a missão dos mirandeses.
Desde que os homens falam, já muitas línguas morreram: são línguas mortas. Essas línguas ou geraram outras, que são suas filhas, ou deixaram escritos que podemos ler e, pelo menos aí, voltam a viver. Porém, línguas houve que desapareceram, ninguém sabe delas. As pessoas que as falaram é como se nunca tivessem existido pois nada há que permita recordá-las.
Que destino queremos para o mirandês?
Há um tempo para tudo. Agora é o tempo para responder à pergunta. Para responder com a cabeça. Porém antes, deixemos o coração pensar, pois é por aí que a língua melhor se percebe.
No passado, há muitos anos, obrigaram-nos a falar português. Disseram-nos que o mirandês não era uma língua de gente ou, então, era uma língua de gente estúpida, atrasada. Os reis obrigavam as pessoas a fazer os documentos oficiais em português. Os enviados do rei vinham a Miranda e falavam português. O português era a língua dos ricos e do poder e, com o tempo, o mirandês foi-se identificando como fala dos pobres, como fala do campo. Depois, quando Miranda foi elevada a cidade, veio um bispo que obrigou todas as pessoas a rezar em português. Todos deviam aprender as orações que mandou afixar nas portas das igrejas. Desse modo, a língua foi expulsa da Igreja. Desde então para cá, foi ficando pelos caminhos, abrigou-se do frio em volta das chaminés, acompanhava os nossos sonhos. Envergonhada, foi-se escondendo de quem vinha de fora, foi encolhendo até ficar presa numa pontinha de Portugal. Aí, nunca conheceu fronteiras impostas por reis e manteve a sua pátria, para além das guerras, dentro da casa da sua família asturo-leonesa.
Passou a andar por aí a lavrar, a ceifar, a cavar, a vindimar, a regar, a apanhar rosmaninho para estrume, a apanhar lenha, a caminhos, a apascentar as mulas ou as vacas. Sempre de cabeça levantada, mesmo com frio e com fome, cansada, com sono. Foi língua de raiva, mas também de embalar; língua deste inferno de mete pé saca pé e língua de sonhar com vidas melhores; língua de ralhar e língua de torna-jeira ou torna o burro; língua de chorar e língua de festas e de dançar; língua de morrer e língua de nascer. Enquanto andava por aí, parava nas forjas a aquecer-se e saía de lá transformada em relhas, sachos, guinchas, machadas, foices de cabo comprido e varandas; subia ao campanário e tanto repicava a casamentos e baptizados como chamava à missa, voltejando solenemente, ou tocava a rebate quando os medos eram tão fortes que obrigavam a juntar toda a gente; era língua de bombeiros em filas de baldes sem fim; aos domingos à tarde andava pelo Sagrado, engalanada, ou corria as ruas a dar vivas à mocidade; quando tinha sede, baixava-se a beber de boca nos ribeiros ou agarrava-se à picota, para baixo e para cima, sem parar; quando tinha fome, ia pelas Arribas e pelo Planalto e, com a raiva feita sacho, alavanca ou enxadão, punha as rochas a dar uvas, azeitona ou centeio.
Por vezes ficava em casa à espera, pois não a deixavam ir para a Argentina, o Brasil, Sevilha, Lisboa, a França e outros mundos de Deus. Também nunca foi à guerra, mas tantas vezes morreu por lá.
Era uma língua de vida. Vida difícil, mas vida. Era uma língua de uma raça igual à da gente que a fala: gente orgulhosa, que nunca desiste nem se contenta com o que tem ou o que é; gente que chora com raiva e, na desgraça ou na necessidade, é capaz de se unir como se fosse um só; gente que à força de passar a vida a subir encostas, aprendeu a olhar para cima; gente que a cada sachada, a cada sulco, a cada balde de água, vai semeando e regando sonhos de futuro e é capaz de tudo – apenas ela e deus sabem quanto! –, para ter a vaidade de parir filhos que tenham uma vida melhor; gente que teimou em falá-la e sempre se deu bem com ela.
Os anos foram passando, umas gerações após outras. E a língua foi ficando sempre, como uma herança. As histórias que fazia, ninguém as escreveu. Hoje, quem as pode contar? Onde haveria memória tão grande que lá coubessem todas? Por isso, ficaram por aí: umas foram enterradas e já se desfizeram em terra, outras voaram com o fumo das chaminés nas noites de inverno, abrigando-se dentro das grutas, metendo-se pelos buracos das paredes, escondendo-se de dia quando o barulho não a deixa ouvir-se. À noitinha, se estiverdes pelas Arribas, sentai-vos numa pedra, deixai que o sol acabe de se pôr e os pássaros se recolham, àquela hora em que se ouve o silêncio passar por entre os zimbros e agarrar-se às fragas como um bafo. Esperai um pouco, até que se levante uma brisa e escutai as vozes que começam a sair, formando histórias que o lusco-fusco deixa adivinhar nos vultos dos socalcos e das oliveiras. Depois, lançai-vos pelo carreiro acima sentindo os passos dos contos que buscam quem os conte.
Cerca de quatrocentos ou quinhentos anos andou a língua nesta vida. Já se tinha habituado ao português e ia esquecendo o castelhano. Então, começou a pedir palavras emprestadas ao português, cada vez em maior número. Sempre que o português aparecia com uma palavra nova, até lhe achava graça e levava-a para casa como se fosse sua. Mas foi-se mantendo, sem nunca deixar de ser quem era. Com o tempo, passou a conviver com o português dentro de cada pessoa, apenas se atrevendo a sair quando esta a autorizava.
Entretanto, dizem-nos que as pessoas da cidade de Miranda deixaram de falar mirandês. Expulsaram a língua para as aldeias à volta. E o mirandês sentiu-se tão bem entre essa gente que nunca mais voltou à cidade. Em cada aldeia, a língua cresceu com as suas diferenças, a sua maneira de ser, embora sem deixar de ser quem era. Apagar essas diferenças ou fazer de conta que não existem, seria ficar mais pobre e, quem sabe, morrer de vez. Pertencer ao mirandês, como uma língua única, é algo de que nos devemos orgulhar. Mas não devemos orgulhar-nos menos das diferenças que se foram sedimentando sabe-se lá desde quando, e que já os nossos avós herdaram dos avós deles. Isso, não há qualquer lei que o possa alterar. Mas a língua é só uma, o mirandês. Todos, em conjunto, ainda nos poderemos fazer ouvir. Divididos, nada valemos e não faltará quem esteja à espera dessa divisão para fazer troça de nós. Juntos podemos defendê-la melhor, ensiná-la, escrevê-la e continuar a falá-la.
Que destino queremos para o mirandês?
É muito difícil responder: a língua está tão doente que ainda não descobriu remédio que a salve. Primeiro, fez uma fronteira com o português e manteve-se apenas numa parte da Terra de Miranda; depois, tornou-se amiga do português e foi-lhe pedindo palavras emprestadas como se fossem suas. Quando, entretanto, a expulsaram da Igreja, foi como receber uma facada que nunca deixou de sangrar e, com o tempo, evoluiu para cancro. Quem conhece a cura para o cancro? Apesar disso, não há que desistir nunca ou dar-se por vencido O pior é que os mirandeses nem se aperceberam. Está doente, velha e cansada, com poucas forças para resistir. E apenas existe uma maneira de os velhos viverem: através dos filhos. O mirandês deve deixar filhos que tenham orgulho na sua língua e não reneguem os pais.
Nos últimos trinta anos, a Terra de Miranda encheu-se de doutores, de jornais, de rádios, de televisões. Mas não há doutores em mirandês, jornais que o escrevam, rádios que o falem, televisões onde se veja. O mirandês é pobre e não terá dinheiro para televisões, possivelmente nem para rádios. Mas pode ter doutores. E pode ter um jornalzinho, por pequeno que seja, que vá pelo mundo fora onde haja um mirandês com a língua enovelada dentro de si desde há muitos anos e com vontade de a deitar para fora. Não será assim que a Terra de Miranda pode mostrar que é grande? Qual é o mirandês que não daria dez tostões para apoiar um jornalzinho que viva uma vez por mês, ou apenas de três em três meses?
Nos últimos trinta anos, muitas coisas que falavam mirandês foram desaparecendo, mortas ou escondidas onde ninguém as veja: arados, relhas, charruas, carros de mulas e carros de bois, albardas, molhelhas, jugos, caniças para a palha, forquilhas de madeira e de ferro, trilhos, foices, picotas, foices de cabo comprido, cestos vindimadeiros, cestos estrumeiros, cilhas, cargas e arrochos, cabeçadas, malhos, molhos de colmo, forjas, fornos, eiras e tantas, tantas coisas. Mas a vida não parou, mudando o mundo em cada dia. Vamos deixar que a língua morra agarrada a essas coisas que já morreram, em vez de a fazer viver agarrada às pessoas que a falam, mudando e ficando com elas, indo com elas para todo o lado?
Nos últimos trinta anos, a língua foi sendo expulsa das casas: os contos já não sobem pelas chaminés, já não come à mesa, já não dorme na cama. Na rua, quando por ela passa, já há quem a olhe de lado. A continuar assim, sem eira nem beira, há-de morrer de frio, numa noite de inverno, debaixo de algum telheiro onde, por caridade, lhe permitiram dormir. Não haverá na Terra de Miranda uma casa para a língua, que seja apenas sua e onde entre quem a queira falar, quem a queira aprender ou, pelo menos, dar-lhe uma ajuda? Uma casa que, sem ser escola, sirva para ensinar quem a queira aprender? E onde se guardem livros que falem dela e por ela? Não será assim que a Terra de Miranda mostra que é grande?
Vou a ficar por aqui. Mas ainda vos quero fazer um desafio, a vós mirandeses que, como eu, aprendestes a falar o mirandês enquanto mamáveis, e também a vós que não o chegastes a aprender bem, mas ainda estais a tempo, pois apenas através dela podereis lembrar os vossos avós, e a todos vós que, mirandeses ou não, apenas agora a descobris e também a quereis meter dentro. Olhai para dentro de vós, bem no fundo de vós, e respondei, um por um, olhos nos olhos: quereis ser os coveiros da língua que herdastes? Quereis deixar que morra a única coisa que é vossa e, como nenhuma outra, vos distingue? Se quereis, então é tempo de comprar a urna e preparar o funeral. Se não quereis, então mexei-vos porque o tempo é escasso para ainda fazer alguma coisa.
Quem esteve a ler, já vai cansado e com razão. Por mim, podia continuar. Com o coração na ponta dos dedos, toda a noite fui escrevendo, sem sono, como quem fica a vigiar para não morrer. Lisboa inteira, à minha volta, deixa-me a falar sozinho. A Terra de Miranda, a quinhentos quilómetros daqui, cheira-me a vindima e a sementeira.
Lisboa, numa longa noite de Setembro de 1999
Fracisco Niebro
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