Naquela zona mitificadora da memória onde se enovelam maravilhosos fiapos da infância, entre os fantasmas amigos de antanho, aparece-me, vago e em tons de sépia, o Ti Zé Miguel.
Ti Zé Miguel, o homem das sete mulheres, a legítima mais seis filhas! Era também o meeiro a quem meu pai confiara as parcas leiras herdadas da avó Adriana da Portela, homem mais pachorrento e caladão que os bois com quem lidava de sol-a-sol e a quem atribuía uma vaga alma de gente. Com um sorriso imperceptível gasalhado sob o bigode talhado à maneira da primeira grande guerra, o rosto tisnado e a cabeça ligeiramente tombada sobre o ombro direito, no jeito paciente dos bem-aventurados das pagelas que se vendiam nas romarias, assim ele me surge, ainda hoje, do nevoeiro da memória, no seu passo lento e bamboleado como os dos patos, de aguilhada ao ombro à frente da galharda junta de bois que meu pai comprara na feira dos Chãos, espalhando um olhar manso como o deles. No Outono víamo-lo aparecer do nevoeiro, como um elfo, à frente do carro carregado de toros e trazendo no feltro do chapéu e no rectângulo do bigode pérolas minúsculas, farrapos das névoas que vogavam pelas touças do Cabeço Cercado, e, no cotim coçado da jaqueta, argalhos de giestas e o cheiro dos mentrastos. Era capaz de passar um dia inteiro por lá com uma côdea negra de centeio, um naco de toucinho e meia dúzia de palavras. Com um toco de Kentucky apagado ao canto da boca, derramava, de longe em longe, um esboço de sorriso calado sobre a gente e as coisas. O seu espírito perdia-se por lá numa comunicação vegetativa com os soutos, as touças, as searas, mais do que com as bisbilhotices da aldeia.
Desjungia os bois, botava-lhes um braçado de feno e vinha sentar o seu silêncio sobre uma tripeça, à lareira, fitando as brasas. E, enquanto as pantalonas puídas pelos anos fumegavam da humidade dos lameiros, executava, com delícias de sultão bizantino, o cerimonial do cigarrito antes da ceia: começava por alisar uma mortalha na palma da mão, desfazia-lhe em cima quatro ou cinco piriscas avaramente guardadas no bolsinho do colete, alinhava o tabaco ao longo da folhita de papel, catando com minúcia os fiapos de tabaco desalinhados da fieira, enrolava-o em escrupuloso e fino cilindro, humedecia a fímbria da mortalha com a ponta da língua, e umas fagulhas de volúpia chispavam-lhe já dos olhitos miúdos. Entalava a obra de arte nos lábios. Com a tenaz aproximava uma brasa, sugava o fumo com sofreguidão e largava as primeiras baforadas com mais delícia que sultão fumando o seu narguillé.
Depois da cigarrada, a tia Isabel Caldeireira, a mulher, gritava pela filharada - eram sete! - e o rancho familiar abancava em volta da arca grande onde se guardavam os largos pães centeeiros da semana e os nacos de toucinho com que se adubava o caldo e se acaudatava o carolo da merenda. Ao centro fumegava o cogulo das batatas farinhotas e couves tronchas em travessa esmaltada de figurações cor de lagarto, vasta como gamela, acolitada por um prato fundeiro com alho picadinho sobre azeite diluído com a água do caldo - se o litro de azeite custava duas jornas de sol-a-sol!... - onde à vez cada um ia molhando a batatinha e o talo de couve.
E a mim, menino debiqueiro arribado da cidade, aguavam-se-me os olhos por aquelas batatas besuntadas naquele rico molho de pobre. E nunca deixava que me repetissem o convite para também eu empunhar heroicamente o meu garfo de ferro e arranchar com a malta alegre dos Caldeireiros a que aliás pertencíamos por parte da mãe, provindos de um galego Caminha arribado dos lados de Arzua. E o caldo verde adubado com uma colher de unto e um naco de toucinho! Santo Deus! que delícias de Sardanapalo! Algumas nalgadas apanhei eu à conta dessa minha desavergonhada pironguice, quando a Amélia, a nossa empregadita, se descaía a contar a minha mãe estes faustosos banquetes!
***
Este Ti Zé Miguel deve ter sido um dos últimos contadores de histórias e um dos artistas-mores da castanha assada nos velhos assadores feitos de tiras de folha-de-flandres entrelaçadas. Nas noites assanhadas de invernia, com o vento uivando desesperadamente lá fora e a chuva a crepitar sobre a telha vã da cozinha, depois da ceia, Ti Zé Miguel pousava-se sobre a sua tripeça lustrosa do uso como pitonisa que se dispõe a presidir a um ritual. Do bolso do colete sacava o macinho de Kentucky e, com ar beato de sibarita moderado, puxava as primeiras fumaças com que a Sibila de Cumas pedia a inspiração de Apolo. Depois, com gestos sábios, cogulava o assador com as castanhas reboludas do Souto de Cadavez, enganchava-o no cadeado e metia mais uma giesta na fogueira. Era o sinal: a gaiatada, alapava-se em redor sobre mantas velhas estendidas no soalho, de queixo no ar e olhos no Ti Zé Miguel. O velho Homero puxava outra fumaça, pigarreava e soltava a voz mansa e cava, ligeiramente enrouquecida do tabaco de vastos anos: Era uma vez...
Lá fora zurrava temporal desfeito. A chuva assanhava-se sobre a telha de meia cana, o vento resfolegava no sabugueiro do outro lado da rua, uma golfada de ar frio infiltrava-se sob a telha, apagava a candeia e enovelava o fumo acre dos cavacos de carvalho mal secos e fazia-nos lacrimejar. Deixá-lo!... Era uma vez... E nas palavras arrastadas vinham emergindo, das sombras e fumos que se adensavam pelos cantos da cozinha mal alumiada, mundos fantásticos de bruxas e fadas, reis e princesas, bandidos e almocreves, pícaros e trágicos.
As paredes enegrecidas pela fuligem esvaíam-se e do negrume surdiam florestas escuras donde fosforesciam os olhos do lobo mau, onde perpassava o rabicho cedilhado do coelho casquilho; ou os burros tropiqueiros dos ciganos, os cavalos pimpões dos cavaleiros que matavam dragões e gigantes para salvarem princesas que, choronas e apaixonadas, do janelo de suas torres, alongavam os olhos pelos caminhos donde surgiria o galhardo salvador.
De quando em vez, sustinha a narrativa, sacudia, em ligeiros golpes de mestria, a asa do assador, e a pequenada, de narinas frementes, aspirava com volúpia o perfume da pele esturricada das castanhas... E de novo voltava a magia da palavra, criadora de mundos, como o Verbo inicial saído a boca de Jeová: ele era a história do Conde das Arcas decepado das mãos e frigido em caldeirão de azeite, por espanhóis ou mouros (para o caso tanto faz); ele era o Pastorinho Perdido nos longes da serra e perseguido por lobos maus, ou ainda O Arre, Burro, Caga Dinheiro!, burrico sobredotado que se alimentava de patacões velhos do tempo dos afonsinos e largava luzidias moedas de ouro que faziam rico a seu dono. Havia também a história das Três Maçãzinhas de Ouro, tesouro avaramente escondido pelos mouros debaixo da Fraga Grande da Ladeira, um avantesma de penedo que, talhado, daria para erguer outro bairro da Portela, e que uma moira encantada trouxera para o Alto da Ladeira, à cabeça, numa noite de luar, enquanto fiava estrigas de oiro em roca de oiro, com um fuso de oiro. E debaixo da fraga desmesurada sepultou ela as três maçãzinhas de oiro, furtando-as à cobiça dos nazarenos. E ainda lá estão à espera que alguém descubra as palavras mágicas que irão baldear a fraga gigantesca.
Eram, enfim, luminosos mundos de fantasia que moravam connosco, que se erguiam já ali, por detrás do áspero granito que nos separava da treva e das cordas de água que desabavam lá fora.
***
Depois era a festa da castanha, dos bilhós a nascerem loiros e perfumados do negrume das cascas tisnadas. Com risadas, riscos de fuligem pela cara e o jogo do arrebunhana em que se faziam e desfaziam fortunas daquele oiro que os soutos da serra pobre nos tinham dado e faziam de nós os reis do mundo.
Irremediavelmente, como perdemos a infância, assim os perdermos a eles, aos contadores de histórias e ganhámos em sua substituição esses outros contadores de outras histórias, a desengraçada e chatíssima subespécie dos políticos, prováveis parentes afastados do Barão (o onagrus baronius de Garrett) que impudentemente nos entram casa dentro pela janela mágica de McLuhan, prometendo-nos o bacalhau a pataco e bufarinhando com a nossa consciência.
Que é feito da graça, da imaginação, da simprez do Ti Zé Miguel que nada prometia, nada pedia e aos mundos fabulosos das suas histórias acrescentava a dádiva das suas castanhas, as melhores castanhas do mundo!?
E quando as pálpebras pesavam já com o sono, acontecia de arranchar também na dormida e por ali nos amontoávamos aos quatro e cinco em cada uma daquelas camas de bancos, ajaezadas com lençóis de estopa mais áspera que a estamenha com que os eremitas medievais ganhavam o paraíso, e grossos cobertores de papa tecidos no tear palreiro da Zulmira com a lã por ali crescida, nos gados do Frederico ou do João Santo e cobertas com as mantas de trapos que os cesteiros ambulantes trocavam pela cesta de batatas.
E em sonhos continuávamos as histórias do ti Zé Miguel, visitados por cavalos brancos arreados a ouro e cavalgados por princesas gentis, ou assustados por lobos maus que saltavam, de olhos em brasa, das touças cerradas do Cabeço Cercado. Assim sonhávamos as histórias do ti Zé Miguel e não era raro que, ao amanhecer, nos víssemos presenteados, sobre as mantas de trapos, com montículos de prata que ou fadas tecedeiras ou anões moleiros peneiravam das nuvens pela peneira da telha vã.
por António Augusto Fernandes
in:ntmad.blogspot.pt
Sem comentários:
Enviar um comentário