quarta-feira, 23 de julho de 2014

Saudade Defumada . Trás-os-Montes, agosto

Uma noite, Miguel Torga, genial poeta português, nascido em S. Martinho de Anta, Trás-os-Montes, falou no Brasil acerca da sua terra.
Escutaram-no numerosos componentes da colónia portuguesa e, também, alguns brasileiros.
Entre estes últimos, David Nasser, o grande jornalista de O Cruzeiro.
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David Nasser viria depois a Portugal, que percorreu de norte a sul (dessa viagem deixar-nos-ia um livrinho - Portugal, Meu Avôzinho).
O jornalista não mais esqueceu - nem aquela memorável noite lusitana no Rio de Janeiro, com Torga, nem a sua viagem de férias.
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Compôs então, na sua revista (O Cruzeiro, 3 de Outubro de 1964), um dos mais belos e sentidos hinos de amor a Portugal e, em particular, a Trás-os-Montes.
Uma crónica surpreendente.
Tanto mais surpreendente quanto é certo que ele não tinha ascendência portuguesa (seus pais eram naturais do Líbano).
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(Na transcrição da crónica, respeita-se a grafia brasileira).
"Agora vou entrar no reino do meu guia.
Comecei esta viagem - que é uma romaria de amor - com Miguel Torga e é com êle que eu vou. É com êle que vou a Trás-os-Montes.
Não posso me esquecer daquela noite, numa pequena rua da Tijuca, no Rio de Janeiro, mal sacudido por uma revolução sem sangue - e entre as paredes de uma residência transformada em centro tansmontano, a figura sombria de Miguel ao fundo da sala, a falar de um mundo seu.
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Tendeiros, biscateiros, marceneiros, canteiros, taberneiros, carvoeiros e outros eiros misturados a atacadistas, varejistas, sêco-molhadistas, capitalistas e outros istas de um reino emigrado.
O reino maravilhoso daquela gente simples, da côr da terra, do coração grande e das mãos sempre estendidas - para o abraço ou para o murro.
Não existe povo mais autêntico sôbre a face da terra que o povo de Trás-os-Montes.
Ouço ainda Miguel Torga a falar de sua província, a uma saudade estatelada dentro do salão.
Um namorado a dizer maravilhas da namorada.
A paixão - desculpou-se êle - é uma fôrça terrível, move montanhas, transpõe oceanos e obriga homens tímidos a essas violências do pudor.
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E lá ficou a falar de Trás-os-Montes, procurando não meter na conversa sombra de literatura.
Suas palavras foram, na realidade, palavras físicas, realidades físicas, como urgueiras floridas, talefes brancos, restolhos dourados - doirados dizem êles - a fazerem, na oração, de sujeito, de verbo e de complemento.
Em vez de catadupas de som, Torga despejou cêstos de uva, sacos de castanhas, presuntos, facadas, procissões, feiras e uma encosta de Montesinho ou de Barroso a servirem de pano de fundo aos olhos de uma platéia enlevada.
Em muitos olhos duros de português transmontano havia lágrimas.
Talvez nos olhos de gente que não chorasse nem na morte da mãe.
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Ao escutar o idioma, como pedra cristalina, descendo das pedras de Torga, via-o a fazer a barba do pai, em S. Martinho de Anta, a ajudá-lo na semeadura, ou sentia-o a chorar numa fazenda de Leopoldina, em Minas, adolescente ainda, sob um saco de café, onde o que pesava mais era a saudade.
Tenho a impressão de que essa palavra - saudade - foi inventada aqui em Trás-os-Montes.
Nos poucos minutos daquela prosa, o poeta levou seus irmãos pelo caminho que vai à padroeira de cada freguesia, misturou o seu barro humano com o de sua gente, fazendo com que saísse da união a imagem verdadeira, ampla e significativa dum berço que é todo simplicidade.
Falou sem preocupação de gramática nem de estilo, porque, ao primeiro sinal de retórica, aquêle berço deixaria de embalar.
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De olhos enxutos, um povo esmagado de lembranças, Torga estendeu no soalho da sala o mapa invisível de Trás-os-Montes, e cada um se sentiu com os pés enterrados no húmus de sua aldeia.
Os da Régua se sentiram na Régua. Os de Vinhais, em Vinhais. Os de Mirandela, em Mirandela. Os de Carrazeda, em Carrazeda.
O que Miguel Torga não imaginou é que eu, um brasileiro de Jaú, estivesse em Vila Real, a beber do vinho honesto do Padre Henrique, a almoçar na Quinta do Narciso, a comer em Rebordelo os salpicões da mãe do meu companheiro Luiz dos Santos; a dormir debaixo de uma ramada, como alguém que volta a uma pátria escolhida.
A sua pátria intelectual.
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Entrei no reino transmontano de Torga, formando a guarnição do pequeno mundo que viu nascer a todos aquêles bons homens que estavam numa sala explosiva de saudade.
Desde então passei a mourejar com todos os glóbulos sarracenos prestes a incendiarem como os xistos de lá. A saudade de um transmontano é saudade defumada, que conserva a gostosura da carne, a doçura do clima e a amargura da terra.
O homem, Torga, fêz descer a todos, fêz voltar a todos, fêz chorar a todos.
Fêz chorar até a mim, que não tenho nada com isso.
Vim a baixar da Terra-Fria, aonde nunca tinha ido, para a Ribeira à frente da roga, de harmônio ao peito como um fadista.
Depois fui contrabandear na raia, senti-me a desconjuntar lusitanamente os verbos, a ceifar na lomba, a saibra, a redrar, conforme a hora, conforme o tempo.
Aportuguesei-me.
Amiguei-me com Portugal.
De cama, de mesa e de graça.
- Que diabo de língua falas tu? - perguntou-me, em tom naturalmente altivo, um pastor que descia a Chaves.
E ao ouvir Torga no centro transmontano do Rio de Janeiro, recordei-me de Rubem Braga, a dizer a Rachel de Queiroz que a língua portuguêsa emigrou para o Brasil quando estava no apogeu - e em Portugal ficou apenas um dialeto falado por um grupo reduzido.
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Até Camões é mais Camões recitado por um brasileiro.
Camões em ritmo português é Camões de pé-quebrado, diz a presunção brasileira.
Mas não é possível descrever a Portugal e muito menos ao melhor de Portugal, que está atrás dos montes, onde se grita ao lá de fora: - Entre quem é! -
Não se pode pintar a êsse quadro com as nossas tintas.
São fortes demais na luz. São fracas demais na côr.
Naquela noite, em que, pela primeira vez, me levaram pela palavra para além do Marão, a sala teve sol e neve.
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Como um hipnotizador, Miguel Torga, o gênio transmontano, carrancudo e generoso, traçou para cada um o rosto da amada perdida.
Fê-los subir, a todos, o outeiro da memória.
Acendeu na alma de cada um o fogo dos arraiais distantes.
E todos, agachados, ficamos a ouvi-lo, como a um pajé misterioso que estivesse a cortar fatias de lembranças. Não, não era uma descrição, era uma comunhão, onde eu, como um maometano que não sou entre cristãos que não eram, vinha juntar-me.
Naquela noite de Torga, quem era de Vila Flor passou mentalmente a apanhar azeitona na sala.
Do Romeu, a descascar sobreiros.
De Favaios, a cozer trigo.
Do Vimioso, a escavacar pedreiras.
- Mas, eu?
- De onde é o amigo?
- Do Jaú.
- Pois entre no grupo. Entre como se fôsse de Freixo. Entre na roda e coma amêndoas. Queria ficar de fora, o grande marôto!
- E nós, santinho? Somos de Pinhãocelo.
- De Pinhãocelo? Vamos, aparelhe os machos e ferre-lhes com a carga em cima. Depressa! Pena não haver ninguém de Pocinho. Há? Ó criatura de Deus, salte para dentro do rabelo e agarre-se à espadela. Mas cuidado! O cachão da Valeira é traiçoeiro. Apegue-se a S. Salvador do Mundo.
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E assim, dentro daquela sala em cuja ampliação agora estou, Torga, naquela noite, teve seu reino animado.
Os rios com barcos e barqueiros, as serras com rebanhos e zagais, os lameiros com charruas e lavradores. Todos olhavam orgulhosamente, transmontanamente, para êsse reino viril de homens viris.
Nenhum outro reino mais belo, mais castiço e mais aberto.
- Entre quem é!
Nenhum outro reino tão capazmente servido pelo seus filhos nem tão devassado, tão escancarado para os que chegam de alma aberta.
- Entre quem é!
A beleza de lá não tem maneirismo, nem o catecismo de lá é arcaico, nem a fundura dos horizontes de lá significa perdição no vago, nem os sentimentos dos habitantes são mesquinharias.
De Trás-os-Montes, perdoem-me os outros, Portugal exporta o melhor.
De Sabrosa ao Pinhão, do Tua a Bragança, da Régua a Chaves, de Freixo a Barca de Alva ou em Boticas, é o que se vê: sempre o mesmo lençol de fragas e a mesma gente a nascer nêle.
A fisionomia dos relevos, a máscara enrugada das penedias, a estimulante largura dos descampados correspondem no humano a uma fisionomia igual, recortada em granito, máscula, austera, e, ao mesmo tempo, viva e generosa.
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Ouço ainda a se dizer naquela sala, dentro da qual coube uma pequena leira lusíada, que o destino quis que houvesse no tôpo uma costeira, onde tudo tivesse caráter e dignidade.
Onde a vista pudesse desfrutar dali perspectivas originais, onde a enxada pudesse mostrar na dureza dos torrões a dureza do aço, onde o fole do peito se enchesse por inteiro a cada respiração, onde todos os sêres ali nascidos ou ali vividos estivessem à altura.
Portugal encontrou em Trás-os-Montes o seu telhado, a lousa que lhe resguarda as virtudes, a saúde física e moral, a tenacidade mourejadora (sempre os mouros do meu sangue), a pureza dos costumes e a expressão mais nobre e acabada das feições interiores, a mais severa e desassombrada parcela da pátria, a mais estremada expressão do seu povo.
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A capa de honras daquele mirandês que ali aparece não é um trajo de festa, mas o paramento dum sacerdote laico da dignidade.
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A louça negra que nos vende êste oleiro de Bisalhães não é, como parece, apenas barro amassado e cozido, mas o lado noturno da fome na sua expressão estóica, porque existe um Portugal pobre, que luta e sofre, a catar os seus próprios meios, a viver com os seus próprios recursos, mas um Portugal que não pede esmolas nunca.
Vai puxando lá embaixo o rabelo à sirga, um môço vai picando a junta de bois ou abrindo a valeira na teimosa persistência.
A admiração alheia é apenas um estímulo para prosseguir.
O transmontano sente a perfeição interior.
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Sem favor algum, é perfeito desde a maneira de estender uma tigela de caldo a um pobre, à largueza de abraçar um amigo - ou em concretas obras-primas de sabor, de graça, de habilidade e de figura.
E até de grossura, diria eu, ao colhêr dessa epopéia escrita a enxadão tôda uma filosofia condensada num provérbio de sabedoria velha:
Quem tripas comeu e com viúva casou, sempre há de se lembrar do que por lá andou.
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Por lá andei, com viúva não casei, por isto trago apenas, de Trás-os-Montes, um gôsto de saudade defumada, neste fim de viagem."
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(David Nasser - O Cruzeiro - Rio de Janeiro - Brasil - 3 de Outubro de 1964)

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