Dulce Pontes visitou a região de Bragança e pensou: "Por que não? Na minha vida profissional não necessito de estar no centro. E aqui tenho grande mobilidade: em três horas estou em Madrid". E ali ficou
O "cantado do sotaque" já o tem, quando quer, e o título de filha adoptiva da terra ninguém lho tira. Quando quer escapar, a família passeia até Montesinho ou viaja ao passado na cidadela brigantina. Porém, viver no "Reino Maravilhoso" já é todo um escape. Às portas de Bragança, Dulce Pontes sente-se perto de tudo e dentro do silêncio de que precisa para trabalhar.
Se já a consideram filha da terra, ela já se sente mais do que confortável no papel de filha adoptiva. Que faz as vezes de madrinha sempre que a ocasião o pede. A abertura da Expo Trás-os-Montes foi uma dessas ocasiões e Dulce Pontes lá chegou, à hora marcada, para participar da cerimónia de abertura. Agradeceu a forma como foi recebida na região, homenageou o espírito empreendedor dos transmontanos e cantou "no mirandês possível".
cardai cardicas cardai
la lhana pa los cobertores,
que las pulgas (e)stan prenhadas,
van a parir cardadoress.
É a música "Tirioni", que lhe foi ensinada pela dona Rosa, em Sendim. "Ofereceu-me uns cardos antigos, da bisavó", recorda. Passou por lá quando andou a fazer pesquisa para o álbum "O Primeiro Canto", editado em 1999. "Em 15 dias, fiz a recolha possível." E foi o início de uma certeza: "O nosso folclore devia ser património mundial, reflecte-se em muitas outras culturas e é tão antigo".
Quase uma década e meia volvida, vive às portas de Bragança e, quem sabe, poderá gravar uns "cantares do pão", parte da tradição oral da região. "Não os conheço, mas querem-me propor." Talvez o faça no seu estúdio caseiro, a "catacumba", onde se esquece do tempo e de onde parte para o mundo - ainda há pouco terminou a gravação de um dueto com um músico argentino sem sair de Bragança. "Aqui faço tudo, vou para onde é necessário, gravo..."
Instalou-se em Samil, aldeia encostada a Bragança, no início do ano lectivo de 2010/2011. O filho, Zeca, andou na escola da terra até esta fechar. Tinha duas salas, alunos do primeiro ao quarto ano. "As crianças choraram quando tiveram que mudar de escola", lembra, "era diferente, tinha actividades ligadas à terra". Num magusto, recorda, comeram sardinhas. "Foi engraçado comer sardinhas e ver as montanhas em volta."
No meio das montanhas que já estiveram cobertas por água - "Já encontrámos conchas, eu e a Maria [a filha]" - vê por vezes um mar imaginário, quando a bruma se instala desde a serra de Montesinho para Sul. "Quem está ligado ao mar encontra o mar em qualquer sítio", reflecte. E ela chegou aqui vinda de Setúbal... O companheiro é de uma aldeia da região, vieram de férias e os filhos adoraram, não queriam ir embora. "Pensei: por que não? Na minha vida profissional não necessito de estar no centro. E aqui tenho grande mobilidade: em três horas estou em Madrid."
Madrid pelo aeroporto, Madrid pelo trabalho, que nos 25 anos que já leva sempre se concentrou mais em Espanha. Há também a proximidade com a Galiza, onde é presença regular na TV Galicia. Sente-se bem na zona raiana, é quase uma maneira de ser. "Também sou raiana", afirma, sempre com um pé em Espanha, Grécia, Itália, "curiosamente, todos países em crise". "É duro, as pessoas ligam-se aos países, são outra pátrias. Estou a preparar-me psicologicamente para regressar à Grécia. E para a semana vou a Roma - estive lá já depois de a crise estalar e vi pessoas a vasculhar o lixo."
Em Bragança também sente a crise, mas não sente tanto "a tensão, o desespero". Talvez pela solidariedade, talvez pelo cultivo da terra. Em casa de Dulce Pontes há árvores (castanheiros e cerejeiras), couves e morangos. "O ano passado fiz uma tentativa, frustrada, com tomateiros. Estavam lindos, a subir pelas estacas. Mas tive de ir para fora, não os reguei e quando voltei estavam secos, secos", recorda entre risos. As "saídas" mais ou menos frequentes também inviabilizaram o cultivo de melões: "Não quero chatear as pessoas para os regarem". Ainda que essas pessoas sejam as mesmas que lhe levam galinhas, por exemplo - "Às vezes vêem-me e perguntam: gosta de tal? Então vou levar-lhe" - ou que lhe deixam abóboras à porta, como a Zulmirinha - "Deixa à porta, não bate. Já lhe disse para bater mas nunca o faz".
Gosta das pessoas frontais, directas, carinhosas que encontrou aqui. "Identifico-me com essa forma de estar", afirma. No café habitual, perto de casa, conversa com a dona; ao sair troca palavras bem humoradas com os homens que aproveitam os raios de sol para tomar cerveja. A adaptação de todos "foi impressionante", diz, e as crianças descobriram aqui actividades diferentes, uma forma de crescer mais saudável. Dulce não esquece quando, nos primeiros tempos, bem no centro da pequena aldeia de Samil, passaram homens com bois. Perante o assombro da pequena Maria insistiram para que ela os levasse. "Ela levou-os durante um bocadinho."
Hoje a Maria ficou em casa. Contrariada. "Já se estava a preparar para vir, perfume, colar...", explica Dulce. Vem novamente despedir-se da mãe ao portão, enquanto esta tenta reunir os quatro cães da família, dispersos pela rua e campos vizinhos. Já tiveram gatos e um dia hão-de ter uma vaca para a Maria, brinca Dulce. Isto só sabemos já vamos nós a caminho do Parque Natural do Montesinho, um dos destinos mais frequentes das escapadas da família.
Antes, visitamos a cidade intra-muralhas, para "viajar no tempo". Na cidadela, o final de tarde é sereno e fala-se da forma em coração das muralhas - Dulce acaba de indagar o presidente da câmara na abertura da Expo. Inês de Castro, um filho bastardo, nada de muito concreto - "mistérios da nossa história", resume. No caminho de ronda, os seus olhos fogem para fora, para os campos que se estendem até à serra de Montesinho e mergulham num pequeno prado murado na intra-muralhas - "Não apetece rebolar?", aponta. Com um movimento mais amplo de braço abarca toda a cidadela: "Há um carinho pela terra, de forma geral, está tudo cuidado". Mantém a "identidade", há-de insistir mais tarde, quando subimos até ao Domus Municipalis, passando por muros que guardam galinhas ("olhem os olhos bonitos daquele galo"), casas com varandas de madeira e vasos em flor (e umas poucas arruinadas), trepadeiras verdes, brilhantes - "Estão vivas".
No Domus, tempo para, uma vez mais, a cantora se maravilhar com este pequeno enigma brigantino e pôr-se, pôr-nos, de joelhos a fazer escalas para uma das cisternas. "Tem um som extraordinário". Não há muito tempo, Dulce foi aqui entronizada na Confraria Ibérica da Castanha. Não por acaso, a castanha é um alimento que lhe agrada ("sopa de castanha, hmm"), entre toda a "comida fantástica" que encontrou aqui em Trás-os-Montes - "se engravidasse outra vez ficava quadrada". E, coincidência ou não, a castanha já lhe inspirou uma "reflexão", algo, explica, sobre o facto de ser "tão agreste por fora como macia por dentro".
Faz um paralelismo similar em relação ao cenário e às gentes transmontanas. "Há uma rudeza e, ao mesmo tempo, uma doçura nas paisagens que se acaba por reflectir nas pessoas". Por esta altura, a cidade já ficou para trás, com o seu "museu dos caretos" (Museu Ibérico da Máscara e do Traje) e o seu Centro de Arte Contemporânea Graça Morais, com "um barzinho muito agradável". Se, quando passeia, Dulce Pontes vai "de vez em quando a Bragança" é para o campo que vai mais. Quer levar-nos a Rio de Onor, "que parece parada no tempo", mas o avanço do dia limita as ambições: ficamos pela Aldeia de Montesinho.
Se o destino vale a pena, o caminho não lhe fica atrás. É um território verdadeiramente mágico para Dulce, que lhe conhece razoavelmente os cantos - "faço muitas vezes este caminho de noite, quando vou para Espanha". Pouco depois de se ter mudado viu uma pequena raposa; mais habituais são os gamos, veados. "Mas agora não é hora boa para os ver." Pelo caminho aponta papoilas e rosmaninhos, as colmeias coloridas nas encostas; chama atenção para os trinados; admira a pastora de ovelhas, a mulher que carrega um fardo de erva, a que conduz um tractor. "Mulheres rijas." Nos pequenos bosques que vemos ao longo do rios Fervença e Sabor sonha construir a sua casa ideal, longe de tudo.
As casinhas de xisto de Montesinho deixam-na sempre encantada e por ali circula nesta tarde de "passeio inesperado" por ruas quase vazias de gente (uma velha de negro e cajado sobe uma ruela, outra assome à varanda...), com ribeiros como banda sonora e floreiras como dicionário de cores. "Se tivéssemos seguido em frente na estrada", conta, "as montanhas seriam impressionantes! De uma altura, uma imensidão... Ficas em silêncio". Quando as vê assim, "tão altas e bonitas", diz que é fácil acreditar que "Deus existe".
Da varanda e terraço de um dos seus restaurantes preferidos, a Taberna do Xastre, é só a imensidão das montanhas que vemos. O rio Sabor corre do outro lado da estrada, lá em baixo, há rebanhos do outro lado da serra, mas só o olhar treinado de Lourenço, o proprietário, os detecta imediatamente. Estamos ao lado do Rabal como se estivéssemos no meio de nenhures. "Ontem, a esta hora, passou um rebanho em baixo. O cão de repente começou a subir o caminho e eu avisei quem aqui estava: "Vai passar uma corça." E passou", conta Lourenço. Este é o trunfo deste recanto, onde só entramos porque, por acaso, Lourenço está ali - à semana só abre se há reservas para jantar. Mesmo sem reserva, lá se arranjou alheiras na lareira, presunto, chouriço, pão - Dulce está como que em casa, entre amigos.
Em sua casa, a cantora acorda com as galinhas, porque a Maria assim o exige. "Às seis da manhã já está a dizer "vamos lá fora"." Não importa que a mãe tenha estado até às quatro da manhã, "sem noção do tempo", no estúdio. Na verdade, a mãe até gosta de ver o nascer do sol, ouvir o chilrear dos pássaros: focaliza-a e ajuda-a a ganhar energia para enfrentar o ritmo dos dias. Levar o filho à escola, ligar-se ao mundo (internet), ir para o estúdio, preparar o almoço... Escrever durante o dia é que é raro (às vezes vem algo, nas alturas mais inconvenientes e Dulce recorre ao telemóvel para memória futura), fá-lo quando tudo está tratado e sossegado - o que por estes dias pode significar quando Maria já se cansou de cantar "A Canção do Mar" (em breve irá para um coro) e o Zeca já deu sossego às baquetas ("toca bateria mas não gosta que se fale nisso").
Se sente falta de algo em Bragança? Dulce não hesita: dos pais (que até a foram visitar no último voo Lisboa-Vila Real) e de amigos. Mas o que ganhou em qualidade de vida é imenso - "Antes, quando tinha de tratar de algo em Lisboa perdia o dia inteiro; agora, em cinco minutos estou em Bragança". E nada paga a felicidade dos filhos quando viram neve, este ano. "Da primeira vez, foi apenas um ameaço, só deu para fazer um pato de neve. Da segunda vez, estivemos dois dias isolados, deu para boneco. [Os filhos] Fizeram anjinhos e a Maria até comeu neve."
Agora que entramos na segunda quinzena de Junho, a família "vai para baixo". Dulce Pontes tem ensaios para os concertos de Verão e esperou que a escola terminasse. "Consegue fazer-se tudo." Depois, voltarão a Samil, onde a espera o silêncio de que tanto gosta para trabalhar. E, afinal, já estão todos um pouco "transmontenizados" - o filho já fala a cantar, conta Dulce. E ela própria já apanhou o "cantado do sotaque".
Jornal Público
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