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SOBRE O BLOG: Bragança, o seu Distrito e o Nordeste Transmontano são o mote para este espaço. A Bragança dos nossos Pais, a Nossa Bragança, a dos Nossos Filhos e a dos Nossos Netos..., a Nossa Memória, as Nossas Tertúlias, as Nossas Brincadeiras, os Nossos Anseios, os Nossos Sonhos, as Nossas Realidades... As Saudades aumentam com o passar do tempo e o que não é partilhado, morre só... Traz Outro Amigo Também...
(Henrique Martins)

COLABORADORES LITERÁRIOS

COLABORADORES LITERÁRIOS
COLABORADORES LITERÁRIOS: Paula Freire, Amaro Mendonça, António Carlos Santos, António Torrão, Fernando Calado, Conceição Marques, Humberto Silva, Silvino Potêncio, António Orlando dos Santos, José Mário Leite. Maria dos Reis Gomes, Manuel Eduardo Pires, António Pires, Luís Abel Carvalho, Carlos Pires, Ernesto Rodrigues, César Urbino Rodrigues e João Cameira..
N.B. As opiniões expressas nos artigos de opinião dos Colaboradores do Blog, apenas vinculam os respetivos autores.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Comemorar o passado ou o “mouro” no presente – A Festa dos Caretos em Torre de Dona Chama

Barbara Alge
Referência:Alge, Barbara, 2006, “Comemorar o passado ou o “mouro” no presente – A Festa dos Caretos em Torre de Dona Chama”, Brigantia, Vol. XXVI em homenagem a Belarmino Afonso, nº 1- 4, Bragança, p. 289-306

Para quem estuda a cultura popular de Trás-os-Montes, o nome de Dr. Belarmino Afonso é familiar.
No meu caso, artigos da revista Brigantia que encontrei pela primeira vez na Fundação Gulbenkian em Paris iniciaram, entre outras obras, o meuestudo sobre a dança dos Pauliteiros de Miranda e, em seguida, sobre outros costumes transmontanos (Afonso 1981, I, 1: 121-123 e Alge 2004, 2005). O nome de Belarmino Afonso também me é corrente das minhas visitas ao Arquivo Distrital em Bragança. No entanto, não conheci Belarmino Afonso pessoalmente. Nasci no mesmo ano que a revista Brigantia e, no tempo dos romanos, a cidade capital da minha terra natal na Áustria chamava-se “Brigantium”.
No quadro da minha tese de doutoramento na Universidade de Viena, sobre danças,festas e autos populares portugueses com elementos da mourisca, trabalho actualmente num terreno multi-situado. Em cada terreno, destacam-se um ou vários eruditos locais que são referências para determinados fenómenos culturais. Em Trás-os-Montes, um tal indivíduo era, entre outros, o Padre Belarmino Afonso. Apesar de não ter estudado sistematicamente ou mais profundamente um fenómeno cultural, recolhas e documentos escritos dele servem como base para outros estudos científicos. Assim, Belarmino Afonso trabalhou sobre cestaria, mineração, linho, casamento, gado, cozedura do pão, comunitarismo, ex-votos, cantar dos Reis, ritos fúnebres e superstições, brinquedos populares, culinária, cancioneiro, festas dos rapazes, assim como outros costumes e a história do distrito de Bragança. No que respeita ao meu estudo actual sobre mouriscas portuguesas, interessam-me as festas dos rapazes e as festas de Santo Estêvão principalmente por causa do fenómeno dos mouros e cristãos de Torre de Dona Chama e também por causa dalgumas semelhanças com os impérios dos Açores.No seu artigo sobre os ferreiros de Penafiel, Bertino Daciano menciona que as lutasentre cristãos e mouros se executavam antigamente com espingardas, mas que as autoridades proibiram a pólvora seca e que, em seguida, as espingardas foram substituídas por espadas. B. Daciano, até, supõe semelhanças destas lutas com danças portuguesas como os Pauliteiros e o Baile dos Ferreiros (Daciano 1950: 28). No meu estudo, considero, sob o termo “mourisca”, danças de espadas, de paus e representações de lutas entre cristãos e mouros.Este artigo, porém, concentra-se exclusivamente na festa de Santo Estêvão de Torre deDona Chama (Mirandela) e a sua luta entre cristãos e mouros. A primeira parte do artigotenta uma classificação da festa de Torre de Dona Chama, a segunda trata da festa mesma e divide-se numa introdução ao contexto sócio-cultural, na descrição da festa actual, assim como na problemática de processos de modernização e na problemática das fontes.
I) Classificação
Festa dos rapazes, festa de Santo Estêvão e festa dos loucos
As festas dos rapazes, de Trás-os-Montes, fazem parte do ciclo dos doze dias, isto é,entre Natal e Epifania. Belarmino Afonso escreve que as festas natalícias em Trás-os-Montes são vulgarmente conhecidas por Festas dos Rapazes ou de Santo Estêvão e explica que as festas dos rapazes são organizadas e vividas por rapazes e têm como finalidade significar a passagem ao estado de adulto. Apesar de Francisco Pires adesignar por “festa dos rapazes” (Pires 2001)em Torre de Dona Chama não se trata,hoje, à primeira vista, duma festa dos rapazes. A festa de Torre de Dona Chama erasempre organizada por homens adultos e rapazes, e hoje participam também raparigas.Ernesto Rodrigues faz alusão ao estado solteiro dos mascarados e dos mouros, e ao estado casado dos cristãos (Rodrigues 1994: 73, 265). Nas fotografias do livro de António Tiza, os caretos são rapazes jovens e os mouros parecem rapazes mais velhos (Tiza 2004: 129, 130). No entanto, na festa a 26 de Dezembro de 2005, há também mouros e um careto adultos, mas não necessariamente casados.
Belarmino Afonso cita refeições abundantes, quase rituais, lutas, declamações de loas,autos ou comédias como elementos das festas dos rapazes (Afonso 1981, vol. I, 0: 19 evol. I, 2: 26). Em Torre de Dona Chama aparecem alguns destes elementos - como ocomer e beber em volta da fogueira a 25 de Dezembro e a luta a 26 de Dezembro.Embora talvez não seja uma festa dos rapazes, celebra-se em Torre de Dona Chama uma festa de Santo Estêvão. Também António Tiza atribui a festa de Torre de Dona Chama às festas de Santo Estêvão, e não às festas dos rapazes (Tiza 2004).Jean-Baptiste Thiers inclui Natal (25 de Dezembro), Santo Estêvão (26 de Dezembro),São João Evangelista (27 de Dezembro), Circuncisão (1 de Janeiro), Epifania (6 deJaneiro) e a Oitave da Epifania (14 de Janeiro) num período em que se dançava naigreja, nas chamadas “festas dos loucos”, e Jacques Heers acrescenta ainda São Nicolaue os Santos Inocentes (28 de Dezembro). Apesar do nome, nas festas dos loucos não se trata duma exaltação da folia, mas duma celebração litúrgica segundo regras eclesiásticas. Outras expressões para estas festas são “festas dos inocentes, das crianças,do burro ou dos diáconos”.
São festas em que hierarquias são invertidas, em que, naIgreja, se instala um poder lúdico – são verdadeiras macacadas. Jacques Heers escreveque tais festas caíram em desuso no século XVII e limitavam-se mais tarde a algunsgestos simbólicos (Heers 1983: 105, 107, 177, 299).
Encontram-se ainda hoje alguns elementos citados por Jacques Heers em festas do Inverno em Trás-os-Montes, como por exemplo os burros na festa de Santo Estêvão em Torre de Dona Chama, a presença dos reis na missa em Torre de Dona Chama, o marido enganado e batido na Festa do Velho em Bruçó, assim como as coroações e o papel da juventude, a inversão das hierarquias e a aparência de figuras “loucas” ou diabólicas(caretoschocalheiroscarochos, velhos) em diversas festas dos rapazes (ibid: 209,212). J. Heers cita, em relação com as festas dos loucos, a dança mourisca, processional e de corte, e menciona, não necessariamente ligados à festa dos loucos, representações de mouros e jogos de luta no século XV (ibid: 227, 238, 239, 275). No entanto, hoje, pode apenas especular-se sobre a relação entre as festas do Inverno deTrás-os-Montes e as festas dos loucos medievais, devido ao desaparecimento dasúltimas no século XVII.
Festas de Cristãos e Mouros
Diversos estudos sobre festas dos rapazes mostram que há diferentes hábitos segundo olocal. O caso de Torre de Dona Chama tem um lugar especial entre as festas dos rapazes do distrito de Bragança - devido à luta entre cristãos e mouros.Encontram-se outras representações de lutas entre cristãos e mouros em Trás-os-Montes, mas não em festas dos rapazes. Assim, por exemplo, em Argozelo a 13 deAgosto de 2000 revivificou-se, depois de 60 anos de “pausa”, o Auto dos 12 Pares da França que inclui uma luta entre cristãos e mouros. Representações de cristãos e mouros encontram-se, além disso, noutras regiões portuguesas, sobretudo no Minho:
Auto de Floripes em Palme e Neves, Auto de Santo António em Portela Susã, Auto da Turquia de Crasto (Ponte de Lima), mas também no Douro (Bugiadas de Sobrado, antigo Baile dos Turcos de Penafiel) e, antigamente, na Beira Baixa (Auto da Descoberta da Moura em Vale Formoso) – para citar apenas alguns exemplos. (Afonso,2000, XX, 3-4: 212 e http://www.cenalusofona.pt/manifpopulares/manif.asp?id=232). O fenómeno das “fiestas de moros y cristianos” encontra-se também em Espanha (ver,entre outros, Pérez-Embid 1963, IV: 397; Arco 1994, I; Gallent 1969).
II) A festa de Santo Estêvão de Torre de Dona Chama
A vila de Torre de Dona Chama
vila Torre de Dona Chama situa-se na Terra Quente da região de Trás-os-Montes. É a maior freguesia do concelho de Mirandela, é centro da paróquia e tem 2000 habitantes. Hoje em dia, o êxodo de Torre de Dona Chama não se faz sentir, porque na vila há tudo o que é preciso para uma vida moderna confortável: bancos, correios, Posto Médico,GNR, Bombeiros, Associação Cultural e Recreativa, Casa do Povo, Delegação da Segurança Social, Lar/Centro de Dia para idosos, escolas com ensino até ao 12º ano, pequenas indústrias e uma actividade comercial. É conhecida pelas suas feiras.
Actualmente, pessoas das localidades vizinhas migram para Torre de Dona Chama. A vila é atravessada por diversos ribeiros e fica próxima da confluência dos rios Tuela e Macedo, assim como da Serra da Nogueira e, a Sul, as férteis terras de Macedo de Cavaleiros. Foi sede do concelho até 1885, altura em que passou a fazer parte doConcelho de Mirandela, do Distrito e Diocese de Bragança. Além da agricultura, a população trabalha na pecuária, no comércio, no ensino e noutros serviços. Produz-se muito azeite e vinho. Como informa Manuel Gonçalves, o nome “Torre de Dona Chama” refere-se à lenda mencionada em seguida, e é “de origem moura”. Ainda hoje se dizem em Torre de Dona Chama as lengalengas “moura, mourama, esta terra vai-se chamar Torre Dona Chama” e “cara de Senhora e pernas de cabra”. No monte de S. Brás, sobrepõem-sevestígios de várias épocas – pedras dos mouros e uma cruz sueva na capela, por exemplo.
Na vila, há um bairro de ciganos e, como informa M. Gonçalves, “os descendentes dos mouros” sempre estiveram integrados em Torre de Dona Chama. Os países de emigração para a população de Torre de Dona Chama eram, há mais de 70anos, o Brasil e, nos anos 50, Angola e Moçambique.
Torre de Dona Chama fica perto da Estrada Nacional 206 e a 3 km duma ponte romana. Outros vestígios arqueológicos serão mencionados à frente.
Música e festas em Torre de Dona Chama
Durante o ano, a população de Torre de Dona Chama festeja várias festas em honra de Santos como, entre outros, São João Baptista (24 de Junho). Segundo Manuel Gonçalves, estas festas não têm programa especial além dos bailes típicos,acompanhados por conjuntos. No primeiro domingo de Fevereiro celebra-se, em cimado monte de S. Brás, a festa em honra de S. Brás. Também se festeja o Entrudo, mas sem caretos. No segundo fim-de-semana de Agosto, é a Festa da Vila, a Festa do Divino Senhor dos Passos e, a 14 de Setembro, a festa do Divino Senhor dos Aflitos. A padroeira de Torre de Dona Chama é a Nossa Senhora da Encarnação. A nível musical, a Associação pretendeu recriar uma banda de música.
Impressão pessoal de Torre de Dona Chama a 26 de Dezembro de 2005
A 26 de Dezembro de 2005, os meus “observadores complementares” e eu, chegamos acerca das 11.00 na vila Torre de Dona Chama. Não se nota nenhum sinal de festa à parte da fogueira que ainda arde no centro da vila. Apenas um cartaz com desenhos, o programa da festa e a frase „conterrâneo, não deixes morrer a nossa festa; contribui,vem para a rua viver o pagode…” indica, no Largo da Berroa, a festa de 25 e 26 de Dezembro. Como aprendo mais tarde de Manuel Gonçalves, não está indicado o ano no cartaz, porque o mesmo cartaz já foi utilizado em anos anteriores. No centro, uma imagem de São João Baptista, o pelourinho e o porco em pedra (“berroa”) logo chamam a minha atenção. Como está nevoeiro, frio e chuva, os meus observadores complementares e eu, visitamos o café no centro onde um Senhor me indica a pessoa que “mais sabe sobre a Festa dos Caretos”, Manuel Gonçalves sénior. Este está porém doente, e assim visito o filho dele, Manuel Gonçalves júnior.
Depois da conversa em sua casa, M. Gonçalves acompanha-me ao monte de S. Brás onde me mostra o “castelo dos mouros”, isto é, pedras gigantescas, um sarcófago, assim como a capela de S. Brás num ambiente místico de nevoeiro e verde e onde me faz conhecer o imaginário ligado aos mouros em Torre de Dona Chama.
Imaginário popular
Os mouros viveram num castelo em cima do monte de S. Brás. Tiveram contacto comum outro monte onde existe, ainda hoje, uma fraga da moura e lagares. Segundo Manuel Gonçalves, a fraga não tem fim, e sobretudo na sua infância, achava-a muito misteriosa. Da presença dos mouros, testemunham pedras “trabalhadas”. Em geral, os mouros estão ligados a todo o tipo de transformações. Na descida do monte de S. Brás, M. Gonçalves explica-me o espaço de oliveiras entre a vila e o monte que é, entre a população de Torre de Dona Chama, considerado “um espaço interdito e sagrado” e que tornava o castelo inacessível “no tempo dos mouros”. Além disso, Manuel Gonçalves conta que na região em volta de Torre de Dona Chama havia muitas serpentes, que foram expulsas pela berroa representada em pedra no centro da vila. O autor Ernesto Rodrigues menciona, em relação ao imaginário dos mouros, a “princesa moura que trabalhava num tear encantado nas noites de S. João.”(Rodrigues 1994: 22).
Lenda
A festa de Torre de Dona Chama baseia-se numa lenda, mas a história complexa não se percebe na própria festa, e também não interessa aos organizadores e participantes. 
O escritor e professor de universidade Ernesto Rodrigues tenta, numa língua surrealista, no seu romance, interpretar a história, mas segundo Manuel Gonçalves, uma interpretação é difícil por causa da ausência de dados científicos. E. Rodrigues escreve: […] os mouros invadiram esta terra e submeteram os seus legítimos possuidores. Fortes num primeiro momento, debilitaram-se nos anos que sucederam à morte do rei, por fraqueza da princesa sua filha, dada aos favores da carne, cujo gosto tomou nos cristãos, adoravelmente castos na sua brancura de pele. Bom. Desenrolam-se lutas surdas para tomar a torre e os cristãos não perdem pitada, apoiados, se necessário, numa retaguarda estrangeira. Na noite de 25 para 26 combinam a missão que a cada um cabe na refrega datarde seguinte […(Rodrigues 1994: 211)
Segundo a lenda, os mouros viveram em cima do monte de S. Brás durante o tempo da reconquista cristã. Entre eles havia uma moura (ou mourama) com pés de cabra que atraiu os soldados cristãos para jogos de amor. Para que não revelassem o seu aspecto, ela pôs um anel em volta da língua de cada um. Um soldado, no entanto, não adormeceu, conseguiu tirar o anel e fugir. Quando a moura acordou, começou a chamar o soldado. O nome de  "Torre de Dona Chama“ vem deste chamar da moura. Manuel Gonçalves considera, porém, que por causa da sua polisemia, a palavra “chama” podia, por um lado, representar o chamar, por outro, uma flâmula. Assim, no brasão de Torre de Dona Chama aparecem flâmulas. As flâmulas podiam, também, segundo Manuel Gonçalves,representar o fogo de amor da moura.
Elementos da Festa de Santo Estêvão em Torre de Dona Chama
Madamas
As madamas são mulheres vestidas de homens e homens vestidos de mulheres. Ernesto Rodrigues interpreta as madamas no sentido de “esposas dos caçadores” e escreve que estas trazem, no essencial, garrafinhas e bisnagas de mijo ou variantes consoante a imaginação de cada - por exemplo pistolas de água, arsenal de perfumes insuportáveis, vinagre, farinha, etc. Elas atacam as pessoas, dão banho a quem tenta desvendá-las e fazem trinta por uma linha (Rodrigues 1994: 253).
Caçadores
Os caçadores são os cristãos que lutam contra os mouros com espingardas e são representados por homens.
Caretos
A figura do careto é a figura que mais aparece em diversas festas dos rapazes no distrito de Bragança e está ligada a figuras como o diabo ou a morte. Protegido pela máscara e pelo costume, o careto tem a permissão de se comportar como lhe apetece (Raposo 2005: 52). O careto em Torre de Dona Chama a 26 de Dezembro de 2005, no entanto,nem mete medo nem se comporta de maneira incontrolada. Ele não tem máscara e veste apenas um vestido garrido de franjas, calça amarela com risca preta e luvas amarelas. Na mão, segura um pau comprido. No seu livro sobre máscaras transmontanas, Sebastião Pessanha cita máscaras de sola de Torre de Dona Chama – o que indica que os caretos de Torre de Dona Chama utilizavam tradicionalmente máscaras (Pessanha 1960: 46). Pela indicação “ainda sem máscaras”, assim como “4 mascarados em fatos berrantes de franjinhas e guizos, um cajado na mão, a urrar entre saltos de casa em casa e a vir de lá com argolas de alheiras e salpicões nos domingos antes da festa”, Ernesto Rodrigues informa também sobre o uso de máscaras pelos caretos de Torre de Dona Chama (Rodrigues 1994: 7, 264).
Mouros
mourisca, isto é, o grupo de mouros,é representada por raparigas, rapazes e homens que se distinguem por uma faixa branca com uma fita de seda vermelha ou azul no meio e, alguns, por lenços na cabeça.
Rainha (ou princesa) moura
A rainha moura, representada por uma raparigatem uma capa de cor dourada, amarela,vermelha e azul, uma coroa de papel de prata e uma vara com uma laranja.
Rei cristão
O rei dos cristãos tem uma capa, uma coroa de papel dourado e uma vara com uma maçã. A 26 de Dezembro de 2005 é representado por um rapaz jovem.
Outro rei (mouro?)
Um rapaz com coroa de papel de prata e uma vara com maçã acompanha a rainha moura e o rei cristão. Não se percebe o seu papel na festa, sobretudo por causa da mistura de coroa de prata e maçã.
Música
A Festa dos Caretos em Torre de Dona Chama é apenas acompanhada por tambores,mais precisamente, por caixas e bombos. As caixas e o bombo acompanham o “deitar os jogos à praça” na noite de 25 de Dezembro, o desfile das madamas a 26 de Dezembro de manhã e a luta entre cristãos e mouros a 26 de Dezembro. Os tambores nem fazem parte do lado dos mouros, nem dos cristãos e, segundo Manuel Gonçalves, formam mais uma espécie de “coro”. Na conversa com os músicos aprendo que o caixeiro toca há 15 anos nesta festa, que o tocador do bombo é emigrante em França, que nenhum dos tocadores é verdadeiramente “músico”, assim que os tambores se guardam durante o ano numa associação em Torre de Dona Chama. Segundo Manuel Gonçalves, a composição do grupo de tambores não é sempre a mesma e forma-se segundo disponibilidade de tambores e tocadores.
Fogueira
A fogueira no centro de Torre de Dona Chama, no Largo da Berroa, é uma das muitas fogueiras do galo, que se encontram em Trás-os-Montes no período natalício. Em Torre de Dona Chama, ela fica acesa da noite de 25 a 26 de Dezembro. Belarmino Afonso sublinha a importância da fogueira no tempo ecológico de Trás-os-Montes em Dezembro e Janeiro e o convívio da população em volta da fogueira (Afonso 1987 vol.VIII, 3-4: 353).
Deitar os jogos à praça
Neste ritual, os chefes de família recebem, "nomes de guerra”, isto é, alcunhas para o seu papel de “caçadores” na luta contra os mouros.
Roubo dos burros
Na noite do 25 de Dezembro, roubam-se burros que desfilam na manhã seguinte na ciganada.
Ciganada
No desfile da ciganada, pessoas vestidas de ciganos andam em cima de burros roubados.
Bênção do pão
No largo da igreja, ou na igreja, benze-se o pão trazido pelas pessoas para que este as proteja contra doenças durante o ano.
Correr a mourisca
Este elemento vai ser explicado à parte.
Castelo dos mouros
No Largo do Prado está colocado o “castelo dos mouros”, um objecto de esferovite branco e de ferro. Os caçadores metem fogo à palha dentro do castelo.
Procedimento da festa a 25 e 26 de Dezembro de 2005
A população de Torre de Dona Chama designa a sua festa por “Festa dos Caretos”, embora, em 2005, participasse apenas um careto.
A festa é organizada pela Comissão das Festas e os seus mordomos. As preparações para a Festa dos Caretos começam nos domingos de advento com a rusga dos caretos e dos bombos para recolher ofertas para a festa. A festa não necessita de muito dinheiro,mas é preciso comprar pólvora seca, assim como comida e bebida para a gente em volta da fogueira da noite de 25 a 26 de Dezembro. Come-se e bebe-se, entre outro, carne de porco, borrego, bacalhau, pão, vinho e aguardente – organizados pelos mordomos ou oferecidos por indivíduos. No dia 25 de Dezembro de 2005, acende-se a fogueira por volta das 20 horas e começa mais tarde o ritual do “deitar os jogos à praça” e o ritual do “roubo dos burros”. No “deitar os jogos à praça”, os chefes de família recebem “nomes da guerra”. Grupos percorrem a vila com funis de metal para aumentar o som da voz e gritam em frente dascasas: "manda el-Rei, meu Senhor, deitar os jogos à praça, o (nome da respectiva pessoa)…”.
Os nomes correspondem ao carácter contrário ou à profissão contrária da respectiva pessoa. Quem obtiver um nome de guerra, pode participar na festa como “caçador”. No entanto, não participam todos como caçadores. O roubo dos burros não tem hoje o mesmo significado que tinha nos tempos em que o burro era um meio de transporte importante. Hoje, quase já não há burros em Torre de Dona Chama. Os burros roubados guardam-se durante a noite num lugar secreto para, na manhã seguinte, desfilarem a partir das 8 horas na dita, "ciganada“. A “ciganada” compõe-se de pessoas vestidas de ciganos e começa no centro onda está a fogueira.Segue-se o desfile das madamas
Estas, com nabos e água na mão, representam "o dar comida e bebida aos soldados para a guerra“. Depois duma pausa de almoço, começa, por volta das 14 horas, a missa na Igreja Matriz. Já antes da missa, na parte de trás da igreja, estão colocadas as coroas e varas dos “reis”e de fora ouvem-se tiros dos caçadores. Ao início da missa, um rapaz vestido de rei cristão, e uma rapariga vestida de rainha moura, vão ao altar, seguidos por um rapaz com coroa de papel de prata e uma vara com maçã. Podia-se tratar, no último, duma guarda de honra para os reis ou o rei mouro. Durante a missa, o rei cristão e a rainha moura ficam em pé em frente do altar e o terceiro rei fica sentado.
No seu discurso, o padre menciona a invasão dos árabes do ano 611, a influência do Islão em Portugal e a presença do rei mouro na missa: "[…]a festa dos Santos, temos aqui a presença dos reis, o rei mouro e o rei cristão […] está na igreja, o Mouro não entraria, pois talvez entrasse […] no fundo esta luta que existe entre o Bem e o Mal, que existe em cada nós, de seguir Cristo, própria encarnação […] nós cristãos, tolerantes como somos, não sei se é ignorância, ou se é falta de amor a Cristo e identidade mesmo própria […] bom, vamos viver este Natal,este dia de S. Estêvão, perguntarmos também pelas razões do martírio de Cristo, aencarnação, viver a nossa fé […]” (transcrição de Barbara Alge, fita original DV 55 Arquivo Sonoro de Viena). Como o padre sabe do meu estudo, pode-se até supor que ele menciona os árabes por minha causa. Durante a missa vêem-se debaixo da porta da igreja raparigas vestidas de mouros e um Senhor vestido de careto. O facto de eles estarem dentro dum espaço sagrado surpreende, porque mouros caretos são, no imaginário popular, vistos como inimigos da igreja. No momento da elevação da hóstia ouvem-se tiros e tocam tambores. Ao fim da missa, o careto dá os sinais de fogo para os caçadores em frente da igreja. A silhueta do careto mistura-se misticamente com o fumo dos tiros e o nevoeiro. Depois da missa, os reis saem da igreja. Como me informam participantes na festa, os reis andam às vezes de cavalo no início do desfile, mas, em 2005, nem há cavalos, nem os reis participam no desfile.
O público espera com guarda-chuvas, em frente da igreja, o começo da representação da luta. Os músicos tocam tambores e os caçadores e mouros misturam-se no largo da igreja. Um Senhor repara nalgumas raparigas vestidas de mouros e acha:"Ai, tão pequeninas, as Mouricitas! “De repente ouvem-se tiros e tambores a intervalos irregulares. Uma Senhora explica-me que hoje participa apenas um careto na festa, porque o interesse das pessoas pela festa se reduz cada vez mais. Faltam costumes de careto e algumas pessoas ainda estão a dormir. Antigamente – assim a Senhora me diz -havia muitos, talvez 10, caretos a participar. Durante a espera pela representação da luta, começa, na igreja, a bênção do pão. O pão abençoado deve proteger contra as doenças durante o ano. No final, tem lugar a luta entre cristãos (“caçadores”) e mouros, o “correr a mourisca”.
Os mouros (ou mourisca) dirigem o desfile de costas viradas, postos numa linha, seguidos pelo careto que segura verticalmente um pau na mão e impede os caçadores de passar aos mouros. Atrás do careto, os caçadores tentam chegar aos mouros. Seguem-se as 3 caixas e um bombo, assim como o público com guarda-chuvas. Algumas pessoas correm ao lado dos mouros, algumas esperam em frente das casas. Um Senhor, provavelmente o mordomo, leva um saco com pólvora seca. Cada vez que um caçador chega a um mouro, dispara. Directamente ao lado dos mouros, está tudo cheio de fumo e de grande barulho. Mais tarde, uma parte do público abrevia o caminho em direcção ao largo onde está posto o “castelo dos mouros”. Às vezes, o som dos tambores ecoa dos muros das casas – o que provoca uma sobreposição de ritmos. Devido ao mau tempo, tudo se passa muito depressa e a luta entre cristãos e mouros parece caótica. Os caçadores agarram alguns mouros e disparam para o ar. No entanto, os mouros “mortos” não desaparecem. O ambiente é escuro, por causa do nevoeiro e da chuva, e a acção passa-se ao lado dos mouros onde se dispara e onde emerge fumo. Vestígios arqueológicos na vila lembram o passado. O ponto culminante da festa tem lugar no Largo do Prado, onde se encontra o símbolo da vila, a “torre”, e onde, a 26 de Dezembro de 2005, é posto o castelo dos mouros. Os mouros constroem um círculo em volta do seu castelo e, no início, misturam-se público e caçadores. Dispara-se e começa a “música” dos tambores que acaba num momento indeterminado. O fim não se percebe. Os mouros desaparecem de repente. Tudo, nesta festa, parece confluir. O público agrupa-se com alguma distância e observa o espectáculo sem participar.
Um caçador deita fogo ao castelo e os caçadores continuam a atirar sobre o castelo. Nos bastidores, o careto despe o costume. Os dois caixeiros e um tocador de bombo marcham em volta do castelo, tocando. Enquanto falo com Manuel Gonçalves, o público desaparece tão de repente que nem tenho tempo para falar com mais informantes. Às 17h30, tem lugar a apresentação do livro de Telmo Carvalho, um antropólogo natural de Torre de Dona Chama.
“Correr a mourisca”
A 26 de Dezembro de 2005, participam 14 mouros, mais de 10 caçadores, 1 careto, assim como 3 caixeiros e um tocador do bombo na representação da luta entre cristãos e mouros. Uma Senhora ajuda o careto a impedir os caçadores. Na missa participam a rainha moura, o rei cristão e um outro “rei”. Os mouros são representados por raparigas, rapazes e homens, os caçadores são, por causa das espingardas, apenas representados por homens adultos, e o papel de careto tem um Senhor de 40 anos que parece um pouco deficiente mentalmente. Segundo Manuel Gonçalves, o careto é, em Torre de Dona Chama, uma figura marginalizada e quem veste de careto pelo menos uma vez, fica logo associado a esta figura.
A confrontação entre cristãos e mouros começa com o “deitar os jogos à praça”, onde se atribuem os “nomes de guerra”. Também a distribuição da comida pelas madamas faz parte da preparação para a “guerra”. Os primeiros sinais da guerra acontecem antes da missa, no momento da elevação da hóstia na missa, e, sobretudo, no fim da missa. A festa culmina na representação processional da guerra depois da missa, que percorre as ruas de Torre de Dona Chama e termina com a destruição do castelo dos mouros no Largo do Prado de Torre de Dona Chama. Como refere também Ernesto Rodrigues, o resultado da batalha fica incerta. Ernesto Rodrigues descreve ainda os seguintes elementos que não verificamos a 26 de Dezembro de 2005:- os cristãos adiante dos fiéis perto do altar-mor,- os caretos ainda sem máscaras no adro,- os “infiéis” fora da igreja,- os reis postos nos seus cavalos,- o “infiel” de manto vermelho, o rei cristão de manto branco,- a jovem princesa em alazão,- os quatro caretos a dominar a situação, saltitantes como os cristãos,- o castelo, aonde se dirigem os reis,- saem grupos de caçadores pelas ruas, disparando em cada casa, ou acossando restos inimigos, com o que todos se alegram e dão graças a Deus,- uma pele de cabra e cornos de diabo, que se atira aos garotos e às saias das mulheres.(Rodrigues 1994: 265-268)
Revivificação e folclorização
Muitos textos descritivos de festas populares esquecem a influência da modernização,assim como de processos de folclorização, mediatização e comercialização, e constroem uma imagem nostálgica da festa como era e é. Belarmino Afonso menciona a banalização de gestos numa festa, pelo turismo e pelos mass-media, sem, portanto,desenvolver mais esta assumpção (Afonso 2000, vol. XX, nºs 3 e 4: 207).
Ao contrário de outras festas portuguesas em que já participei, a população de Torre de Dona Chama parece não ter como objectivo, o “espectáculo” duma tradição, porque,embora o drama entre cristãos e mouros seja muito interessante do ponto de vista do conteúdo, não se utilizam nem costumes especiais, nem se ornamenta a vila. Como confirma Manuel Gonçalves, os elementos da festa juntam-se espontaneamente e não seguem uma estrutura fixa. Se a festa não fosse tão improvisada – assim acha Manuel Gonçalves – podia, provavelmente, perder-se. No entanto, vemos que a festa se perdeu e foi revivificada: antigamente, o roubo ritual da lenha era costume na festa de Santo Estêvão, em Torre de Dona Chama. Há mais de 50 anos, uma pessoa foi morta a tiro por causa dum roubo duma escada de madeira. Em seguida, a festa ficou parada durante 10 anos, mas foi revivificada novamente. A população não divulga muito a sua festa. Assim, a “Feira da máscara” de Bragança quis, por exemplo, uma representação das figuras de Torre de Dona Chama, mas a população de Torre de Dona Chama recusou uma participação. Embora, segundo M. Gonçalves, apareçam, todos os anos, televisão e fotógrafos na festa, não há presença dos média na festa a 26 de Dezembro de 2005. Para além do nosso grupo de investigação, há apenas um Senhor a tirar fotografias. O fenómeno da folclorização manifesta-se, no entanto, numa exposição de fotografias sobre a Festa dos Caretos, a 25 de Dezembro de 2005, em Torre de Dona Chama. A seguir à festa, há uma apresentação dum livro que fala da festa.
Na Internet, encontram-se vários sites sobre Torre de Dona Chama, e na Enciclopédia online “Wikipedia”, há uma entrada sobre Torre de Dona Chama. O site mais completo inclui dados geográficos, históricos e sociais sobre Torre de Dona Chama, a lenda, um hino, poema e cântico, uma indicação da rádio local, de várias festas durante o ano,entre outras, a Festa dos Caretos, assim como notícias sobre actualidades (http://pwp.netcabo.pt/torredonacham/documents/santos.html). Num site turístico,encontra-se, além disso, o anúncio do lançamento do livro de Telmo Carvalho (“Tourismus-Börse”). Segundo Manuel Gonçalves, a festa já foi participada e estudada por diversos estudantes universitários. Quando M. Gonçalves era presidente da Junta da Freguesia, Alexandre Parafita, professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, pediu fotografias dos
caretos de Torre de D. Chama para uma proposta de tornar o fenómeno dos caretos património mundial de cultura da UNESCO.
O problema das fontes
Como escreve Padre Francisco Videira Pires, amigo de Belarmino Afonso, falta uma classificação sistemática do amontoado documental sobre a festa de Torre de Dona Chama e deve-se partir da história rigorosamente documentada. Durante as suas férias de um mês em Torre de Dona Chama, P. Benjamim, irmão de Padre F. Pires e sócio da Academia de História, tentou inventariar o que ia descobrindo. Hoje, esse espólio encontra-se no museu familiar do Padre F. Videira Pires. Francisco Pires, junto com o seu irmão e o seu primo Ernesto Rodrigues, tentou realizar uma monografia completa de Torre de Dona Chama nos anos 60 e dá a culpa da falha do projecto também ao Arquivo desta altura onde rebuscar um documento era “procurar agulha em palheiro” (Pires 2002: 199, 120). No meu projecto sobre mouriscas portuguesas, incluo a festa de Torre de Dona Chama, apesar das poucas fontes que há. O método do meu estudo é empírico e até as observações geográficas e sócio-culturais incluem as minhas próprias observações na festa de Santo Estêvão a 26 de Dezembro de 2005.
Além das minhas observações, dos meus observadores complementares, dos meus informantes e os próprios registos audiovisuais, o estudo baseia-se no romance de Ernesto Rodrigues (1994), no artigo de Padre Francisco Videira Pires (2001) e no texto de António Pinela Tiza (2004). Embora E. Rodrigues (1994) trabalhasse sobre Torre de Dona Chama sob forma dum romance, ele dá uma boa impressão dos costumes de Torre de Dona Chama – como comida, convívio, festas, vestígios arqueológicos, imaginário etc.O artigo de Francisco Pires (2001) descreve o procedimento da festa. No entanto, o autor não se baseia nas informações sobre uma festa dum determinado ano, mas em elementos que observou em diferentes anos desde a sua infância. Ele designa a sua análise por “sondagem sócio-cultural”, mas no texto manifesta-se a própria visão de F.Pires – sobretudo da sociedade no quadro da Igreja e da Idade Média –, e não o presente sócio-cultural. F. Pires faz alusão à máscara e outros atributos dos caretos, mas não indica até quando os caretos utilizaram máscaras, visto que já não as usam hoje.Curiosamente, na descrição de F. Pires, os caçadores lutam contra os caretos, e não se mencionam os mouros. O autor supõe que os mouros existiam meramente na fantasia popular, mas nunca em Torre de Dona Chama, sem, no entanto, provar esta assumpção. Ele interpreta a festa como portadora de espírito medieval e deduz-la da festa dos loucos. Sem os relacionar da maneira bem compreensível, F. Pires cita autores como Heers, Dante, Bakhtin, Eliade, Febvre e outros que escreveram sobre a Idade Média e a festa dos loucos, assim como autores da antropologia e sociologia como Weber, Durkheim, Radcliffe-Brown e Malinowski. Ele refere fenómenos culturais parecidos de Espanha como por exemplo os zangarrones, tafarrones, carochos caretos, mas não entra no assunto mais profundamente.
O artigo de F. Pires inspira para uma análise da festa sob diferentes pontos de vista, mas ele próprio mistura, num único texto, sociologia, antropologia, etnografia, história, sociologia da religião etc., e é difícil obter uma ideia clara da festa de Torre de Dona Chama. Supõe-se que, na negligência da presença dos mouros e na sua opinião de que,na festa dos caretos, em Torre de Dona Chama, é representada a vitória da cristandade sobre outras religiões, se manifesta a sua própria visão como padre. No texto sobre Torre de Dona Chama, de António Tiza (2004), não fica claro em queano o autor fez as suas observações. A. Tiza mistura elementos que viu pessoalmente,que sabe de informantes e do livro de Ernesto Rodrigues (Tiza 2004: 123-131). Ele descreve a preparação e o procedimento da festa superficialmente e, na sua escolha de palavras, manifesta-se um objectivo de sublinhar o misticismo da festa. Assim, ele interpreta cada elemento da festa como ritual, seja sagrado, profano, pagão ou social. O conjunto da festa, vê como harmonia entre sagrado e profano e como rito de passagem dum ciclo agrário, e alguns ritos, vê como crítica social, assim como a luta entre cristãos e mouros como luta dos opostos. Para ele, há uma distinção entre Bem e Mal, em que o Mal se tem que afastar do sagrado e é vencido pelo Bem. A. Tiza não descreve as figuras da festa em detalhe, mas constata que os caretos executam danças e chocalhadas, embora – como se vê nas fotos acrescentadas ao texto – nem levem chocalhos. Além da divisão em figuras "boas“ e "más“, o autor supõe que na missa se mostra a hierarquia das figuras. O texto de António Tiza dá uma impressão das sequências da festa, mas o autor não prova as suas assumpções cientificamente. Como fontes sobra e festa de Santo Estêvão em Torre de Dona Chama, considero também as informações dos meus informantes e dos meus “observadores complementares”.
O meu informante principal em Torre de Dona Chama é Manuel António Gonçalves (56 anos, professor). Ele é natural de Torre de Dona Chama, e, apesar de 11 vividos na Africa, interessa-se pelas “tradições” da sua vila. Até 9 de Dezembro de 2005, era presidente da Junta de Freguesia. Segundo ele, a princesa moura em cima dum cavalo é um elemento recente da festa.
Os mouros podiam, assim ele acha, ter vindo de Norte de África, mas ninguém sabe se eles terão existido realmente em Torre de Dona Chama. Os mouros são superiores e não pertencem “aos nossos” – como diz M. Gonçalves. Sobre o respeito dos elementos da festa, ele informa que a execução destes varia de ano a ano, depende do tempo e da vontade da população local. Elementos citados por Manuel Gonçalves, que não verifico a 26 de Dezembro de 2005, são:- o anunciar dos mordomos do ano seguinte no fim da missa,- a procissão depois da missa em que se leva a imagem de Santo Estêvão,- a busca pelos mouros escondidos na vila depois do assalto ao castelo dos mouros. (fitas originais DAT 28, 29 Arquivo Sonoro em Viena). A 1 de Janeiro de 2006, converso com dois dos meus “observadores complementares” em Vilar Seco sobre a sua opinião da festa em Torre de Dona Chama (fitas originais DAT 29/5, DAT 30/1 Arquivo Sonoro em Viena).
Nuno Martins (20 anos, natural de Palaçoulo) compara esta festa com a Festa do Velho,em Bruçó e acha que, em Torre de Dona Chama, há pouca interacção entre público e actores. Ele não conseguiu compreender a função do careto e a presença dos reis na missa. Em geral, não gostou muito da festa e tem a impressão que a festa se mantém por obrigação. Nuno Martins teve medo dos tiros e do barulho. Não conseguiu perceber a cena final do assalto ao castelo dos mouros, por causa dos mouros logo desaparecidos. Carla Pinto (33 anos, natural de Mogadouro), tem a impressão que a população de Torre de Dona Chama ainda tem vontade de manter a Festa do Careto e que vive a tradição, mas que não se preocupa muito com uma boa organização da festa. Segundo Carla Pinto, a festa parece bastante espontânea. Por causa do mau tempo, ela achou a festa“feia”. A representação da luta entre cristãos e mouros parece-lhe, em Torre de DonaChama, mais uma procissão do que um espectáculo. Ela ficou surpreendida com a presença das espingardas em frente da igreja. Carla Pinto disparou pessoalmente com uma espingarda para ver a sensação e porque teve a impressão que mulheres não podiam disparar. Ela não pensa que a festa se vai perder enquanto acontecer tão espontaneamente e acha que a publicação de livros como o de Telmo Carvalho contribuem para a continuação da festa. Não achou o material, a esferovite, adequado para o castelo dos mouros. Carla Pinto ficou impressionada pela representação do careto por um deficiente mental – “e isto no meio desta irracionalidade toda”, como constata. Em geral, pensa que se representa “Deus contra os mouros” na festa de Torre de Dona Chama. Sobre a laranja na vara do rei mouro, informa que a laranja aparece em muitas festas transmontanas e que, antigamente, as crianças bem comportadas recebiam esta fruta no Natal. Na luta observou que uma rapariga “moura” mais afastada dos caçadores parecia triste por não ser apanhada pelos caçadores.
Conclusão
Segundo Harvey Cox, a festa dos loucos é fantasia e critica social e a festa em geral,uma forma de jogo humana através da qual o homem se apropria de um largo espaço devida, incluindo o passado (Cox 1969 : 16). Em Torre de Dona Chama, invertem-se as hierarquias em que jovens ou solteiros, no papel de caretos e de mouros, são os protagonistas. A festa lembra as festas dos loucos pelo roubo ritual, pela presença de burros e pela luta entre cristãos e mouros, assim como pela presença dos “reis” na missa. Uma interpretação de elementos da festa parece, sob o ponto de vista da antropologia actual, “ultrapassada”, mas se supõe uma luta dos opostos - não necessariamente entre Bem e Mal - na confrontação entre caçadores e mouros, um ritual de crítica social no “deitar os jogos à praça”, assim como uma demonstração da própria sociedade nos papeis de ciganos, madamas, cristãos e
mouros.
No entanto, parece tratar-se duma sociedade do passado, de que hoje, em Torre de Dona Chama, fica apenas a camada dos ciganos – e os cristãos, claro.
Qual, porém, a necessidade de comemorar o passado? M. Velasco escreve que “ a festa pode reflectir conflitos, ansiedades, traumas, sociais e históricos, numa complexa configuração simbólica, mas que sempre, ainda que de forma indirecta, reflecte uma determinada concepção do mundo”.(M. Velasco1982: 163, cit. em Afonso 1987, VIII, 3-4: 354). Acho interessante, o imaginário relacionado com os mouros e a vista deles como“infiéis”. Também Ernesto Rodrigues exprime uma ideologia religiosa quando escreve “a batalha mantém-se indecisa, o que não é bom para a cristandade” (Rodrigues 1994:266). No seu discurso na missa a 26 de Dezembro de 2005 em Torre de Dona Chama, o padre menciona a presença dos árabes em Portugal e manipula ou “alimenta” assim a memória da população local. Jacques Heers acha que a memória colectiva guarda durante muito tempo a lembrança, as práticas e as manifestações antigas - porém, de maneira superficial, mantendo o gesto e o décor , mas não a significação. Marianne Mesnil utiliza, para este fenómeno, o termo “désémantisation” (Mesnil 1974). Como cada geração deixa a sua marca, uma interpretação no contexto actual é importante. Assim, referiu-se neste artigo o contexto sócio-cultural, os processos de mudança de cultura como revivificação e folclorização, e descreveu-se a festa na actualidade. A própria observação como base resulta também da falta de documentos e de estudos anteriores.
Referências
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