Por vezes, em zonas recônditas do território nacional, foi difícil a Nuno Ferreira* explicar que tudo o que ali andava a fazer era atravessar o Portugal dito profundo em busca dos seus últimos habitantes. Quando se anda de mochila às costas em áreas muito desertificadas, o medo cerca o forasteiro.
A partir de Constantim, a estrada no planalto mirandês é uma recta infinita que contorna a linha da fronteira por Cicouro e São Martinho de Angueira e Avelanoso. Árvores contorcem-se num desespero invernal. De vez em quando uma cruz à beira da estrada e um ramo de flores lembra alguém que ali morreu, debaixo de um tractor ou vítima de velocidade a mais numa viatura ligeira.
Pouco depois de passar São Martinho de Angueira, a um passo de Espanha e de Alcañices uma viatura da GNR pára perto de um caminho de terra. Dois guardas saiem lá de dentro na minha direcção. «És português?», perguntam. «Não, sou basco e trago um monte de explosivos aqui na mochila», apetece-me brincar. A região ainda vive marcada pela prisão de etarras em Torre de Moncorvo.
Explico que há umas duas horas estive em Constantim a conversar com o gaiteiro Célio Pires, afinal um colega de ofício, guarda em Miranda do Douro. «Sabe, alguém ligou a dizer que viu um homem a passar de mochila, tivemos de vir ver...» Acabamos a conversar e a rir, não sem que me apontem o nome, morada, pai e mãe, tudo como manda a lei. A viatura branca e de risca verde dá meia volta e deixa-me de novo só, no planalto, na maior liberdade a que se pode aspirar, campos a perder de vista de um lado e do outro. Pouco me importa se a relva da esquerda é portuguesa e a da direita é espanhola.
Em Vale de Frades uma placa num muro que faz esquina com uma travessa anuncia Espanha a dois quilómetros. De repente, numa rua vazia, um rebanho entre casas. Pertence a um velho pastor que não está para conversas. Uma associação recreativa e cultural (de Vale de Frades) fechada, um campo de futebol vazio e lá sigo eu para Avelanoso onde pela primeira vez há muito tempo vejo uma criança, dentro de um café.
Em Pinelo, concelho de Vimioso, uma mulher jovem e uma senhora estão a parar um carro. Aproximo-me para me certificar do caminho. A mulher mais jovem chama a mãe: «Mãe, venha cá». A mais velha explica em pânico e aos arrecuas: «Eu já vi o senhor, eu não o conheço...não sei quem o senhor é...» Parecia temer ser assaltada.
Uma ou duas casas à frente, um casal confirma-me sem grandes delongas que a EM-218-2 até Outeiro é por ali. Há uns anos foi muito falada quando se falou em requalificar a ligação Vimioso-Bragança. A nova estrada pressupunha uma passagem na já muito periférica povoação de Pinelo mas o sonho dos locais esbarrou na existência na zona de uma colónia do rato de cabrera. Na altura, até o presidente da República, Cavaco Silva, levou para Lisboa um dossier sobre o rato. Confesso que não vi nenhum.
Com o advento da IP 4 e a utilização de estradas mais planas tanto por Espanha como por Portugal, as curvas entre Pinelo e Outeiro foram deixadas à sua sorte. Muito raramente vejo passar um carro, o velho asfalto acompanhado de giesta e xisto. Até Outeiro seguem-se 12 quilómetros de ziguezagues onde a única nota agradável é o rio Maçãs. Chego a perguntar-me o que ando por ali a fazer. A atravessar o Portugal profundo, responde o meu «grilo falante».
Um tecto gelado e cinzento envolve Outeiro quando finalmente lá chego por entre renques de oliveiras e ovelhas a pastar. Por cima da aldeia, a 800 metros, erguem-se as ruínas fantasmagóricas do antigo castelo. O café está fechado, um frio de rachar e muito pouca gente na rua. Fotografo a Igreja, um santuário enorme e megalómano para uma povoação tão pequena. Sou observado por dois ou três velhos aldeões, sentados ao pé de umas casas em pedra. Ouço-os comentar: «Já tirou duas fotografias».
Como o dia foi extenuante, quero chamar um táxi que me leve a Bragança para dormir e voltar a Outeiro no dia seguinte. Falo com um homem jovem em cima de um tractor e peço um táxi de uma localidade próxima. Espero a enregelar, sentado no muro da Igreja. Ao fim de uma meia hora surge uma mulher numa carrinha. Abre a porta e olha desconfiada.
«Minha senhora, não tenha medo, sou jornalista e vou para Bragança». Não parece muito convencida: «Eu só costumo transportar pessoas que conheço». Digo-lhe que se tem receio informe a GNR que me vai transportar. «Já avisei». Pronto, penso para com os meus botões, então está tudo bem. Vamos lá para Bragança.
Estamos já na EN 218. A taxista pára a carrinha em nervosismo e explica-me que está sem combustível e vai ter de ir encher ali perto. «Então pode levar a minha mochila, se volta já», digo. Pede-me para a tirar. Saio, fico ali ao gelo do fim do dia, a arrefecer depois de uma caminhada longa desde Constantim. Vejo a carrinha desaparecer no sentido de Bragança, sento-me no rail e fico a observar todas as viaturas, a ver quando aparece outra vez.
Ao fim de uns 30 minutos, sem que reapareça a taxista, surge um jeep da GNR com um agente veterano sentado no lugar do acompanhante. Trata-me por tu e executa um demorado interrogatório: O que andas a fazer, quem és, de onde vens, porquê ali. São tantas as perguntas que perco a possibilidade de ver se a carrinha do taxi voltou por ali para a sua base.
O guarda prende-me ali uma boa meia hora. Pede-me o bilhete de identidade, a carteira profissional de jornalista. Não aponta nada. Peço que pelo menos me ajude a tentar arranjar um táxi. Deixa-me ali, no frio. Depois de lhe explicar variadas vezes que sou jornalista, remata: «Tá bom, andas a passear...»
Sigo enregelado e furioso em direcção à próxima aldeia, Paçô de Rio Frio. Ligo ao número do táxi. Atende a voz de um homem. Explico que fui deixado na estrada e que isso não se faz. Ouço uma voz feminina por trás que identifico imediatamente a dizer que eu não tinha dinheiro. Mais furioso fico. Digo-lhe que me apetece apresentar queixar.
Chamo outro táxi de Bragança que me vai buscar a Paçô. Já estou lá dentro quando vejo aparecer de novo o jeep da GNR. Desta vez, o guarda vem com cara de poucos amigos. «Agora vais mesmo identificar-te». Pede-me o BI, aponta tudo em cima da capota. Quero sair dali o mais depressa possível mas não me contenho: «Já está? Diga à sua amiga taxista que não tenha medo». Por momentos, penso que vou ter sérios problemas. O guarda ruboriza, ergue o dedo: «Um GNR não tem amigos, o único amigo de um GNR é a sua mulher. O senhor seja mais bem educado». O taxista de Bragança coloca ali algum bom senso: «Vamos embora daqui antes que isto acabe mal». Acabou em bem.
Nuno Ferreira*
in:cafeportugal.pt
* O autor não guarda qualquer rancor à instituição GNR nem aos guardas em questão.
(*) Nuno Ferreira nasceu em Aveiro em 1962. Licenciou-se em comunicação social na Universidade Nova de Lisboa. Foi colaborador permanente do semanário Expresso de 86 a 89, ano em que ingressou nos quadros do jornal Público (até 2006). Nos últimos 20 anos fez reportagens de cariz social. No Jornal Público manteve uma crónica satírica intitulada “Ficções do País Obscuro” e escreveu sobre música popular americana. Recebeu, entre outros, o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube de Jornalistas do Porto com o trabalho «Route 66 a Estrada da América» (1996). No ano seguinte recebeu o Prémio de Jornalismo de Viagem do Clube Português de Imprensa com o trabalho «A Índia de Comboio». Em 2007 publicou conjuntamente com Pedro Faria o livro «Ao Volante do Poder».
Que pena que o jornalista Nuno Ferreira, tendo passado nas Três Marras, entre S. Martinho, Angueira e Avelanoso, a cerca de três quilómetros de Angueira, não tenha aproveitado para visitar esta aldeia e, assim, para fazer o percurso entre a "Cabada" e "Terroso", passando pela "Senhora", "Ourrieta Caliente", a "Retuorta" e a "Yedra", de jusante para montante, da ribeira de Angueira no termo desta localidade. Poderiam, assim, dar-se conta dos centenários sistemas de açudes e "calendras" e ainda dos moinhos e casas de moleiro, alguns deles que remontam ao início da nação, bem ainda das hortas existentes em ambas as nargens. Perdeu também assim uma boa oportunidade para visitar as ruínas do castro do "Gago", já perto da conflências das marras de Angueira com S. Marinho de Angueira e a Especiosa, e, sobretudo, do castro da "Quecolha", mais próximo da aldeia de Angueira. Perdeu ainda de ver a "capilha de San Miguel", no Prado e já muito próxima do "Serro de Angueira" e da marra que separa os termos de Angueira e de Serapicos. Que pena! Espero que o Nuno Ferreira possa um dia fazer tal visita. Recomendo. Angueira merece. Lamento, no entanto, as peripécias por que o fizeram passar.
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