Com cartola, traje de oficial de cavalaria e espada a tiracolo… o povo baptizou-o como “Menino Jesus da Cartolinha” e adoptou-o como um dos ícones da tradição cultural, religiosa e profana do nordeste transmontano.
Ainda hoje o seu mistério perdura. Quem é, de onde veio e onde se meteu depois esse menino, desinquieto, irritado e enigmático, que comandou o povo de Miranda do Douro contra os invasores espanhóis nas guerras da Restauração? Que existiu, existiu – assegura a memória do povo ao longo das gerações. Mas quem era ele afinal? Seria mesmo o Menino Jesus?
A tradição popular diz que sim. E hoje o “Menino Jesus da Cartolinha” impõe-se como um desses símbolos inapagáveis do imaginário transmontano. Um autêntico mito para os mirandeses. Quem o quiser ver pode encontrá-lo na catedral de Miranda do Douro. Ali continua, imponente, com a sua elegante cartola, vestes de oficial de cavalaria, espada a tiracolo e uma condecoração ao peito. E com ele também um guarda-roupa invulgar, consoante vão ditando as “modas” no rolar dos tempos: desde uma capa-de-honras mirandesa, fardas, coletes, chapéus de todos os estilos, meias e meiotes de lã, camisas de finos bordados, até um variado conjunto de botas e tamancos de pau. Tudo promessas de devotos que ali vão num ritual secular.
Quanto à cartola (ou “cartolinha”, no uso do povo) poucos hoje saberão que se trata, afinal, de um adereço artificial. O menino, que começou por ser conhecido como o “menino do chapeuzinho”, o que na origem usava era nada mais do que um simples chapéu de palha. Aliás, ainda hoje é possível ver na cabeça (nós não vimos, mas assegurou-nos fonte credível ter visto) umas minúsculas perfurações que demonstram que outrora o menino usou cabeleira, entretanto arrancada para lhe assentar a cartola.
Na verdade, segundo a lenda – e que vale aquilo que todas as lendas valem –, no tempo das guerras da Restauração, Miranda do Douro esteve dias e dias cercada pelas tropas espanholas, ao ponto de, sem mantimentos nem munições para resistir, nada mais restar do que render-se definitivamente ao domínio invasor. E eis senão quando um menino de chapéu de palha, ar de refilão, desconhecido, irrompeu pelas ruas gritando contra os espanhóis e apelando à revolta dos populares. Tal foi o bastante para que o povo ganhasse o alento que lhe faltava. Num abrir e fechar de olhos, as ruas encheram-se de povo. Todos os habitantes saíram à rua – uns com enxadas, ancinhos e forquilhas, outros com paus, cutelos e machados – unindo-se às tropas fragilizadas da Restauração. E assim conseguiram afugentar e vencer os invasores.
No final, o povo procurou o tal menino, travesso, refilão: o menino do chapeuzinho de palha. Queria louvá-lo. Vitoriá-lo. Mas quê? Onde estava? Quem era ele? Ninguém sabia. Tinha, pura e simplesmente, desaparecido.
O povo acreditou então que havia sido o Menino Jesus que ali caíra, por milagre, para salvar a cidade. E logo mandou esculpir a imagem que passou a ser venerada na catedral. Entretanto, uma jovem que, na mesma batalha, havia perdido o noivo, um oficial das tropas portuguesas, resolveu oferecer o traje militar ao menino. E daí nasceu a tradição da dádiva de roupas. Muitos anos depois, porque alguém achou que o chapéu de palha não condizia com a nobreza do traje, e tão-pouco com o “estatuto” de um comandante, colocaram-lhe então a cartolinha. E que bem que lhe fica!
Alexandre Parafita
In Antropologia da Comunicação,
Lisboa, Âncora Editora, 2012
(foto de Ana Preto)
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