Quem visse aquele par jovem descer do comboio do meio-dia na pequena gare da estação de Vale da Porca, diria que eram irmãos, pois mal puseram os pés em terra firme, colocaram uma mala de cartão e uma saca de lona no chão, deram as mãos e olharam para todos os lados, como que assustados ou surpreendidos com o cenário rural que os rodeava.
Entre as pessoas que esperavam o comboio para entrar e os que saiam dele, juntou-se ali um magote de gente que olhava de soslaio para aquele par desconhecido de todos. O caso não era para menos, pois para além de serem ainda muito jovens, com pouco mais de vinte anos, eram bastante magros, os rostos de uma cor pálida e cansada e, pormenor principal, vestiam de maneira completamente diferente dos pasmados aldeões que os rodeavam.
Entretanto, depois de o comboio já ter partido após o apito autoritário do chefe da estação, um sujeito de meia-idade, baixo e gordo, com a sua bandeirola vermelha enrolada debaixo do braço e o competente boné branco na cabeça, o jovem depressa se viu ali sozinho, no meio da gare, pois cada um tinha ido à sua vida. O chefe da estação tinha desaparecido para o interior do edifício e os outros começaram a dirigir-se para as suas aldeias, uns a pé e outros a cavalo que, por aquelas bandas era quase o único meio de transporte.
O dia apresentava-se relativamente quente, apesar de ser o primeiro do mês de outubro e o segundo ano da década de cinquenta, uma década que se apresentava para o mundo como uma nova era de esperança para o desenvolvimento, a paz e a felicidade, quando ainda soavam por todo o lado, como um obstinado eco, os ais horrendos da triste hecatombe nazi.
Os dois jovens ali parados, vinham de Bragança, onde lhes tinham dito que, para chegarem à aldeia da Sobreda, em pleno concelho de Macedo de Cavaleiros, tinham que tirar o bilhete de comboio para a estação de Vale da Porca e depois era só seguir a estrada que subia o monte Morais, passar pela capela de Santo Ambrósio e em chegando ao alto, era só virar por um caminho à direita até à Sobreda. Não tinham nada que se enganar, assim lhes tinham garantido no terminal da estação bragançana.
Mas a realidade era bem diferente. Alberto e Laurinda, por mais que olhassem à sua volta, só viam montes e montes riscados de caminhos, algumas árvores e uma ou outra casita perdida na ondulante e parda serrania.
Não sabendo para que lado ir, resolveram entrar na estação e procurar o único informante que havia por ali. O chefe estava sentado a uma escrivaninha, entretido com uns papéis e só quando ouviu o ruído de uns passos perto de si, é que se voltou para o casal, lançando-lhes um distraído “então que há?”. Foi a mulher que lhe respondeu, enquanto o marido pousava a mala de cartão e a saca de lona no chão:
- Sou a nova professora da Sobreda… O chefe da estação levantou-se de imediato, e aproximando-se, atencioso e solícito.
- Fa… faça o favor de dizer, minha senhora.
- Sou a nova professora da Sobreda mas não sabemos ir para lá. Se nos puder ajudar…
O homem fê-los voltar à gare, rodear o pequeno edifício até às traseiras e erguendo o braço direito, com o indicador espetado para sul, indicou:
- Estão a ver aquela floresta além, no cimo daquela serra mais alta?
- Sim, respondeu o casal ao mesmo tempo.
- Então, vão por este caminho até encontrarem a nova estrada que já é de alcatrão e depois, é só subir pela serra e quando passarem o Santo Ambrósio, sobem mais um bocado até ao alto e depois, ao começarem a descer pelo outro lado da serra, encontram um caminho pelo meio da floresta que os leva à Sobreda. Mas olhem que são mais de duas horas a andar bem!
O jovem casal agradeceu, pegaram na trouxa e antes que fosse mais tarde, que os dias já começavam a ser mais pequenos, puseram pés a caminho e logo desapareceram da vista do chefe, que se enfiou de novo na estação, meneando a cabeça, talvez num misto de incredulidade e de pena.
Quando avistaram o pequeno santuário, a professora quase desfalecida, mais amarela que uma bela de cera e teve que se sentar numa pedra. Ele não estaria melhor, mas sempre ia encorajando a companheira.
- Anda, é só mais um bocadinho até ao Santo Ambrósio e depois comemos alguma coisa.
Quando chegaram ao santuário, deram de caras com uma fonte e logo se precipitaram para ela, bebendo até se sentirem empanzinados de água. Depois aproximaram-se do santo que se erguia, de braços abertos ao mundo, de cima de um pequeno altar coberto com uma tarjeta de linho e rendas, admiraram-lhe a fatiota e a mitra sobre a cabeça e, enquanto o Alberto se desviou para urinar junto ao tronco de uma árvore, Laurinda benzeu-se e murmurou uma oração diante do santo que lhe parecia sorrir, certamente agradecido pela visita inesperada. Logo que o marido chegou, abriram a saca de lona, estenderam um pano em cima de um pequeno muro e comeram pão, um naco de queijo duro e umas azeitonas que tinham trazido de Bragança, saciando assim uma fome de muitas horas. Depois sentaram-se à porta da capelinha, encostaram-se um ao outro e ali se deixaram dormir.
Anoitecia quando entraram no largo da aldeia. Pousaram a mala e a saca no chão, que apesar de pouco trazerem, lhes pesavam após a longa caminhada. Em redor, o pequeno casario era, em geral, envelhecido por um xisto irregular e escuro. Algumas chaminés fumegavam e todo aquele cenário de semiobscuridade e de fumo, assustava o jovem casal citadino que assim se sentia desamparado, infeliz e sobretudo angustiado perante a perspetiva de terem de passar a noite ao relento.
Quando se preparavam para ir bater a uma porta, apareceu-lhes uma rapariguinha de tranças que não teria mais de nove a dez anos e trazia um burrico preso por uma corda. Passou pelo casal, fez um gesto de espanto mas baixou a cabeça e seguiu até desaparecer por uma ruela em frente. Laurinda ainda lhe berrou:
- Como te chamas?
- Maria – respondeu ainda a menina de lá do canelho, antes de se ouvir bater uma porta -.
Dali a nada começou a aparecer gente no largo, homens e mulheres, velhos e novos, para verem de perto o casal que a rapariga dissera ter visto. Alguns já traziam um lampião aceso, apesar de alguma réstia de claridade. Foi Laurinda, mais uma vez, a tomar a iniciativa de falar:
- Boas noites !
- Boas noites ! responderam-lhe em coro.
Sou a nova professora e não temos onde ficar…
Ouviu-se logo um murmúrio de admiração pelo largo. Os homens tiraram os chapéus da cabeça e as mulheres e as crianças aproximaram-se, mais sorridentes. Também estava Maria, a rapariguinha das tranças e que fora logo avisar os pais.
Todos queriam ver de perto a primeira professora da sua terra, pois nunca tiveram o privilégio de ter uma. E todos, à boa maneira transmontana, queria levar o jovem casal para sua casa, para lhes dar de comer e uma cama para dormir.
Tiveram que decidir, depois de um acordo geral, por um casal que se mostrava mais insistente em ajudar a professora e o marido e que, por sinal, eram os pais da Maria que, pela primeira vez na sua vida, iria ter uma professora.
Quando deixaram o largo para entrarem no lar que os acolhia, a noite era já uma realidade que cobria tudo de escuro e de silêncio. Lá dentro, à luz de um candeeiro, e antes de se sentarem à mesa para comerem, fizeram-se as apresentações, com os donos um pouco acanhados a balbuciarem:
- Ou sou o Sérgio !
- Ou sou a Natália !
- E … e ou sou a Maria ! … disse a menina, a rir-se e aos saltinhos e a sacudir graciosamente as suas tranças. Foi o que valeu, para todos se libertarem do acanhamento próprio de situações como esta…
(Conto do livro, Terra Parda), de Hélder Rodrigues
Sem comentários:
Enviar um comentário